"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2023

Jurisprudência 2022 (111)


União de facto;
acção de apreciação negativa


1. O sumário de RP 7/4/2022 (117/20.5T8VLG.P1) é o seguinte:

I - A ação proposta pela Segurança Social a pedir que se declare que não existia união de facto entre a Ré e o falecido configura uma ação de simples apreciação negativa, tal implicando a inversão do ónus da prova (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).

II - União de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

III - A comunhão de habitação é um elemento integrante da vivência em comum, podendo revelar-se em mais do que uma residência.

IV - Se o falecido e a Ré, no decurso da sua relação, que se manteve por cerca de dezasseis anos, dormiam todos os dias juntos, a circunstância de o fazerem alternadamente nas residências que cada um dispunha, não afasta a existência de comunhão de habitação.

V - Pode existir vida em comum com separação de economias.

V.I - Apesar de se desconhecer como era efetuado o apoio mútuo em termos de rendimentos e despesas, provada a comunhão de leito, mesa e habitação, deve improceder o pedido da Segurança Social no sentido de não se reconhecer a alegada união de facto.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente Instituto de Segurança Social, pretende que se declare que a Ré e BB não viviam em união de facto, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 7/2001, de 11/05.

Está em causa uma ação de simples apreciação negativa (Ac. R. C. de 25/09/2018, processo n.º 162/16.5T8IDN.C1, www.dgsi.pt.), competindo assim à Ré a prova de que ocorria essa vivência em comum (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).

Nos termos do artigo 1.º, n.º 2, da citada Lei n.º 7/2001, de 11/05, a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Os cônjuges, nos termos do artigo 1577.º, do C. C., visam constituir família mediante uma plena comunhão de vida a qual se regerá pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672.º, do C. C.).

Estando em causa uma vivência em conjunto livremente decidida, sem ser estabelecido um contrato escrito, tem que se ponderar, casuisticamente, se a relação entre as duas pessoas se pode considerar como vivendo em condições análogas a pessoas casados.

E, não prevendo a lei que os unidos estão obrigados a deveres tal como sucede com os casados entre si, não têm que ser observados, entre os membros da união, aqueles deveres acima referidos (Ac. R. P. de 13/06/2018, processo n.º 658/15.6T8GDM.P1, www.dgsi.pt).

Mas, estando o modo de vida dos unidos dependente da sua livre vontade, tal não significa que, se duas pessoas decidirem adotar uma comunhão de vida, ao cooperarem e auxiliarem-se mutuamente, não estejam também a manifestar sinais de que existe na realidade essa vida em comum.

Ou seja, se existe uma ajuda mútua entre os unidos, a nível pessoal e económico, isso pode servir para demonstrar que existe união de facto.

Naturalmente que é pressuposto desta união que a comunhão seja abrangente, aceitando-se que deve incidir no que se define de comunhão de leito, mesa e habitação (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 4.ª, página 62).

No que respeita à comunhão de leito e mesa, pensamos que não há qualquer questão a apreciar pois resulta provado que desde 8 de janeiro de 2002 a Ré e o BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama e tinham uma vida social em comum (f).

O recorrente questiona que exista uma comunhão de habitação.

Vejamos então.

Nos termos do artigo 1673.º, do C. C., temos que, em relação à coabitação no casamento:

. os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar (n.º 1);

. salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adotar a residência da família (n.º 2).

Temos então que, num casamento, os cônjuges devem escolher a sua residência de família, ou seja, aquele local onde centram a sua vida em comum e consideram o seu domicílio. Podem os membros do casal ter outras residências (por motivos profissionais ou de saúde, por exemplo) mas devem adotar aquela residência onde têm que viver (por isso é que, não havendo acordo na fixação da residência, a requerimento dos cônjuges, o tribunal decide qual é a residência de família (n.º 3, do citado artigo 1673.º).

É legalmente admitido ter duas residências alternadas (artigo 82.º, n.º 1, 2.ª parte, do C. C.), considerando-se que se está domiciliado em qualquer uma delas.

Para se verificar essa residência alternada, tem de ocorrer, em ambas, todo o circunstancialismo que se congrega naquela residência de família.

