"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/01/2023

Jurisprudência 2022 (96)


Causa de pedir;
excepção de caso julgado

1. O sumário de STJ 21/4/2022 (1545/19.4T8LRA.C1.S1) é o seguinte: 

Não existe identidade de causa de pedir quando, na presente acção, os pedidos se fundam a responsabilidade do requerente de providência cautelar injustificada prevista no art. 374.º, n.º 1 do CPC, enquanto na acção reconvencional enxertada em processo anterior a aqui autora imputava à aqui ré responsabilidade contratual decorrente da ilícita resolução do contrato celebrado entre as partes (arts. 798.º e segs. do CC).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"6. Da leitura conjugada dos arts. 580.º, n.º 1, 581.º e 619.º, n.º 1 e 621.º, n.º 1 do CPC, extrai-se a conclusão de que existe caso julgado quando há repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por decisão que não admite recurso ordinário. [...]

Para apreciar da verificação da excepção de caso julgado material, afastada pelo acórdão recorrido quanto a todos os pedidos formulados pela A., com excepção do pedido indicado na alínea e) da p.i., há que estabelecer o confronto entre o objecto da presente acção e o objecto da acção que correu termos sob o n.º 2811/08...., a fim verificar se ocorre identidade entre os respectivos pedidos e causas de pedir, e uma vez que a verificação do pressuposto da identidade subjectiva não oferece dúvidas.

A A., ora Recorrida, peticiona na presente acção – para além do valor indicado na alínea e), e conexo pedido indicado na alínea f) respeitante a juros moratórios, os quais não se encontram agora em discussão – a condenação da R., ora Recorrente: no pagamento da quantia de € 404.762,90, relativa a lucros cessantes, de que se viu privada em consequência directa do injustificado arresto realizado a pedido da R. (pedido da alínea a)); a condenação da R. no pagamento da quantia de € 24.939,89, relativa à garantia bancária paga pela ora A. ao banco BPI (pedido da alínea c)); a condenação da R. no pagamento da quantia de €6.120,00, relativa ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas de gás arrestadas (pedido da alínea g)); a condenação da R. no pagamento da quantia de € 25.000,00, relativa à indemnização devida pelos danos não patrimoniais infligidos à A. pela R., através do injustificado arresto (pedido da alínea i)). Cumula cada um desses pedidos com o pedido de condenação da R. no pagamento dos respectivos juros de mora (pedidos alíneas b), d), h) e j)).

Alega a A., ora Recorrida, para fundamentar a sua pretensão, que celebrou com uma sociedade comercial denominada Esso (em cujos direitos e obrigações a aqui R., ora Recorrente, sucedeu) um contrato de distribuição, o qual veio a ser resolvido por parte da mesma R., ora Recorrente, a 22.07.2008, por alegado incumprimento contratual da A., ora Recorrida. Invocou, além disso, que, concomitantemente, em 05.08.2008, a ora Recorrente instaurou um procedimento cautelar de arresto contra a A. para garantia do pagamento da quantia de € 1.073.761,30, dos quais € 777.163,03 correspondiam à indemnização reclamada aquando da resolução do contrato, e € 296.598,26, ao valor de vasilhame (garrafas de gás) que, segundo a então requerente, estariam na posse da então requerida, depois de deduzido o valor caucionado por esta junto daquela, no montante de € 22.402,09. Acrescenta a ora A. Vieiragás que o arresto veio a ser decretado no âmbito do procedimento cautelar n.º 2277/08…, tendo sido apreendidos todos os bens móveis existentes no interior do seu estabelecimento comercial, todas as mercadorias que tinha em stock (destinadas a serem vendidas no exercício da sua actividade), assim como as receitas que fossem geradas pelo estabelecimento e todos os restantes créditos que constituíssem o seu activo.

Na petição inicial apresentada no presente processo, a ora Recorrida invocou, igualmente, que depois de deduzida oposição ao decretado arresto, as partes celebraram uma transacção, nos termos da qual foi parcialmente reduzido o número de bens arrestados, pese embora se tenham mantido arrestados o estabelecimento comercial de venda de gás, assim como todos os bens do seu activo imobilizado, bem como 529 garrafas de gás, das quais 319 estavam cheias de gás.

