Entende o Recorrente que a matéria factual (pontos 3., 5., 6., 7., 9., 12., 13., 17. e 43. dos factos provados), fixada pela 1.ª instância e confirmada pela Relação, foi apurada em violação das normas de direito probatório, em especial, das normas dos arts. 364.º e 376.º, n.º 1 do Código Civil, bem como do artigo 30.º, n.º 5 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019, de 18 de Junho.
Invoca, para tanto, erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa por violação de regras de direito probatório material, designadamente quanto ao valor probatório pleno do registo clínico, assim como por violação das regras legais que regulam a prova testemunhal como meio de prova.
Entende o Recorrente que «o registo clínico constitui um documento particular, nos termos e para os fins do artigo 374.º do Código Civil, com força probatória plena, nos termos do artigo 376.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, o que o Tribunal a quo, mal, não considerou e, assim, errou na apreciação da matéria de facto, incorrendo em erro de julgamento.».
Consequentemente, pugna o Recorrente pela alteração dos referidos pontos da decisão de facto, entendendo que tais factos, uma vez que não constam do registo clínico junto aos autos, não poderiam, de acordo com o disposto nos arts. 364.º, n.º 1, e 393.º, n.º 1, do Código Civil, ser considerados como provados por outro qualquer meio de prova, designadamente por prova testemunhal e por declarações de parte.
Em sede de contra-alegações, pugnam as Recorridas pela improcedência do recurso, alegando que não existe qualquer errónea apreciação da matéria de facto, nem erro de julgamento, nem violação de regras de direito probatório.
Vejamos. [...]
5.2. No nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova cede perante as situações em que se exista prova legal - a confissão (art. 358.º, 1 do CC), a prova por documentos autênticos ou autenticados (arts. 371.º e 377.º do CC), a prova, em certas condições, por documentos particulares (art. 376.º, n.ºs 1 e 2 do CC) e o funcionamento de presunções legais.
Nos casos em que a lei associa a determinado documento uma determinada força probatória, deve o julgador respeitar essa força. A valoração do meio de prova é, em tais casos, fixada pela própria lei, devendo ser rigorosamente aplicada pelo julgador. A apreciação da questão da alegada violação do valor probatório de um documento constitui matéria de direito sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos da parte final do art. 674., n.º 3, do Código de Processo Civil.
No caso concreto, não subsistem dúvidas de que o “registo clínico” do paciente (correspondente ao doc. 1 junto com a contestação), elaborado e subscrito pela médica, a aqui 2.ª R. – e uma vez que não foi posta em causa a autoria do documento – constitui um documento particular cuja falsidade não foi invocada.
Confirmada a natureza do referido documento, há, pois, que determinar qual o valor das declarações aí inseridas e atribuídas à respectiva autora (valor probatório material), para efeitos de concluir pelo alcance do respectivo valor probatório final.
Dispõe o art. 376.º do Código Civil:
«1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão. (...)».
Temos, pois, que, de acordo com a regra do n.º 1 do art. 376.º do CC, o documento particular prova plenamente que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações dele constantes, isto é, prova a materialidade da declaração (cfr. artigo 376.º, n.º 1 do CC). Porém, tal força probatória plena não significa que os factos documentados sejam tidos como verdadeiros. Como afirma Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório Material, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 171-172):
«Provada a materialidade das declarações, há que aquilatar em que medida é que as declarações vinculam o seu autor. Ou seja, há que distinguir entre as regras que regem a eficácia da prova documental e as regras que dispõem sobre a eficácia da prova documental ‘em razão da declaração documentada’. Conforme refere Vaz Serra [Provas (Direito Probatório Material), 1962, p. 425], «A eficácia probatória diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir. (...)».
E, mais à frente, afirma o mesmo autor (cit., pág.172):
«Em suma, a força probatória atribuída pelo artigo 376.º, n.º 1, reporta-se à materialidade das declarações documentadas e não à sua exatidão.
Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento, mas sim à eficácia da declaração. As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras». [...]
No mesmo sentido, ver, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 22.03.2018 (proc. n.º 120112/15.9YIPRT.P1.S1)[1], consultável em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler, no que ora importa, o seguinte:
«III - Da demonstração da autoria de um documento particular não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provadas, posto que a força ou eficácia probatória plena atribuída às declarações documentadas se limita à sua existência, não abrangendo a sua exatidão (art. 376.º, n.º 1, do CC).».
Isto significa que, no que respeita à realidade dos factos afirmados, ou, para utilizar as palavras da lei, dos «factos compreendidos na declaração», vale a regra do n.º 2 do referido art. 376.º do CC, considerando-se tais factos provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Restringindo, por sua vez, a admissibilidade da prova testemunhal, dispõe o art. 393.º, n.º 2 do CC:
«não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena.».
O que se encontra em consonância com o regime do art. 364.º, n.º 1, do CC:
«Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.».
Tendo presente este enquadramento de ordem geral, passemos a apreciar o caso concreto.
5.3. O registo clínico [...] elaborado e subscrito pela médica dentista, ora Recorrida, constitui, como se afirmou supra, um documento particular, do qual consta informação sobre as observações clínicas relevantes do paciente, ora Recorrente, evolução do seu estado de saúde e procedimentos médicos adoptados.