Como menciona Antunes Varela, in R. L. J. n.º 123, página 159, «essencial para que possa falar-se em residências alternadas, de acordo com o espírito da lei, é que a pessoa tenha nos vários lugares verdadeira habitação, casa montada ou instalada (e não simples quarto de pernoita ou gabinete de trabalho) e que a situação seja estável, goze de relativa permanência, e não haja simples morada ocasional, variável de ano para ano, ou de mês para mês ...»

No caso concreto, com interesse para a análise desta questão, já sabemos que desde 08/01/2002 que a Ré e BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama mas como a Ré tinha (e tem) um andar próprio seu, sito na Rua ..., em ..., alternavam a sua pernoita, ora na residência do entretanto falecido, sita na Rua ..., ..., ..., ..., e que era arrendada, ora no acima referenciado andar pertença da Ré, nunca por isso a Ré tendo alterado a respetiva morada fiscal (alíneas h e i);

k) A Ré cozinhava para ambos, tratava da roupa de ambos e zelava pela limpeza, tanto da acima mencionada casa arrendada do falecido, sita em ..., quanto da sua própria casa, sita em ....

Temos ainda que BB nasceu em .../.../1943 e faleceu em .../.../2019 e a Ré nasceu em .../.../1946.

Assim, quando se iniciou o relacionamento em causa, teriam então BB 59 anos e a Ré 56 anos; isto permite concluir que ambos já teriam uma vida estabilizada no que respeitava à sua residência, cada um com a sua própria – a Ré num imóvel sua pertença e o falecido num imóvel arrendado, tal como resulta provado -.

É certo que quando duas pessoas decidem encetar uma vida em comum, a ideia base é a de se ir viver juntos, implicando essa ideia a de existir uma mudança para um local onde se vai concretizar a vivência.

Se cada um decide continuar a viver na sua própria residência, essa vivência em comum já exclui o que será a fonte não só do estar-se junto como o de começar a desenvolver todos os outros aspetos de uma relação em comunhão como, por exemplo, a assunção de despesas com a manutenção da residência – se cada um tem a sua residência, é natural que cada um assuma as suas próprias despesas em relação à respetiva residência; se houver uma residência comum, ou mesmo duas, a tendência deverá ser a de se partilhar o custo com a sua manutenção pois é (são) usufruída(s) por ambos -.

O que resulta é que ambos (Ré e falecido), passando os dias juntos, acabavam por pernoitar nas duas residências, naturalmente ora numa ou noutra; com esta atuação, pensamos que não se deve concluir que essas pessoas não tinham uma comunhão de habitação pois havia essa comunhão, com a diferença que, em vez de se só numa habitação, era em duas.

Atendendo a já terem uma situação pessoal estabilizada, terão tido a intenção de estabelecer duas residências alternadas no sentido que já acima apontamos: passando os dias juntos e adotando uma postura semelhante às dos cônjuges – tomando refeições em conjunto -, no fim do dia, querendo adotar uma comunhão de leito, assumiram que qualquer um dos imóveis constituía a sua habitação para aí dormirem juntos.

Por isso, também existiu a apontada comunhão de habitação.

É certo que o material fáctico carreado poderia ser mais vasto, sabendo-se que, em cada residência, havia bens pessoais do outro membro ou que ambos custeavam as despesas de manutenção desses imóveis (despesas de água, eletricidade, gás, renda, amortização de empréstimo, pagamento de quotas de condomínio).

Ainda assim, apurou-se que a Ré procedia à limpeza de ambos os imóveis, o que mostra não só a sua cooperação no seio da união como o sentir que estava em causa um local a que também tinha ligação.

A questão da falta de alteração da morada fiscal da Ré (que manteve a da sua residência em imóvel próprio) acaba por não ser relevante pois, na nossa visão, o imóvel que lhe pertencia era efetivamente a sua habitação, tal como era a BB; note-se que não estão em causa pernoitas ocasionais mas sim pernoitas constantes (ainda que não diárias) durante cerca de dezasseis anos (de 08/01/2002 a 27/05/2018).

