"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/01/2023

Jurisprudência 2022 (97)


PER;
acção de despejo


1. O sumário de STJ 21/4/2022 (7004/19.8T8VNF.G1.S1) é o seguinte:

I. A extinção das ações em curso aquando do início do PER, movidas contra o devedor para cobrança de dívidas, em consequência da homologação judicial de um plano de recuperação, tem a sua razão de ser no facto desse plano redefinir o modo de satisfação daquelas dívidas, podendo, inclusive, modificar o conteúdo das prestações obrigacionais, o que determina uma impossibilidade de prosseguir um litígio que deixou de ter a sua causa, verificando-se um fenómeno extintivo semelhante ao que ocorre nas transações judiciais.

II. Sendo este o fundamento dos efeitos processuais extintivos da homologação do plano revitalizador, apenas devem considerar-se abrangidos por essa consequência os processos, nos quais se exerçam judicialmente os direitos de crédito sobre o devedor afetados pelas medidas previstas no plano, sendo irrelevante se essas ações são do tipo executivo ou meramente declarativas.

III. Se não é preciso um credor participar na negociação e na aprovação do Plano para ver o seu crédito afetado pelas medidas nele contidas é, contudo, necessário que lhe tenha sido dada essa oportunidade, ou porque o crédito foi reconhecido no PER ou porque, apesar de não o ter sido, após impugnação, o juiz lhe conferiu essa possibilidade, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE.

IV. Não deixam de estar nesta situação os titulares dos créditos parcialmente reconhecidos.

V. Deve ser declarada extinta, nos termos do artigo 17.º - E, n.º 1, do CIRE, uma ação de despejo movida contra uma sociedade, com fundamento na falta de pagamento de rendas, quando essa sociedade foi objeto de um plano de revitalização aprovado e homologado num PER que perdoou 80% do valor das rendas em dívida e diferiu para momento futuro o pagamento dos restantes 20%.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. A homologação do plano e a extinção das ações em curso

Neste recurso discutem-se as repercussões da homologação de um plano de revitalização de uma sociedade numa ação de despejo movida pelos senhorios, em que essa sociedade é demandada, com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas.

Na primeira instância foi proferido na ação de despejo despacho de extinção da instância, por aplicação do disposto no artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE.

Em recurso de apelação, o acórdão do Tribunal da Relação validou esta decisão.

O Processo Especial de Revitalização (PER) consiste num meio processual, de cariz essencialmente negocial, que visa a revitalização económica dos devedores em situação de insolvência iminente, tendo sido instituído pelo legislador com o objetivo específico de alcançar a recuperação do devedor que ainda é passível de uma viabilização económica. Pretende-se, através de um plano desenhado para retirar o devedor das dificuldades económicas que atravessa e que tenha o voto favorável da maioria dos credores, evitar a insolvência daquele.

Nada obstando a que o tribunal homologue esse plano, as suas medidas terão repercussão nas obrigações patrimoniais do devedor, tendo o legislador também previsto consequências para os processos em que se exija o cumprimento dessas obrigações.

O artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, foi recentemente objeto de alterações pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, as quais entraram em vigor em 11.04.2022 (artigo 12.º da referida Lei). No entanto, a nova redação dos artigos 17.º-C a 17.º-F do CIRE só se aplica aos PER instaurados após a data da sua entrada em vigor (artigo 10.º), pelo que a este caso há que continuar a aplicar o disposto naqueles artigos, na redação do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, não havendo razões para considerar que estamos perante alterações de cunho interpretativo, uma vez que as mesmas visaram transpor para a ordem interna portuguesa a Diretiva (EU) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, e não resolver as dúvidas de interpretação dos anteriores preceitos.

O artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, na redação do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, dispunha o seguinte:

A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.

Os efeitos suspensivos das ações em curso e impeditivos da propositura de novas ações são desencadeados pelo despacho inicial de recebimento do PER, através da nomeação do administrador judicial provisório (a decisão referida no n.º 4, do artigo 17.º-C, do CIRE), perdurando esses efeitos até ao trânsito em julgado da homologação do plano de recuperação aprovado pelos credores. Já o efeito extintivo das ações em curso à data do recebimento do PER ocorre com o trânsito em julgado desta última decisão.

A ambiguidade da expressão “ações para cobrança de dívidas”, utilizada no transcrito artigo 17-º-E, n.º 1, do CIRE, para genericamente denominar os processos abrangidos pelos efeitos suspensivos, impeditivos e extintivos do PER, suscitou diferentes leituras quanto ao leque das ações abrangidas por estes efeitos.

A extinção das ações em curso aquando do início do PER, movidas contra o devedor para cobrança de dívidas, em consequência da homologação judicial de um plano de recuperação, tem a sua razão de ser no facto desse plano redefinir o modo de satisfação daquelas dívidas, podendo, inclusive, modificar o conteúdo das prestações obrigacionais, o que determina uma impossibilidade de prosseguir um litígio que deixou de ter a sua causa, verificando-se um fenómeno extintivo semelhante ao que ocorre nas transações judiciais [---].

