"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/01/2023

Jurisprudência 2022 (102)


Locação financeira;
embargos de terceiro


1. O sumário de RL 7/4/2022 (10662/20.7T8LSB-A.L2-2) é o seguinte:

I) Os embargos de terceiro visam tutelar a defesa da posse, mas também, qualquer direito incompatível com a penhora ou outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, relativamente a quem não seja parte na causa a que os embargos de terceiro devam ser apensados.

II) É licito ao locatário financeiro, ainda que verdadeiramente não seja um não possuidor, lançar mão de acções possessórias (cfr. artigo 1276.º e ss. do CC), mesmo contra o locador.

III) Pretendendo um terceiro (relativamente a contrato de locação financeira) servir-se de embargos de terceiro para fazer valer a posse material do bem locado, carece de alegar e provar que detém relativamente ao bem uma ligação - v.g. por força da qualidade de cessionária em contrato de cessão de posição contratual, eficaz perante o locado - que lhe permite usar e fruir dele.

IV) A cessão da posição contratual, para produzir efeitos relativamente ao cedido, terá que ser por esta consentida, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 424.º do CC, consentimento que pode ser dado antes (caso em que a cessão deverá ser comunicada ao cedido) ou depois da cessão.

V) O consentimento pode ser expresso ou tácito (cfr. artigo 217.º, n.º 1, do CC), podendo relevar-se através de conduta concludente do contraente cedido, mas não pode resultar do mero silêncio deste, salvo se a lei, uso ou convenção lhe reconhecerem esse valor.

VI) Enquanto não for dado o consentimento, a cessão é ineficaz em relação ao cedido, incumbindo a quem invoca a cessão da posição contratual o ónus de alegação e prova daquele consentimento (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC).

VII) A cessão da posição contratual deverá, de harmonia com o disposto no artigo 425.º do CC, observar a forma imposta por lei para o negócio subjacente, do qual resulta a posição cedida.

VIII) Dispondo o artigo 3.º do D.L. n.º 149/95, de 24 de junho que os contratos de locação financeira podem ser celebrados por documento particular, mas que, no caso de bens imóveis, as assinaturas das partes devem ser presencialmente reconhecidas, salvo se efetuadas na presença de funcionário dos serviços do registo, aquando da apresentação do pedido de registo, a cessão da posição em tais contratos tem de observar tal forma. Tal não sucede se o cedente e o cessionário declaram prescindir do reconhecimento presencial de assinaturas.

IX) Prevendo a cláusula 7.ª das condições gerais do contrato de locação financeira que “o Locatário não poderá ceder a sua posição contratual, sublocar ou permitir, por qualquer forma ou título, a utilização total ou parcial do imóvel por terceiros, sem o prévio consentimento escrito do Locador e sem que o imóvel se encontre devidamente licenciado (…)”, para que a cessão da posição contratual validamente ocorra terá de ser dado o prévio consentimento escrito do locador à transmissão.

X) Neste contexto, a receção de valores relativos ao contrato de locação financeira pelo cedido, não poderá representar um tácito consentimento ou o reconhecimento da embargante como locatária.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CPC, “se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Conforme refere Rui Darlindo (“Embargos de terceiro (em particular, legitimidade subjectiva e objectiva)” in, Revista Jurídica, n.º 14, 2011, Instituto Jurídico Portucalense, p. 274, disponível em: http://repositorio.uportu.pt:8080/bitstream/11328/1407/1/20_RUI-DARLINDO.pdf) os embargos de terceiro traduzem-se num “meio de reacção contra a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens (como o arresto, o arrolamento e o mandado de despejo), fundamentando-se na ofensa da posse ou de qualquer direito de terceiro que é total ou parcialmente incompatível com esses actos, visando impugnar a legalidade dos mesmos com fundamento nessa ofensa”.

Os embargos de terceiro visam tutelar a defesa da posse, mas também, qualquer direito incompatível com a penhora ou outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, relativamente a quem não seja parte na causa a que os embargos de terceiro devam ser apensados.

No caso dos autos, apurou-se, nomeadamente, que resolvido o contrato de locação financeira, a insolvente locatária, ora segunda embargada, não procedeu à restituição do imóvel objeto da locação operada, motivo pelo qual, a primeira embargada instaurou providência cautelar para entrega judicial do imóvel, nos termos do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de junho, providência que foi julgada procedente e decretada a imediata entrega dos imóveis à primeira embargada.

