"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2023

"Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se"


1. a) Na parte decisória de um relativamente recente acórdão de uma das Relações afirma-se o seguinte:

"Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, bem como julgar verificada a nulidade processual da dispensa da audiência prévia, com a consequente anulação, por arrastamento, da saneador-sentença recorrido, determinando-se agora que o processo prossiga os seus termos normais com a realização de tal diligência."

Salva a muita consideração, a referência à "nulidade processual da dispensa da audiência prévia" é equivocada.

b) Para melhor compreensão do que a seguir se vai dizer, importa ter presente que o objecto do referido acórdão era um despacho saneador no qual se dispensou (ex professo) a realização da audiência prévia e se conheceu do mérito da causa.

O acórdão contém um voto de vencido, entendendo que, in casu, a dispensa da audiência prévia pelo tribunal de 1.ª instância não representou nenhuma violação do princípio do contraditório. É bem possível que o voto seja justificado, mas o acórdão não fornece os elementos suficientes para formar uma convicção segura. 

Seja como for, as reflexões seguintes não têm a ver com a justificação da dispensa da audiência prévia pela 1.ª instância, mas antes com as consequências que decorrem da consideração da ilegalidade dessa dispensa no acórdão acima referido, pressupondo-se que essa dispensa foi efectivamente ilegal.

2. a) Para ajudar a enquadrar o problema em discussão, suponha-se a seguinte situação: o réu, devidamente citado, não apresenta contestação; o tribunal considera que a revelia é operante e, por isso, profere a sentença final; verifica-se que, se correctamente qualificada, a revelia devia ter sido considerada inoperante e que, por isso, deveriam ter sido praticados os actos subsequentes ao termo do prazo da contestação.

O que se dirá neste caso quando, em recurso, for detectada a errada qualificação da revelia do réu? Não certamente que foi cometida a nulidade processual decorrente da omissão de todos os actos posteriores à não apresentação da contestação que deveriam ter praticados se a revelia tivesse sido correctamente qualificada. O que certamente se dirá é que a decisão que considerou que a revelia era operante é uma decisão ilegal (e impugnável nos termos gerais).

Isto demonstra que há que considerar duas situações completamente distintas: 

-- Aquela em que o tribunal simplesmente omite um acto devido;

-- Aquela em que o tribunal decide que um acto não deve ser praticado.

Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual (como, por exemplo, a falta de citação do réu (art. 187.º, al. a), e 188.º CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191.º, n.º 1, CPC)). No segundo, o que há é uma decisão ilegal.

b) No caso em que o tribunal decide incorrectamente que o acto deve ser omitido (ou praticado), ainda podem ser consideradas duas situações:

-- A decisão incide apenas sobre a omissão do acto legalmente devido;

-- A decisão incide sobre a omissão do acto legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da acção).

A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do acto devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um acto devido, não quando entende incorrectamente que o acto deve ser omitido.

Assim, não pode ser a circunstância de a decisão, além de decidir (ilegalmente) que um acto não tem de ser praticado, apreciar outras questões que pode levar a concluir que, afinal, há uma nulidade processual. Repare-se: se, quando o tribunal se limita a determinar a omissão (ilegal) de um acto, não se pode dizer que ocorre uma nulidade processual, então também não pode ser pela circunstância de o tribunal, além de determinar essa omissão, também conhecer de outras questões que se pode entender que o tribunal comete essa nulidade. A decisão que dispensa um acto devido nunca pode ser qualificada como uma nulidade processual, independentemente de o tribunal apenas decidir essa dispensa ou decidir essa dispensa e, na sequência desta, vir a apreciar outras questões. 

Segundo se pode imaginar, a desconsideração de que ambas as situações merecem a mesma resposta está na origem de alguns equívocos que ainda subsistem nesta matéria e de que o acórdão em análise constitui um exemplo.

3. A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens da doutrina processual civil portuguesa:

"A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.

Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 507).

Naturalmente, tudo certíssimo. Repare-se que Alberto dos Reis fala de "reagir contra a ilegalidade" (não contra a nulidade) quando "há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade" e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.

Para reforçar o bem-fundado da orientação de Alberto dos Reis basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um acto não pode ser confundida com a omissão ilegal do acto.

Precisamente por isto tem interesse voltar a ouvir Alberto dos Reis:

"Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse acto[,] é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso [...]" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II, 507 s.).

Deste trecho sai reforçada a orientação segundo a qual o problema é de ilegalidade do despacho que decidiu a omissão ou a prática do acto, não de nenhuma nulidade processual. 

4. O anteriormente afirmado demonstra que é equivocado falar de nulidade processual quando há uma decisão que manda praticar um acto proibido ou que impõe a omissão de um acto devido. Nesta hipótese, o que há é uma decisão ilegal. É precisamente por isso que o meio de reacção é o recurso, e não a reclamação própria das nulidades processuais (art. 196.º 2.ª parte, CPC). Aliás, o que se vai discutir na impugnação dessa decisão é a sua legalidade ou ilegalidade, não a verificação de alguma nulidade processual, tanto mais (o que, por vezes, se esquece) que para a apreciação dessa nulidade, segundo o preceito acabado de citar, o tribunal de recurso nem sequer tem a necessária competência funcional.

MTS

Nota de actualização: cf. também "Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (2).