"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/01/2023

Jurisprudência 2022 (100)


Confissão judicial;
força probatória*


1. O sumário de RP 4/4/2022 (542/19.4T8PVZ.P1) é o seguinte:

I - A admissão de um facto pela parte a quem ele desfavoreça, embora em quantidade ou grau inferior ao alegado pela parte a quem favorece, constitui confissão, na exacta medida da quantidade ou grau admitidos. Como a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente, não pode o juiz fixar aquela incapacidade em grau inferior ao confessado, com base em peritagem, cujo valor probatório é apreciado livremente pelo tribunal.

II - O princípio orientador de aferição do montante indemnizatório que deve ser atribuído ao dano da perda de capacidade de ganho deve ser o seguinte: - Partindo do tempo provável de vida do lesado e do rendimento que auferia à altura do acidente ou actualmente (para a hipótese do vencimento ter sido actualizado) - ou do rendimento que previsivelmente poderá vir a obter- dever-se-á encontrar um acervo de capital que, pelo seu rendimento e pela utilização do próprio capital, continue a garantir ao lesado a disponibilidade do valor pecuniário ou a capacidade para obter utilidades futuras ou a capacidade de manutenção de expectativas de aquisição de bens, que deixou de ter por via do acidente, por forma a que o montante indemnizatório se esgote em tempo normal da vida activa.

III - Prevendo a lei que a indemnização por danos não patrimoniais seja fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias do caso concreto e os valores fixados pela jurisprudência em situações semelhantes (art. 496°, n° 3 do Código Civil), a quantia de 22.500€ (vinte e dois mil quinhentos euros) mostra-se proporcionalmente ajustada a compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado, que tinha, à data do acidente, 27 anos de idade e sofreu um quadro lesivo caracterizado por um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 10 pontos (em 100), um quantum doloris fixado no grau 4, um dano estético no grau 3, sequelas compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual de pintor da construção civil, mas que implicam a necessidade de esforços acrescidos e limitações na prática de desporto que anteriormente ao acidente praticava.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Importa [...] que o presente Tribunal se pronuncie sobre a impugnação da matéria de facto, fundada no alegado erro na apreciação da prova, entendendo a Recorrente/ Ré que, em face da prova produzida:

- deverá este Tribunal alterar a matéria de facto constante do ponto 43 dos factos provados, passando a constar do mesmo antes a seguinte redacção:

“o Autor ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica de 3 pontos” (em vez dos 10 pontos que ficaram mencionados na decisão recorrida).
 
*

O Recorrente não concorda com a decisão proferida sobre este ponto da matéria de facto, alegando que nunca aceitou (na contestação) que a incapacidade parcial permanente do Autor se devesse fixar em 10 pontos (no mínimo).

Aqui chegados, importa verificar se se pode considerar existir um erro de julgamento, quanto à referida matéria de facto, tendo em conta a argumentação do Recorrente (e, principalmente, todos os meios de prova produzidos, pois que no pretendido novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis - e não só os indicados pelas partes).

Analisemos, então, a prova produzida e a decisão sobre a matéria de facto quanto ao referido ponto questionado que diz respeito ao grau de incapacidade que o Autor ficou a padecer em consequência do acidente de viação de que foi vítima.

Quanto a esta matéria de facto questionada, o Tribunal Recorrido fundamentou a sua decisão da seguinte forma:

“Motivação da decisão sobre a matéria de facto:

O Tribunal considerou o conjunto da prova produzida para a afirmação dos factos provados e não provados (e que se encontravam controvertidos, pois que os relativos às características do acidente, a existência do contrato de seguro e assunção de responsabilidade pela R. estavam já aceites por acordo).

Foram atendidos todos os documentos juntos aos autos, com relevo para:

A carta de fls. 14 em que a R., em 28/04/2018, assume a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo A., solicitando o envio de documentos para o cômputo da indemnização, nos exactos termos que resultaram provados, tendo sido conjugada com os documentos posteriormente juntos pelo A. a fls. 94 e 95, deles resultando que o A. teve dificuldade em obter a declaração que lhe foi pedida pela R. e relativa à inexistência de pagamentos realizados pela Segurança Social.