Essa entrega foi tentada concretizar em 08-07-2020 e, depois, em 14-07-2020, tendo-se a embargante aprestado a deduzir embargos em 10-07-2020 para impedir a concretização de tal ato judicialmente ordenado.

Dos autos resulta que entre as embargadas foi celebrado um contrato de locação financeira imobiliária, respeitante ao objeto nele descrito.

O artigo 1.º do D.L. n.º 149/95, de 24 de junho, contém uma definição legal do contrato em questão: “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

Têm sido adotadas várias posições doutrinárias quanto à natureza jurídica deste contrato.

A nosso ver trata-se de um contrato misto, contendo prestações típicas da locação e da compra e venda, mas com um regime jurídico próprio decorrente da indicada legislação específica.

Em termos de regime jurídico, os sujeitos da locação financeira são apenas dois: a entidade locadora e o locatário utilizador do bem. [...]

Em tese geral, a declaração de insolvência da sociedade locatária não prejudica ou altera, por qualquer forma, a adequação processual da providência cautelar prevista no indicado art.º 21.º do D.L. n.º 149/95, de 24 de junho ou a legitimidade das respetivas partes primitivas.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-02-2015 (in Coletânea de Jurisprudência Ano XL, Tomo I, p.246, relatado por MÁRIO SERRANO), "o conceito básico de insolvência é traduzido pela impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, correspondendo os factos-índice ou presuntivos da insolvência a situações cuja ocorrência objectiva pode, nos termos da lei, fundamentar o pedido e que se prendem com a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações." [...]

O bem imóvel objeto da presente providência, uma vez que não integra o conjunto de bens pertencentes ao insolvente, não poderá ser apreendido a favor da massa insolvente, pois, ao invés, trata-se de bem pertencente à sociedade locadora.

Conforme refere Luís M. Martins (Processo de Insolvência, 2016, 4ª Edição, Almedina, p. 297): “Quanto ao património do devedor não incluído na massa insolvente, o devedor pode deles dispor e administrar com total liberdade (sem prejuízo do regime estatuído no n.º 8 e de eventuais ações judiciais levada a cabo pelos credores).”

A respeito dos “negócios em curso” o CIRE limita-se a prescrever, no artigo 102.º, n.º 1, que: “Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.”

Dispõe ainda o artigo 108.º do CIRE o seguinte:

“Artigo 108.º Locação em que o locatário é o insolvente

1 - A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior.

2 - Exceptua-se do número anterior o caso de o locado se destinar à habitação do insolvente, caso em que o administrador da insolvência poderá apenas declarar que o direito ao pagamento de rendas vencidas depois de transcorridos 60 dias sobre tal declaração não será exercível no processo de insolvência, ficando o senhorio, nessa hipótese, constituído no direito de exigir, como crédito sobre a insolvência, indemnização dos prejuízos sofridos em caso de despejo por falta de pagamentos de alguma ou algumas das referidas rendas, até ao montante das correspondentes a um trimestre.

3 - A denúncia do contrato pelo administrador da insolvência facultada pelo n.º 1 obriga ao pagamento, como crédito sobre a insolvência, das retribuições correspondentes ao período intercedente entre a data de produção dos seus efeitos e a do fim do prazo contratual estipulado, ou a data para a qual de outro modo teria sido possível a denúncia pelo insolvente, deduzidas dos custos inerentes à prestação do locador por esse período, bem como dos ganhos obtidos através de uma aplicação alternativa do locado, desde que imputáveis à antecipação do fim do contrato, com actualização de todas as quantias, nos termos do n.º 2 do artigo 91.º, para a data de produção dos efeitos da denúncia.

4 - O locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário com algum dos seguintes fundamentos:

a) Falta de pagamento das rendas ou alugueres respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência;

b) Deterioração da situação financeira do locatário.

5 - Não tendo a coisa locada sido ainda entregue ao locatário à data da declaração de insolvência deste, tanto o administrador da insolvência como o locador podem resolver o contrato, sendo lícito a qualquer deles fixar ao outro um prazo razoável para o efeito, findo o qual cessa o direito de resolução”.