Sendo este o fundamento dos efeitos processuais extintivos da homologação do plano revitalizador, apenas devem considerar-se abrangidos por essa consequência os processos, nos quais se exerçam judicialmente os direitos de crédito sobre o devedor afetados pelas medidas previstas no plano [Neste sentido, CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Almedina, 2021, pág. 454.], sendo irrelevante se essas ações são do tipo executivo ou meramente declarativas [---]. Na verdade, tal como sucede nas ações executivas, também nas ações declarativas, as alterações produzidas pelas medidas do plano nos créditos cuja existência se pretendia ver reconhecida, podem determinar uma impossibilidade superveniente de prosseguimento da lide [---].

Dispunha o artigo 17.º-F, n.º 10, do CIRE, na redação do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4, do artigo 17-C (nomeação do administrador provisório) e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.

Como refere CATARINA SERRA [Lições de Direito da Insolvência, cit., pág. 453.], o plano de recuperação converte-se, assim, num instrumento contratual atípico, dotado de características que não estão ao alcance da autonomia privada – num contrato com “eficácia reforçada”. É a lei que opera esta transformação: ela restringe a liberdade individual e subordina-a à vontade coletiva ou da maioria, ou, por outras palavras, substitui a regra do consentimento individual, típica dos contratos, pela regra do consentimento coletivo.

Se não é preciso um credor participar na negociação e na aprovação do Plano para ver o seu crédito afetado pelas medidas nele contidas é, contudo, necessário que lhe tenha sido dada essa oportunidade, ou porque o crédito foi reconhecido no PER ou porque, apesar de não o ter sido, após impugnação, o juiz lhe conferiu essa possibilidade, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE [CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência, cit., pág. 454.].

Na presente ação, os Autores pediram a resolução do contrato de arrendamento da qual a 1.ª Ré (cujo plano de revitalização foi, entretanto, judicialmente homologado) era locatária, com fundamento na falta de pagamento de rendas, e o subsequente despejo do arrendado, além da condenação daquela e dos seus fiadores (os 2.º e 3.º Réus) no pagamento das rendas vencidas e vincendas, juros de mora e sanção pecuniária compulsória.

Os Autores vieram ainda deduzir, por duas vezes, pedido de despejo imediato, por falta de pagamento de rendas no decurso da ação, nos termos do artigo 14.º, n.º 5, do NRAU, os quais não chegaram a ser apreciados. [...]

2.4. O pedido de resolução do contrato de arrendamento

Os Autores formularam pedido de resolução do contrato de arrendamento celebrado com a 1.ª Ré, com fundamento na falta de pagamento de rendas, e o consequente despejo do arrendado.

Não estamos perante o exercício de um direito à realização de uma prestação, mas sim perante o exercício de um direito potestativo de extinção de uma relação contratual, com fundamento na violação de obrigações nela assumidas, pelo que este pedido, em princípio, não integraria o conceito das ações de cobrança de dívidas para os efeitos extintivos da homologação de plano de reestruturação no âmbito de um PER.

Contudo, há que ter presente que, numa ação em que se deduza um pedido de resolução de um contrato de arrendamento, com fundamento na falta de pagamento de rendas, é possível ao arrendatário demandado fazer caducar o direito à resolução do contrato, se até ao termo do prazo para a contestação, pagar ou depositar ou consignar em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1, do artigo 1041.º do Código Civil (artigo 1048.º, n.º 1, do Código Civil).

A apreciação do pedido resolutivo será, pois, influenciada pelo pagamento das rendas, cujo atraso o justifica, até ao termo do prazo para o arrendatário demandado contestar.

Note-se que nesta ação, conforme já foi decidido por despacho proferido na audiência prévia, transitado em julgado, o prazo para contestar esteve suspenso desde 30.12.2019 (data em que foi proferido o despacho que nomeou o administrador judicial provisório) até 22.09.2020 (data em que transitou o despacho que homologou o plano de reestruturação da 1.ª Ré).

Ora, perante a redução do valor das rendas em dívida e do diferimento do prazo para pagamento desse valor reduzido para datas futuras, por força da homologação do referido plano de reestruturação, a obrigação de pagamento das rendas que fundamentavam o pedido resolutivo e cuja satisfação até ao termo do prazo para contestar influenciava a decisão a proferir sobre a resolução do contrato, passou a ter um novo conteúdo, estando ainda longe a data do seu vencimento, o que impossibilita que, nesta ação, se possa verificar a subsistência do direito resolutivo invocado, uma vez que ficou prejudicada a possibilidade da 1.ª Ré fazer caducar o direito à resolução do contrato através do pagamento das rendas em dívida no prazo que dispunha para contestar.

Por estas razões, deve também considerar-se extinta a presente ação, relativamente aos pedidos de resolução do contrato e consequente despejo do arrendado, formulados pelos Autores."

[MTS]