Os documentos clínicos de fls. 14 verso e segs., 119 e segs., 126 e segs., 136 e segs. e 181 e segs., que permitiram a realização da prova pericial e as suas conclusões, e, também por essa via, a afirmação dos factos relativos aos tratamentos efectuados, bem como o afirmar da data de nascimento do A.
 
Em particular o documento de fls. 20 e 20 verso permitiu perceber que o A. se deslocou aos serviços médicos da R. pelo menos 16 vezes, as que aí se encontram assinaladas. O documento de fls. 21 corresponde à avaliação médico-legal efectuada pela R., atribuindo ao A., após a consolidação médico-legal das suas lesões, 10 pontos de incapacidade, com um quantum doloris de 4 pontos e dano estético de 1 ponto. Esses 10 pontos consideraram: as sequelas relativas ao humor (7 pontos), bem como coluna (1 ponto), joelho (1 ponto) e anca (1 ponto), sendo feita expressa menção que o A. havia mantido sempre quadro de ansiedade / agressividade ao longo do tratamento.

Os certificados de incapacidade temporária emitidos pelo SNS (fls. 22 e segs.), e que reportam, a 12/12/2016, que a incapacidade está a ser atribuída por “doença natural”, que se manteve até 22/04/2017. (…)

Os comprovativos de consultas realizadas de neurologia, maxilo-facial e psiquiatria de fls. 63, 64, 66 e 66 verso (230,00 euros no total).

O relatório de avaliação de dano corporal de fls. 67, e embora nem todas as suas conclusões tenham sido corroboradas pela perícia realizada, salienta-se que também este concluiu que a consolidação médico-legal das lesões do A. ocorreu em 09/12/2016 e não depois do período de incapacidade temporária atribuído pelo médico de família por “doença natural”.

Aliás, sobre esta matéria, não se localizam nos elementos clínicos juntos aos autos qualquer elemento que permita perceber que “doença natural” era aquela, pois que tendo os certificados sido emitidos pelos médicos que acompanhavam o A. na USF ... não existe qualquer registo clínico relativo ao período de 12/12/2016 a Abril de 2017.

Em face dos elementos recolhidos não existe assim como relacionar esta “doença natural” com as sequelas do acidente, ainda que o seu início seja muito próximo da data que todos os médicos (da R., da avaliação do A. e da perícia) indicam como sendo a da consolidação médico-legal das lesões do A.

O Tribunal considerou a prova pericial realizada, cujos resultados não foram colocados em causa por qualquer das partes, na parte relativa aos quesitos elaborados.

E, aqui, não pode o Tribunal deixar de considerar que, tendo o A. alegado sofrer de uma incapacidade permanente de 15 pontos (art. 47º da petição inicial), na sua contestação, a R., sobre essa matéria, alegou, nos arts. 37º e 38º “tal como expressamente impugnado vai o montante peticionado no art. 47º da PI, quer por não corresponder à verdade que o A. tenha ficado a padecer de um défice de integridade física de 15 pontos - como facilmente se conclui pelo boletim junto à PI como Doc. 6, onde são-lhe fixados 10 pontos”.

Assim, estando em causa facto essencial, tem assim de considerar-se assente por aceitação expressa da R., discutindo-se apenas se, para além dos referidos 10 pontos, como alegava o A. na sua petição inicial, acrescia qualquer outro dos 5 pontos de incapacidade alegados (e não acresce, sendo que a prova pericial não confirmou sequer o facto que estava assente por acordo expresso da R.) – vide, no sentido do texto, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/03/2018, in www.dgsi.pt, numa situação semelhante à dos autos, concluindo que “a aceitação de um facto pela parte a quem ele desfavoreça, embora em quantidade ou grau menos elevado do que aquele com que foi estimado pela parte a quem favorece, não deixa de consubstanciar confissão, na exacta medida da quantidade ou grau admitidos (…)”."

*3. [Comentário] O acórdão incide sobre uma questão interessante. No fundo, o que importa concluir é que a confissão realizada nos articulados não pode ser infirmada contra o confitente por qualquer outro meio de prova.

MTS