Explicando a articulação entre os artigos 102.º e 108.º do CIRE refere Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência; 7.ª Ed., Almedina, 2019, p. 223) que “[p]or força do art. 108.º, n.º 1, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário. Contrariamente ao princípio geral do art. 102.º, n.º 1, em que o contrato fica suspenso até que o administrador da insolvência decida o seu destino, nos contratos de locação tal não é possível. De facto, uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respetiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (art. 51.º, n.º 1, als. e) e f))” (cfr., ainda sobre o tema, entre outros, José de Oliveira Ascensão; “Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso”, in THEMIS, Revista da FDUNL, 2005, Edição Especial, “Novo Direito da Insolvência”, pp. 113-114).

E refere a mesma Autora (ob. cit., pp. 224-225) que “[n]ão parece (…) excluída a possibilidade de resolução do contrato, com fundamento na falta de pagamento das rendas referentes ao período posterior à data da declaração de insolvência”.

Contudo, no que respeita ao contrato de locação financeira e sua execução, a jurisprudência tem-se pronunciado em sentido algo diverso.

Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-06-2015 (Pº 1393/12.2TBFLG-A.P1, rel. JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA) concluiu-se que “o regime insolvencial do contrato de locação financeira é o previsto nos artigos 102 e 104 do CIRE e não no artigo 108 deste mesmo diploma”. [...]

Ora, resultando dos autos que declarada a insolvência da segunda embargada, em 18-04-2018, em 13-02-2020, a Administradora de Insolvência da mesma, interpelada para o efeito, veio optar pelo não cumprimento do contrato de locação financeira, o que veio a motivar que a segunda embargada promovesse a resolução contratual. [...]

O artigo 11.º do D.L. n.º 149/95,de 24 de junho regula sobre a transmissão das posições jurídicas do contrato de locação financeira dispondo o seguinte:

“1 - Tratando-se de bens de equipamento, é permitida a transmissão entre vivos, da posição do locatário, nas condições previstas pelo artigo 115.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e a transmissão por morte, a título de sucessão legal ou testamentária, quando o sucessor prossiga a actividade profissional do falecido.

2 - Não se tratando de bens de equipamento, a posição do locatário pode ser transmitida nos termos previstos para a locação.

3 - Em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, o locador pode opor-se à transmissão da posição contratual, provando não oferecer o cessionário garantias bastantes à execução do contrato.

4 - O contrato de locação financeira subsiste para todos os efeitos nas transmissões da posição contratual do locador, ocupando o adquirente a mesma posição jurídica do seu antecessor.”.

Conforme refere Fernando de Gravato Morais (Manual da Locação Financeira; Almedina, 2006, p. 98), “[p]ode enunciar-se quanto à transferência inter vivos da situação jurídica do locatário a seguinte regra: essa transmissão ocorre de acordo com as normas vigentes em sede de mera locação (art. 11.º, n.º 2 DL 149/95).

Esta cessão, como expressa o art. 1059.º, nº 2 CC, “está sujeita ao regime geral dos artigos 424.º e seguintes”.

Destes preceitos emerge que tal transferência necessita sempre do consentimento do locador financeiro, não sendo, portanto, a cedência da posição contratual do locatário forçada ou imperativa em relação àquele.

O princípio enunciado encontra-se em consonância com as disposições do regime jurídico da locação financeira (…).

Se o locatário transferir a sua posição jurídica sem a respectiva aquiescência do locador, estamos perante uma situação de incumprimento do contrato de locação financeira que pode acarretar a sua resolução por parte do locador (art. 17.º DL 149/95 e arts. 432.º ss. CC)”.

Como resulta dos autos, a embargante (terceiro relativamente ao contrato de locação financeira) veio alegar que ocorreu uma cessão da posição contratual do primitivo locatário (a segunda embargada) para si, cessão que o locador (a ora recorrente e primeira embargada) teria invocadamente reconhecido.

Ora, sucede que, conforme resultou da decisão tomada em sede de apreciação da impugnação sobre a matéria de facto, não se validou o juízo tomado pelo Tribunal recorrido no sentido de que tal cessão da posição contratual teve lugar e, designadamente, com data de 31-03-2015, elementos que caberia à embargante demonstrar, o que não fez [...].

Tanto basta para a improcedência da pretensão deduzida pela embargante e, consequentemente, para a revogação do decidido."

[MTS]