"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/01/2023

Jurisprudência 2022 (94)


Legitimidade processual;
interesse em contradizer*


1. O sumário de RE 7/4/2022 (905/20.2T8STR.E1) é o seguinte:

I - O critério para apreciar da legitimidade passiva, prende-se com o interesse em contradizer, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação advenha para o demandado, enquanto sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor que, de todo, deve ser confundido com o pressuposto processual positivo, ou seja, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito, a denominada legitimidade ad causam.

II – Resultando da alegação do autor uma imputação aos réus de atos pessoais que caracterizam responsabilidade individual e não da Comunidade de Compartes dos Baldios de Valverde, bem como de factos praticados pelos réus, agindo em nome próprio, e não em nome da dita Comunidade de Compartes, serão os réus que têm interesse em contradizer, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação lhes pode advir, assumindo a legitimidade passiva, e não a referida Comunidade.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Escreveu-se na decisão recorrida:

«Resulta dos autos que o A. formula pedidos contra os RR., enquanto pessoas jurídicas individuais, imputando-lhes responsabilidade na produção dos danos que alega ter sofrido. No entanto, da alegação vertida na petição inicial, nos comportamentos imputados como danosos, os RR. visados não actuaram em nome próprio, mas como representantes da Assembleia de Compartes dos Baldios de Valverde, Pé da Pedreira, Barreirinha e Murteira, pelo que, será esta entidade a eventual responsável pelos danos causados ao A., pois os RR. actuaram sem nome desta.

Face ao alegado pela A. na sua petição inicial e ao pedido de condenação dos RR., verifica-se que os RR. não são sujeitos da relação material controvertida que fundamenta o pedido, tal como é configurada pelo autor.»

Estatui o art.º 30º do Código Processo Civil [CPC] sobre o conceito de legitimidade (mantendo o regime já anteriormente adotado no direito adjetivo civil):

“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo. A legitimidade processual é aferida em vista de um critério substantivo - o interesse em demandar e em contradizer -.

Para o que ao caso interessa, importa sublinhar que ressalta da previsão adjetiva civil consignada que «o critério para apreciar da legitimidade passiva, prende-se com “o interesse em contradizer», manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação advenha para o demandado, enquanto sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor que, de todo, deve ser confundido com o pressuposto processual positivo, ou seja, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito, a denominada legitimidade ad causam» [Cfr. Acórdão do STJ de 02.06.2021, proc. 22208/18.2T8PRT.S1, in www.dgsi.pt.].

A presente ação consubstancia uma ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, mediante a qual o autor/recorrente visa obter dos réus uma indemnização por danos não patrimoniais.

São três os pedidos formulados pelo autor:

1º - a condenação dos 1º, 2º, 3º e 4º réus a pagar, solidariamente, ao autor a quantia de € 40.000,00, pelos factos descritos de 1 a 79º;
2º - a condenação dos 1º, 2º, 3º, 4º e 7º réus a pagar, solidariamente, ao autor a quantia de € 7.500,00, pelos factos descritos de 82º a 110º;
3º - a condenação dos 5º, 6º, 7º e 8º réus a pagar, solidariamente, ao autor a quantia de € 12.000,00, pelos factos descritos de 114º a 137. [...]

Resulta da alegação do autor/recorrente que, embora os réus atuassem em nome e em representação do Conselho Diretivo na providência cautelar e na ação principal, não estavam os mesmos mandatados para o fazerem, pelo que entende não poder a Comunidade dos Compartes ser responsável pelos atos praticados pelos réus que alegadamente agem em seu nome, imputando diretamente a estes a responsabilidade pelos alegados danos não patrimoniais sofridos.

Assim, atenta a factualidade alegada pelo autor, os referidos réus são efetivamente sujeitos da relação material controvertida, sendo por isso parte legítima na ação. [...]

Saber se são os réus ou a dita Comunidade quem responde pelos atos praticados, é já uma questão de legitimidade substantiva e não de legitimidade processual, pelo que também relativamente a este segundo pedido os réus são parte legítima na ação.

No que respeita ao terceiro pedido, são os 5º, 6º, 7º e 8º réus igualmente parte legitima, uma vez que todos os factos alegados foram praticados pelos réus, agindo em nome próprio, não sendo alegado na petição inicial que tivessem agido em nome da Comunidade de Compartes dos Baldios de Valverde, Pé da Pedreira, Barreirinhas e Murteira (artigos 114º a 124º da p.i.).

Assim, independentemente da decisão de mérito que venha a ser proferida, fundando-se o pedido do autor em responsabilidade civil por danos alegadamente por si sofridos, invocando violação dos seus direitos, os sujeitos da relação material controvertida, tal como a mesma é configurada pelo autor, são efetivamente os réus demandados na presente ação.

Por conseguinte, o recurso merece provimento.

*3. [Comentário] A RE decidiu bem, porque os Réus são efectivamente, segundo o critério constante do art. 30.º, n.º 3, CPC, os sujeitos da relação material controvertida tal como esta é configurada pelo autor.

A RE, além de aplicar o referido critério, também utilizou o critério constante do art .30.º, n.º 2, CPC. A verdade é que este critério é insusceptível de aferir a legitimidade processual. Para se concluir que assim é, basta colocar a seguinte questão; quem é a parte que, uma vez demandada numa qualquer acção, não tem interesse em contradizer, ou seja, em evitar o prejuízo que advenha da procedência dessa acção e que se traduz na formação de um caso julgado e, eventualmente, de um título executivo contra ela? Dito de outro modo: segundo o equivocado critério que consta do art. 30.º, n.º 2, CPC, qualquer parte demandada é parte legítima.

É por isso que, procurando encontrar algum efeito útil para o o preceito, se tem vindo a defender que o art. 30.º, n.º 2, CPC não se pode referir à legitimidade processual, mas antes ao interesse em agir (Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 343).

MTS