É certo que se trata de um documento sujeito a regras próprias e cuja exigência se encontra prevista:
- Quer no Regulamento de Deontologia Médica, publicado em anexo ao Regulamento n.º 707/2016, de 21 de Julho, que estabelece, no seu art. 40.º, n.º 1, a obrigação de o médico proceder ao registo detalhado e claro das observações clínicas relevantes dos doentes a seu cargo:
«O médico, seja qual for o enquadramento da sua ação profissional, deve registar, de forma clara e detalhada, os resultados que considere relevantes das observações clínicas dos doentes a seu cargo, conservando-os ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo médico.».
- Quer no Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pelo Regulamento n.º 515/2019 de 18 de Junho, cujo artigo 30.º, n.º 5 estabelece o seguinte:
«O médico dentista deve criar e manter atualizada uma ficha clínica individual do doente, da qual conste, de forma detalhada, para além da identificação do médico dentista que realizou o tratamento, os dados pessoais, o histórico de saúde, as observações clínicas, o diagnóstico, o plano de tratamento e os tratamentos realizados, expressos sempre que possível tendo como referência a Tabela de Nomenclatura da OMD.».
Sucede, porém, que nenhuma das referidas normas determina que a ficha clínica ou o registo clínico do paciente constitui documento com força probatória plena quanto à observância ou inobservância das leges artis por parte do médico, conducente à impossibilidade de recorrer a outros meios de prova para apurar tal factualidade (cfr. arts. 364.º, n.º 1 e 393.º, n.º 1, do CC). Na verdade, aquelas normas deontológicas destinam-se, antes de mais, a assegurar que os médicos adoptem um método uniforme no que respeita ao registo dos seus procedimentos clínicos.
Assim, o respectivo valor probatório será apenas aquele que resulta das normas legais indicadas no ponto anterior do presente acórdão, aplicáveis aos documentos particulares, i.e., a força probatória atribuída a tal documento pelo art. 376.º, n.º 1 do CC reporta-se à materialidade das declarações documentadas, mas não à sua veracidade ou exactidão. Saber se o que está documentado ocorreu, de facto, é matéria que não se encontra abrangida pela força probatória do documento em causa, que, nessa parte, pode ser livremente apreciado pelo juiz.
Tanto quanto foi possível apurar, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre a questão em causa. Em sede de alegações recursórias, invoca o Recorrente, a favor da sua posição, o acórdão da Relação de Lisboa de 28.04.2020 (proferido no processo n.º 1765/12.2TVLSB.L1-1, consultável em www.dgsi.pt). Compulsada, porém, a fundamentação deste acórdão, verifica-se que aí não se afirma que o registo clínico goza de força probatória plena quanto à observância das leges artis nos procedimentos descritos e adoptados pelo médico, mas tão somente que aquela documentação constitui um elemento de “prova essencial”, no sentido de ser muito relevante para a demonstração do ocorrido em determinada ocorrência hospitalar. E bem se compreende que assim seja, dado que, no contexto de acções de responsabilidade civil por alegada má prática médica, é sobretudo a partir do processo clínico do paciente que o tribunal poderá compreender os actos executados pelo médico, de modo a averiguar da existência, ou não, de conduta negligente.
No plano doutrinal, são escassas as referências concretas e expressas acerca do valor probatório a atribuir a esta específica documentação. A título exemplificativo, refira-se o trabalho de Bruna Maia Prinzo (A Prova da Responsabilidade Médica [Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32548/1/ulfd134460_tese.pdf] 2017, págs. 81-86), no qual, quanto ao valor probatório da ficha clínica em processo civil, se defende a aplicação das regras gerais relativas à valoração de documentos particulares simples, previstas no art. 376.º do CC, concluindo-se que:
«À ficha clínica assinada pelo médico e à qual o médico reconheça a sua autoria, nos termos do artigo 374.º, n.º 1 do C.C., é atribuída a força probatória plena relativamente às declarações emitidas por este, conforme disposto no n.º 1 do artigo 376.º, do C.C.; sendo que nos restantes casos, ou seja, declarações não assinadas, que não sejam do seu autor, o médico, ou que este não reconheça a autoria, são livremente apreciadas pelo juiz.». (cit., pág. 86)
Do que fica exposto, pode concluir-se que as normas invocadas pelo Recorrente, designadamente as normas constantes do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas, não permitem excluir do regime de prova livre a valoração dos registos clínicos, apesar de o julgador dever atribuir a tal elemento documental um valor reforçado, na medida em que, necessariamente, constitui o ponto de partida da prova do facto, mas sem que, por isso, lhe seja vedado conjugar esses elementos com outros meios de prova, na medida em que aquelas normas legais nada determinam que permita concluir pela exclusão da atendibilidade de outros elementos de prova.
Entendemos, assim, que o tribunal recorrido não se encontrava impedido de recorrer a outros elementos de prova como forma de apurar a veracidade das declarações inseridas nos registos clínicos juntos aos autos, sendo certo que, no caso, não se aplica o comando estatuído no n.º 2 do artigo 376.º do CC, uma vez que o declarado em tal documento (...) não contém qualquer confissão escrita de factos desfavoráveis.
Conclui-se, assim, não se verificar a invocada violação de regras de direito probatório na fixação da factualidade dada como provada.
6. Consequentemente, inscrevendo-se a actividade de valoração dos depoimentos das testemunhas e dos documentos particulares, desprovidos de força probatória plena, no âmbito da livre apreciação da prova pelo tribunal a quo, tal como resulta do disposto no art. 396.º do Código Civil, e do art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo, fica afastada a possibilidade de sindicância, por este Supremo Tribunal, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada pelo Tribunal da Relação. Cfr., neste sentido, e a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 23.04.2020 (proc. n.º 6640/12.8TBMAI.P2.S1) [---], disponível em www.dgsi.pt."
MTS