Impugnação pauliana;
terceiro adquirente; embargos de terceiro
I – Na ação pauliana, a sentença de procedência não afeta a validade do negócio, mantendo-se a transmissão do bem, embora facultando ao credor impugnante o direito de se fazer pagar pelo produto de tal bem, como se ele ainda fizesse parte do património do alienante.
II – Tendo em conta que só podem ser penhorados bens de quem tenha a posição de executado, em caso de procedência da ação pauliana a execução terá de ser intentada contra o terceiro adquirente (obrigado à restituição), sob pena de este poder embargar de terceiro.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O juiz a quo proferiu o seguinte despacho a indeferir liminarmente os presentes embargos, e de que agora se recorre:
“CC e DD, deduziram embargos de terceiros, contra AA, alegando que foi penhorado 1/3, no direito de propriedade de BB, sobre a fracção autónoma designada pela letra ..., composta de ... - TIPO (…) não pertencendo este prédio ao executado BB.Alegam e provam os embargantes que por sentença proferida pelo Juízo Local Cível ..., confirmada pelo Tribunal da Relação ..., foi declarado ineficaz em relação à Autora (aqui requerida), o negócio jurídico celebrado entre os Réus (o executado e os aqui requerentes) que corresponde “a escritura de 28.07.2008 formalizou, no que à entretanto constituída fracção autónoma designada pela ..." do prédio sito na Rua ..., ..., em ..., condenando os Réus a reconhecer a ineficácia do negócio em que participaram, relativamente à Autora e, consequentemente, a não se oporem à execução da fracção "B" do prédio urbano descrito na C.R. Predial sob o nº ...18 da ..., no seu património e que a mesma Autora pratique, sobre a aludida fracção autónoma, os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, na medida necessária à satisfação dos seus interesses, tudo nos termos do art. 616º e segs. do C.Civil”.Afirmam ainda que apesar de ter sido penhorado 1/3 do referido prédio, o valor inscrito como quantia exequente excede em muito o valor do crédito que foi judicialmente reconhecido o que ofende a sua propriedade.Foram juntos documentos, designadamente acórdão do Tribunal da Relação ... que confirma a decisão invocada e bem assim certidão do registo predial onde se vislumbra a inscrição da decisão e basilar dos embargos de terceiro é a titularidade, por parte de um terceiro relativamente a uma determinada causa judicial, da posse ou qualquer direito sobre determinada coisa que seja ofendido por um acto judicial de penhora, de apreensão ou de entrega de bens.Na verdade, da análise dessa documentação e aceitando os requerentes o teor da decisão do Tribunal da Relação ..., sempre se dirá que em relação à exequente, aqui requerida, o prédio em causa nos autos é ainda pertença do executado, pelo que na quota que lhe é devida (e que não foi aqui questionada) poderá ser alvo de penhora como foi.
No mais, quanto à quantia exequenda indicada, tal poderá ser apenas objecto de oposição à penhora, mas não já de embargos de terceiro, sendo certo que, a requerida apenas se poderá fazer pagar da venda de 1/3 do sobredito prédio e não mais, independentemente do valor indicado à penhora, o que nunca irá ofender a propriedade dos requerentes.Em face do exposto, por manifesta improcedência, indefere-se liminarmente os embargos de terceiro.”
Insurgem-se os Apelantes contra o decidido [...].
Desde já se adianta ser de dar razão aos Embargantes/Apelantes.
Em primeiro lugar, e ao contrário do afirmado na decisão recorrida, o direito penhorado não é pertença do executado BB.
Aquela sentença, a decretar a “ineficácia” da alineação relativamente ao credor impugnante, não afeta a validade do negócio – o efeito de tal alienação consistente na transmissão da propriedade para o comprador mantém-se, concedendo, tão só, ao credor impugnante o direito a fazer-se pagar pelo produto de tal bem, tal como se ele ainda fizesse parte do património do alienante.
Dispõe o artigo 616º, nº1, do Código Civil (CC), que “julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.
A expressão “direito à restituição” não significa a reentrada dos bens alienados no património do devedor, num movimento retroativo, mas unicamente a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante – que, independentemente da sua (nova) situação jurídica, continuam expostos aos meios conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante [João Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, 3ª ed., Almedina, p. 207.].