Uma última nota: a questão da comunhão de habitação pode, em determinadas situações, não ser tão essencial como, por exemplo, pensamos que o recorrente pretende fazer realçar. Se de todo o circunstancialismo se denota que duas pessoas comungam a sua vida em múltiplos aspetos, acabando por a residência ser algo que não assume muito relevo para a vida como um casal, pode entender-se que existe uma união de facto. No Ac. do S. T. J. de 23/09/2021, processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, www.dgsi.pt, numa situação de revisão de sentença estrangeira provinda do Brasil em que não era claro que existisse comunhão de habitação (inexigível no ordenamento brasileiro), acaba por se afirmar que e ainda que se deva reconhecer que a coabitação é um requisito indispensável à verificação de uma união de facto no direito português, a sua não verificação não atingiria qualquer resultado intolerável na nossa ordem jurídica, posto que verificada a vinculação recíproca pelos demais deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, tal como referidos no artº 1672º CCiv, sumariando-se que «III – Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa.».

No caso concreto, conclui-se, no entanto, que havia comunhão de habitação entre as pessoas em causa, o que já seria suficiente para concluir pela improcedência do recurso.

Mas o recorrente ainda suscita que não havia economia comum entre as mesmas pessoas.

No que respeita à vivência em comum quanto ao dever de assistência em relação a pessoas casadas, temos que:

. artigo 1674.º, do C. C. - o dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram

 . artigo 1675.º, do C. C. - o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (n.º 1);

. artigo 1676.º, do C. C. - o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afetação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos (n.º 1).
 
Vivendo-se em comum, à partida, resultará uma repartição de despesas e proveitos entre os membros, por mais diminuta que possa ser (veja-se Ac. R. E. de 02/05/2019, processo n.º 94/14.1T8VRS.E1, no mesmo sítio). Se não houver qualquer contribuição entre os dois membros, sem se lograr descortinar se existe algum acordo, expresso ou tácito, nesse sentido, pode comprometer-se a conclusão [de] que aquelas duas pessoas viviam em condições análogas às dos cônjuges.

Se cada um mantém separada a sua vida patrimonial, sabendo-se que, numa vivência em comum, essa separação é algo que pode ser difícil de suceder, exceto se não houver uma firme determinação nesse sentido, a conclusão da existência de união de facto pode encontrar dificuldades neste aspeto.

Ora, dos factos, nesta vertente de auxílio económico mútuo, não ressalta qualquer situação que nos permita concluir como era a vida em conjunto.

Mas, tal como no casamento, sob o regime de separação de bens (artigo 1735.º, do C. C.), em que cada um mantém, como próprio, o seu património, é de admitir que se possa estabelecer um tipo de vivência de facto em comum com essa semelhança até por, legalmente, não estarem obrigados ao dever de assistência.

Assim, a ausência de prova do modo como a Ré e BB dividiam os custos e rendimentos, não significa que não haja prova daquela tripla comunhão acima referida.

Por último, além dos factos acima referidos, tendo em atenção que se provou ainda que:

. comemoravam os respetivos aniversários juntos (alínea g);
. ambos se interessavam mutuamente pela saúde e bem-estar um do outro (alínea j);
. a Ré cozinhava para ambos e tratava da roupa dos dois (alínea k);
. por todos quantos com eles contactavam eram reconhecidos como companheiros e faziam a vida em comum como se fossem marido e mulher, ajudando-se mutuamente na vida diária (alínea l);
. a Ré suportou o pagamento do funeral do falecido (alínea p);
. no Hospital ..., onde acabou por falecer, BB referiu-se à Ré como sendo a sua companheira, pediu que a mesma fosse considerada como interlocutora de referência caso não estivesse em condições de exprimir as suas preferências e pediu que todos os seus pertences fossem entregues à mesma (alínea q) sendo que todas as reuniões com os médicos foram tidas com a ora Ré (alínea r);
. a Ré viveu com BB e acompanhou-o até à data da sua morte (alíneas),

pensamos que se demonstra uma intensa ligação entre estas duas pessoas, durante muitos anos e até ao fim da vida de um dos seus membros.

A existência dessa união passou a ser percetível para com quem convivia com os dois, incluindo os médicos que trataram de BB, pelo que não vemos que a circunstância de não dormirem juntos sempre na mesma habitação possa afastar a conclusão [de] que viveram juntos, em união de facto, por cerca de dezasseis anos. [Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, 3.ª edição, página 124, «fundamental é que os membros da união de facto vivam como sendo casados, em comunhão plena de vida, criando uma aparência de vida matrimonial».]

Improcede assim o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida."

[MTS]