“1 – Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.
2 – Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.
Se o notificado não apresentar o documento, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado nº 2 do artigo 344º do Código Civil (nº2 do artigo 417º CPC, aqui aplicável, por força do artigo 430º, do CPC), o qual prevê a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
Como referem Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto [“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 462.], tratando-se de uma manifestação do princípio geral da cooperação material no campo da instrução do processo, o preceito tem em vista a prova de factos desfavoráveis ao detentor do documento que, por isso, é notificado, a requerimento da parte contrária para o apresentar.
Do respetivo teor resulta que a disposição se encontra pensada primordialmente para a permitir à parte onerada com a prova de um facto a obtenção de determinado documento de que saiba encontrar-se em poder da parte contrária, para através do mesmo dar cumprimento ao ónus da prova que sobre ele incide. Daí a cominação de inversão do ónus da prova, no caso em que a falta de apresentação o documento venha a impossibilitando ao onerado a respetiva prova. Naturalmente, tal sanção só faz sentido se a junção de documentos for requerida para a prova de factos que a si incumba provar e não quando o ónus da respetiva prova incumba à parte contrária.
Contudo, ter o ónus da prova não significa que se tenha o exclusivo da prova [José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, pág. 210.]. Como estabelece o artigo 346º do Código Civil, “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos de modo a torná-los duvidosos.”
O âmbito do artigo 429º, tem assim de ser articulado com o conceito do direito à prova, significando este que, não só as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal [Cfr., neste sentido, Rui de Freitas Rangel, “O Ónus da Prova no Processo Civil”, 2ª ed., Almedina, pág. 72.], como, têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.
Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova [---].
Concluímos, assim, que o mecanismo previsto no artigo 429º, do CPC, poderá ser utilizado, não só, por aquele sobre o qual recai o ónus da prova, mas, igualmente, para efeitos de contraprova.
Contudo, a notificação prevista no artigo 429º pressupõe, desde logo, a verificação dos seguintes pressupostos:
a) existência de documento em poder da parte contrária;
b) para prova/contraprova, de factos desfavoráveis ao detentor do documento [---]
O tribunal, desde que tenha conhecimento de que em poder de uma pessoa se encontram documentos, necessários ou úteis, para a decisão da causa, pode proferir despacho a ordenar a apresentação de tais documentos, a fim de serem juntos ao processo e tomados na consideração que merecerem [---]
Ora, relativamente a grande parte dos documentos cuja junção é requerida pela autora – comprovativos de pagamento de IMI pelas 2ª e 4ª Rés, comprovativos de pagamento e de recebimento do sinal, pelas 3ª e 2ª Rés, de pagamento e recebimento de rendas, pela 2ª, 3ª e 4ª Rés, faturas/recibos de compra de mobílias, por parte da 3ª Ré, comprovativos de pagamento de água, luz, gás, telefone, por parte da 3ª e 4ª Rés, contratos de trabalho celebrados entre a 4ª R. e os seus trabalhadores –, respeita a documentos que, na tese da autora, pura e simplesmente, não existem, porquanto o verdadeiro proprietário das frações ... e ..., e do respetivo mobiliário e recheio, é o primeiro réu.
Por outro lado, trata-se de documentos que, a existirem e a serem juntos, serão favoráveis à tese dos réus, pelo que, verdadeiramente, a existirem, a autora nenhum interesse teria na respetiva junção.
Ou seja, o que a autora pretende demonstrar com o pedido de notificação das Rés para a sua junção é a de que os mesmos não existem, sendo que, caso existissem e a rés procedessem à requerida junção, tal junção ser-lhes-ia favorável.
Ora, não é este o objetivo visado pela notificação prevista no artigo 429º, como resulta da expressão “quem pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária”, respeitando antes a documento que a parte saiba existir, ao qual não tenha acesso por se encontrar na detenção da parte contrária, e do qual necessite para prova/contraprova de facto desfavorável à contraparte.
Como tal, sempre o pedido de junção destes documentos seria de indeferir, por este motivo.
Por outro lado, como tem sido também sublinhado, o direito à prova não é um direito absoluto e incondicionado, não implicando a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova utilizáveis ou a imposição de condições à sua utilização, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. A emissão de uma norma restritiva da utilização dos meios de prova, não implica necessariamente um desrespeito do direito acesso à justiça na sua vertente do direito do interessado produzir a demonstração de factos que, na sua ótica, suportam o seu direito ou a sua defesa. Tal desrespeito só se verificará quando se possa concluir que a norma em causa determina para o interessado, na generalidade das situações, a impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
Ao juiz, enquanto “gestor” ou responsável pela direção do processo incumbe autorizar a realização das diligências que se afigurem necessárias e adequadas e indeferir as que afigurem inúteis ou meramente dilatórias.
“Ao juiz cabe controlar a pretensa idoneidade do documento para a prova de factos de que o requerente tem o ónus da prova ou que possam infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus, razão porque o requerente deve identificar, na medida do possível, o documento e especificar os factos que com ele quer provar" [Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, pág. 463.]
O facto de o juiz indeferir um requerimento de prova inútil ou com intenção de arrastar o andamento processo, não constituiu uma limitação ao direito de defesa. Podemos mesmo afirmar constituir para o juiz um dever, em nome da economia processual, a recusa de provas irrelevantes, inúteis ou meramente dilatórias.
Do teor do art. 429º, resulta que a previsão da notificação da parte contrária para apresentar documento que possua em seu poder, pressupõe:
- a identificação do concreto documento cuja junção se requer;
- a indicação de quais os factos que com o identificado documento se pretende provar;
- que se trate de documentos que se encontrem em poder da parte contrária e que a própria parte não consiga obter.
Quanto à finalidade de tais exigências, afirma Alberto dos Reis [“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora -1987, pág. 38.];
“A 1ª exigência tem por fim dar a conhecer ao notificado qual o documento que dele se requisita. (…) Para que a parte contrária possa tomar conscientemente qualquer atitude perante o despacho que requisitar a apresentação, é indispensável que ela saiba, ao certo, qual a espécie de documento que se lhe exige – se uma carta, se uma letra, se um relatório, se um balanço, se um título de arrendamento, etc. E não basta que se se indique a espécie, em abstrato, é necessário que se caraterize a espécie, que se individualize o documento, dizendo-se por exemplo, de que data é a carta e quem a expediu, a que prédio se refere o arrendamento e em que data se celebrou, etc.
A 2ª exigência destina-se, em primeiro lugar, a habilitar o juiz a deferir ou a indeferir o requerimento e, em segundo lugar, a fazer funcionar a sanção”.
Daí que, a peticionada junção de documentos respeitantes a um período indefinido ou por diversos anos, sem que tal necessidade se mostre justificada, é também de indeferir."
*3. [Comentário] O acórdão enquadra bem o problema e fornece para este uma solução totalmente correcta.
Num outro plano, talvez tenha ficado por sancionar o venire contra factum proprium perpetrado pela parte que requereu a junção de documentos que, segundo a sua própria alegação, não podiam existir (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC)
MTS