Os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido, não havendo qualquer retorno ao património do devedor [Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Garantias das Obrigações”, Almedina, p. 95.]. Não constituindo a impugnação pauliana uma ação de anulação, mantém-se válido e eficaz o ato celebrado entre o devedor e o terceiro [Luís Menezes Leitão, obra citada, p. 97.].
A impugnação, paralisando os efeitos de negócio válido apenas em relação a determinadas pessoas, constituiu um caso de ineficácia relativa, strito sensu [Maria de Fátima Ribeiro, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, coordenação de José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, p. 725.].
O direito de propriedade do adquirente sobre os bens em causa é um direito debilitado, uma vez que estes respondem por dívida de terceiro [João Cura Mariano, obra citada, p. 208.].
Ou seja, e ao contrário do que se fez constar da decisão recorrida, o exequente tem o direito de executar a referida B), não porque a mesma “seja ainda pertença do executado”, mas, porque, na procedência da ação de impugnação pauliana que instaurou contra o devedor/ aqui executado, e nos precisos termos em que aí lhe foram reconhecidos, lhe foi concedido o direito à satisfação do seu crédito, pelo produto da venda da fração ..., independentemente de a propriedade da mesma ter sido transmitida a terceiro.
Encontramo-nos, assim, perante a penhora de um direito da titularidade de terceiro, terceiro este que não foi chamado à ação executiva.
O artigo 818º do Código Civil (CC), consagra um desvio ao princípio geral resultante do artigo 616º CC, de que a garantia geral das obrigações é constituída pelo património do devedor, ao dispor que “O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objeto de ato praticado em prejuízo do credor, que este haja precedentemente impugnado”.
A regra geral, que não admite exceções, é a de que só podem ser penhorados bens de quem tenha a posição de executado [---].
Como tal, para serem penhorados bens de terceiro, este terá de ser parte na ação executiva, tendo a execução de ser, sempre, movida contra esse terceiro [---], em conformidade com o disposto no artigo 735º, nº2 CPC, segundo o qual, “nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele”, e ainda, com o disposto no artigo 54º, nº2, CPC.
Em caso de procedência da ação pauliana, a ação executiva terá de ser intentada contra o terceiro que se encontre obrigado à restituição dos bens objeto de impugnação [---].
Não tendo sido o terceiro chamado à execução, coloca-se a questão de saber qual o meio colocado à sua disposição para reagir contra tal ilegalidade.
Sendo há muito discutido qual o meio de defesa atribuído ao terceiro cujos bens, respondendo pela dívida exequenda, foram objeto de penhora, sem que a execução tenha sido contra si intentada, duas posições opostas se destacaram: entre aqueles que, como Castro Mendes [João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, Lisboa, Associação Académica, 1989, p. 396. No Acórdão nº 503/2004, de 13 de julho (DR, IIª Série, de 02.11.2004), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma constante do artigo 1037º, nº2 do CPC, na redação anterior à Reforma processual civil de 95/96, interpretada no sentido de não considerar terceiro, para efeito de dedução de embargos, quem, arrogando-se a propriedade do bem penhorado, não foi demandado na ação executiva, ainda que tenha tido intervenção na escritura de constituição da hipoteca em que esse bem foi dado como garantia de uma dívida de terceiro.], afirmavam ser injusto não reconhecer ao terceiro a possibilidade de embargar de terceiro, e aqueles que sustentavam que, se o sujeito não foi demandado, a defesa naturalmente indicada e apropriada é a que cabe ao executado não citado e que lhe era então atribuída pelo artigo 921º (situação atualmente regulada no artigo 851º do CPC): a anulação da execução [Cfr., Anselmo de Castro, segundo o qual os embargos de terceiro se encontrariam reservados “aquele cujos bens estejam a ser executados como se fossem do executado” – “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3 ed., Coimbra Editora, pp. 356 e ss., e Miguel Mesquita, “Apreensão de bens (…)”, p. 104.].
Com a reforma de processual de 1995/1996, que deixou de configurar os embargos de terceiro como um meio de defesa da posse, alargando o seu âmbito à ofensa de qualquer direito incompatível com o âmbito da diligência, a doutrina e a jurisprudência estabilizaram no sentido de que o terceiro cujo bem tenha sido objeto de penhora, ainda que o mesmo responda substancialmente pela dívida, se poderá defender socorrendo-se de embargos de terceiro.