Alegou, por fim, a A., ora Recorrida, que o arresto decretado, e cuja caducidade veio a ser declarada pelo tribunal a 23.08.2017, se revelou infundado, tendo a acção do qual o mesmo se encontrava dependente, que correu termos sob o n.º 2811/08…, considerado ilícita a resolução do contrato operada pela aqui R., ora Recorrente, decidindo que não lhe assistia o direito de reclamar da ora Recorrida qualquer indemnização por incumprimento contratual. Concluiu a A. que tal arresto lhe causou avultados prejuízos (com destaque para a substancial perda de clientela) cuja reparação vem peticionar.

Por outro lado, no âmbito da reconvenção apresentada na acção n.º 2811/08...., a ora Recorrida pretendia ser ressarcida pelo prejuízo (na vertente dos lucros cessantes) causado pela resolução ilícita do contrato pela ora Recorrente, prejuízo esse que fez equivaler ao valor do lucro líquido anual de que deixou de beneficiar durante o período que iria até 21 de dezembro de 2020 (data até à qual seria expectável que vigorasse o contrato respeitante à venda de gás Esso) e que computou em € 600.000,00. A acrescer a este valor, peticionou a A., ora Recorrida, o pagamento de € 144.000,00, quantia equivalente aos juros que os capitais cuja obtenção resultou frustrada lhe proporcionariam, a uma taxa anual não inferior a 7%.

Os pedidos - que consubstanciam o efeito jurídico pretendido pelas partes - formulados nos dois pleitos são distintos: esta asserção afigura-se clara no que respeita aos pedidos elencados nas alíneas c), g) e i) da petição inicial apresentada no âmbito da presente acção (e conexos pedidos de juros moratórios elencados nas alíneas d), h) e j)), considerando que os mesmos não haviam sido formulados no âmbito da acção n.º 2811/08….

A afirmação de que as acções são distintas vale também quanto ao pedido formulado na alínea a) da presente acção, respeitante ao pagamento de lucros cessantes, uma vez que este pedido se reporta aos resultados líquidos que, de acordo com o alegado, teriam sido realizados, não apenas pela venda de gás Esso, mas também pela venda de gás Repsol (cfr. arts. 32.º e 33.º da petição inicial) no período temporal de cerca de dez anos (de 17.10.2008 a 2017), no decurso do qual a ora Recorrida viu a sua actividade prejudicada em decorrência do arresto decretado (cfr. arts. 72.º e 145.º da petição inicial), ao passo que, na acção n.º 2811/08…, o pedido reconvencional se reportava ao ressarcimento dos lucros que a ora Recorrida deixou de auferir com a venda de gás Esso (único a que se reportava o contrato) no período de cerca de 12 anos e meio que intercedeu entre a data da resolução do contrato (ocorrida a 22.07.2008) e a data de 21.12.2020.

Ainda que se conceda, como afirmado pela 1.ª instância, que os lucros cessantes a que se reportam os pedidos formulados nas duas acções sejam parcialmente sobreponíveis, tal circunstância não determina a identidade entre os objectos de ambas as acções.

Isto porque, como se observou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-06-2020 (proc. n.º 2774/17.0T8STR.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

«Sabendo-se que o objecto da acção reside na pretensão que o autor pretende ver tutelada e identificando-se esta através do direito a ser protegido por esse meio, a individualização do mesmo consubstancia-se não só através do seu próprio conteúdo e objecto (o pedido) como por meio do acto ou facto jurídico que se considere que lhe deu origem (causa de pedir) [3: Processo número 737/14.7TBRG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt]. Consequentemente, a sentença a proferir nesses termos declarando determinado direito apenas tomará em conta o acto ou facto jurídico donde provenha. Está em causa a denominada teoria da substanciação que assume assento no nosso ordenamento jurídico e que, ao invés da teoria da individualização, exige sempre a indicação do título em que se fundamenta o direito afirmado pelo autor.». [...]

Pode também ler-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-06-2017 (proc. n.º 737/14.7TBRG.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt:

«II. Sendo a causa de pedir constituída pelo fundamento que sustenta a pretensão, existe diversidade desse elemento objectivo da instância quando na primeira acção o pedido de condenação no pagamento de uma quantia era baseado na celebração de um contrato de compra e venda em que o réu interveio como comprador e na segunda acção o mesmo pedido, formulado ao abrigo do art. 200º do CC, é fundada no facto de o réu ter integrado uma “comissão especial” em representação da qual foi celebrado o contrato de compra e venda.».

