1. a) Na parte decisória de um relativamente recente acórdão de uma das Relações afirma-se o seguinte:
"Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, bem como julgar verificada a nulidade processual da dispensa da audiência prévia, com a consequente anulação, por arrastamento, da saneador-sentença recorrido, determinando-se agora que o processo prossiga os seus termos normais com a realização de tal diligência."
Isto demonstra que há que considerar duas situações completamente distintas:
-- Aquela em que o tribunal simplesmente omite um acto devido;
-- Aquela em que o tribunal decide que um acto não deve ser praticado.
Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual (como, por exemplo, a falta de citação do réu (art. 187.º, al. a), e 188.º CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191.º, n.º 1, CPC)). No segundo, o que há é uma decisão ilegal.
b) No caso em que o tribunal decide incorrectamente que o acto deve ser omitido (ou praticado), ainda podem ser consideradas duas situações:
-- A decisão incide apenas sobre a omissão do acto legalmente devido;
-- A decisão incide sobre a omissão do acto legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da acção).
A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do acto devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um acto devido, não quando entende incorrectamente que o acto deve ser omitido.
Assim, não pode ser a circunstância de a decisão, além de decidir (ilegalmente) que um acto não tem de ser praticado, apreciar outras questões que pode levar a concluir que, afinal, há uma nulidade processual. Repare-se: se, quando o tribunal se limita a determinar a omissão (ilegal) de um acto, não se pode dizer que ocorre uma nulidade processual, então também não pode ser pela circunstância de o tribunal, além de determinar essa omissão, também conhecer de outras questões que se pode entender que o tribunal comete essa nulidade. A decisão que dispensa um acto devido nunca pode ser qualificada como uma nulidade processual, independentemente de o tribunal apenas decidir essa dispensa ou decidir essa dispensa e, na sequência desta, vir a apreciar outras questões.
Segundo se pode imaginar, a desconsideração de que ambas as situações merecem a mesma resposta está na origem de alguns equívocos que ainda subsistem nesta matéria e de que o acórdão em análise constitui um exemplo.
"A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 507).
Naturalmente, tudo certíssimo. Repare-se que Alberto dos Reis fala de "reagir contra a ilegalidade" (não contra a nulidade) quando "há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade" e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.
Para reforçar o bem-fundado da orientação de Alberto dos Reis basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um acto não pode ser confundida com a omissão ilegal do acto.
"Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse acto[,] é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso [...]" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II, 507 s.).
Deste trecho sai reforçada a orientação segundo a qual o problema é de ilegalidade do despacho que decidiu a omissão ou a prática do acto, não de nenhuma nulidade processual.
4. O anteriormente afirmado demonstra que é equivocado falar de nulidade processual quando há uma decisão que manda praticar um acto proibido ou que impõe a omissão de um acto devido. Nesta hipótese, o que há é uma decisão ilegal. É precisamente por isso que o meio de reacção é o recurso, e não a reclamação própria das nulidades processuais (art. 196.º 2.ª parte, CPC). Aliás, o que se vai discutir na impugnação dessa decisão é a sua legalidade ou ilegalidade, não a verificação de alguma nulidade processual, tanto mais (o que, por vezes, se esquece) que para a apreciação dessa nulidade, segundo o preceito acabado de citar, o tribunal de recurso nem sequer tem a necessária competência funcional.
MTS
Nota de actualização: cf. também "Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (2).