“Em consequência, se forem penhorados bens que pertençam a terceiro, embora este possa responder pela dívida, em termos substantivos, se a ação executiva não for movida contra ele, o mesmo poderá deduzir embargos de terceiro, como meio de defesa da penhora dos seus bens, nos termos dos artigos 342º e ss. do CPC” [Maria Victoria Rocha, “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, pp. 1191 e 1194.].
Ou, segundo Marco Carvalho Gonçalves, nas situações de terceiro vinculado à garantia do crédito, “caso o exequente não proponha a ação executiva contra o terceiro e a penhora venha a incidir sobre bens onerados pertencentes a esse terceiro, nesse caso é-lhe licito defender a incompatibilidade da sua posse ou do seu direito com esse ato ofensivo e reagir, consequentemente, em sede de embargos de terceiro. Com efeito, apenas podem ser penhorados bens do executado, independentemente da sua posição substantiva em relação à obrigação [“Embargos de Terceiro na Ação Executiva”, Coimbra Editora, p. 291.]”.
Os embargos de terceiro podem ser definidos como o “incidente pela qual quem não é parte no processo pede a extinção da penhora, apreensão ou entrega judiciais ofensivas de posse ou direitos seus”, tratando-se de um meio de defesa perante uma penhora ou apreensão subjetivamente ilegais [Rui Pinto, “A Acção Executiva”, AAFDL 2018, p.700.]”.
Segundo tal autor, os embargos de terceiro abrangem, não só a defesa da posse, mas também qualquer ato incompatível com a realização ou o âmbito da diligencia strito sensu [Obra citada, p. 708.].
Assim sendo, e partindo da assunção de que – : i) nunca podem ser penhorados bens de terceiros à execução, mesmo quando, a título excecional em face dos critérios de legitimidade do art. 53º, um terceiro possa ser executado, ii) o direito de terceiro não pode nunca ser objeto de nenhuma restrição ou exclusão de exercício por meio da penhora, sem que o seu titular seja citado como executado, nos termos do art. 54º, nº4”, e de que iii) não pode haver direitos de terceiro à execução que caduquem com a venda executiva, ex. vi artigo 824º, nº2, segunda parte, CC, sem citação do seu titular, sendo oponíveis” –, conclui que, se não for citado, o terceiro pode embargar [Obra citada, pp. 700, 718 e 719,].
A qualquer direito substantivo deverá corresponder um meio processual de o tornar efetivo.
Sendo o incidente de oposição à penhora um meio de oposição privativo do executado (e do seu cônjuge, por via do disposto no art. 787º, nº1 CPC), também a possibilidade de invocação da nulidade ou falta de citação, a que se reporta o artigo 851º CPC, com anulação de tudo o que for praticado, é atribuída ao “executado”, ou seja, tendo em vista aquele contra quem, tendo sido interposta a execução, vê correr a execução sem que para a mesma tenha sido citado.
Ora, quando são penhorados bens de terceiro, contra o qual não foi deduzida a execução, não bastaria a esse terceiro invocar a sua falta de citação, tendo, ainda, que alegar e provar que a execução contra si deveria ter sido movida e não foi.
Daí que, sendo os embargos de terceiro utilizáveis perante “quem não é parte na causa” (artigo 342º, nº1), e por quem goza de direito incompatível com o âmbito da diligência, a dedução de embargos de terceiro surge como meio adequado à defesa do terceiro que vê um seu bem penhorado bem execução, ainda que o mesmo responda substancialmente pela dívida, sem que ao proprietário seja dada a possibilidade de intervir na execução, com todos os direitos inerentes à posição de executado (entre os quais se incluirá o direito a deduzir oposição à própria execução, à penhora e a pronunciar-se quanto a toda e qualquer questão relacionada com a venda executiva do bem de que é proprietário).
Concluindo, não podendo penhorar-se bem de terceiro sem que o mesmo seja chamado à execução, a invocada situação, da sua não citação para ação, atribui àquele o direito a embargar de terceiro.
Quanto à questão relacionada com o valor do crédito exequendo que se encontra garantido pelo direito a que se reporta a ação de impugnação pauliana, ficará prejudicada no caso de procedência dos presentes embargos de terceiro (sendo questão a suscitar por este, enquanto executado, na execução que contra si venha a ser deduzida).
Como tal, não podiam os embargados de terceiro ter sido objeto de decisão de indeferimento liminar, pelo que a apelação será de proceder, com a sequente revogação da decisão recorrida."
[MTS]
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