Assim como no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2019, (proc. n.º 998/17.0TBVRL.G1.S1), in www.dgsi.pt:

«I - O caso julgado negativo (improcedência) não preclude – contrariamente ao caso julgado positivo (procedência) – a propositura de ação subsequente fundada em diferente causa de pedir.

II - Em consequência, o julgamento improcedente de uma acção, onde a autora invocava a sua qualidade de locatária financeira para obter a condenação da seguradora no pagamento dos danos produzidos na máquina locada, não impede o julgamento de uma segunda acção, onde a autora invoca a sua qualidade de proprietária (por ter pago a totalidade das rendas e valor residual) e formula pedido idêntico ao anterior.».

Ora, retornando ao caso dos autos, e como se entendeu no acórdão recorrido, os factos alegados, constitutivos da obrigação de indemnizar, são distintos numa e noutra acção:

- Na presente acção integram a responsabilidade do requerente de providência cautelar injustificada prevista no art. 374.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;

- Enquanto na acção reconvencional enxertada no processo n.º 2811/08…, a ora Recorrida imputava à ora Recorrente responsabilidade contratual, decorrente da ilícita resolução do contrato celebrado entre as partes (arts. 798.º e segs. do Código Civil).

Assim, e independente da posição assumida acerca da questão da natureza da responsabilidade civil prevista no art. 374.º do CPC, os factos alegados em cada uma das acções integram distintas causas de pedir.

A este propósito mostra-se oportuna a referência – que não passou despercebida ao tribunal a quo – ao conceito de causa de pedir operativo para efeitos de caso julgado, legalmente delineado no art. 581.º, n.º 4 do CPC, segundo uma acepção restrita que reconduz a tal conceito apenas os factos principais da causa (cfr. Rui Pinto, «Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias», in Julgar online, Novembro de 2018, pág. 8).

Mariana França Gouveia (A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 497) afirma que, para efeitos de excepção de caso julgado, a causa de pedir se define:

«[A]través do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada.».

É certo que, em ambas as causas, a ora Recorrida alega factos concernentes à resolução do contrato pela ora Recorrente, resolução essa que, no processo n.º 2811/08…, veio a ser considerada desprovida de fundamento legal. Tais factos, no entanto, assumem a veste de factos essenciais no âmbito daquela causa (integrando o respectivo núcleo essencial), enquanto, no presente pleito, os ditos factos não caracterizam o núcleo essencial da causa de pedir porque insusceptíveis de integrar a previsão normativa contida no n.º 1 do art. 374.º do Código de Processo Civil.

Como faz notar Teixeira de Sousa (Preclusão e caso julgado [1], pág. 20):

«O autor não tem, no processo civil português, o ónus de alegar todas as possíveis causas de pedir do pedido que formula. Quer isto dizer que o ónus de concentração que vale para o réu quanto à matéria de defesa (cf. art. 573.º, n.º 1) não vale para o autor quanto às várias causas de pedir. É isso que justifica que, não tendo obtido a procedência da acção com base numa causa de pedir, o autor possa propor uma nova acção na qual venha a invocar uma diferente causa de pedir. Deste regime não se pode retirar, contudo, que sobre o autor não recai nenhum ónus de concentração. É verdade que esse ónus não se verifica quanto às várias possíveis causas de pedir que podem fundamentar o pedido, mas também não deixa de ser verdade que o autor tem um ónus de alegação de todos os factos que se referem à causa de pedir invocada na acção.».

Deste modo, ainda que se concluísse pela identidade parcial dos pedidos relativos à indemnização por lucros cessantes em ambas as causas, a ora Recorrida não se encontrava impedida de, por esta via, vir invocar uma nova causa de pedir assente na instauração injustificada do procedimento cautelar de arresto, na medida em que os factos que a integram não coincidem com a causa de pedir subjacente à reconvenção apresentada na acção n.º 2811/08…;

Sendo distintos os objectos das duas acções, conclui-se pela não verificação da excepção de caso julgado."

[MTS]