Interesse processual
A circunstância de o cidadão, nos termos do disposto no artigo 116.º do Código do Registo Predial, ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo.
É constitutiva a ação declarativa em que os autores sustentam que cada um deles adquiriu por usucapião o direito de propriedade de uma concreta "parcela" de um imóvel que se encontra registado na sua totalidade como pertencendo em ¼ a autores e réus, dado que a procedência dos seus pedidos origina uma alteração do estado jurídico da coisa e da respetiva descrição predial; onde hoje há apenas um imóvel passará a haver três, por força da desanexação de duas partes do primitivo bem.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"II
1.º
Na fundamentação da sua decisão a Meritíssima Juiz deixou dito, nomeadamente, que:
«Analisando os pedidos e a causa de pedir alegados pelos autores em momento algum alegam que o direito que pretendem ver declarado está a ser violado ou está na iminência de ser violado pelos réus, concluindo-se assim pela inexistência de uma causa de pedir que integre o pedido de condenação dos réus.
Na verdade, o que os autores pretendem é que o Tribunal declare que os mesmos são titulares de um direito de propriedade único e exclusivo sobre uma determinada parcela de terreno que identificam e delimitam, parcela que alegadamente adquiriram por usucapião.
Assim, dúvidas inexistem que em causa está uma ação de simples apreciação.
É precisamente nas ações de simples apreciação que o interesse processual assume maior relevância. Assim, considerando que, as ações de simples apreciação destinam-se a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto [cfr. artigo 10.º n.º 3 a) do Código de Processo Civil], tem-se sido entendimento pacífico e constante que não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação e, portanto, tem-se defendido que, "nas ações de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave." (…)
In casu, não estão alegados factos que integrem o interesse em agir dos autores tal como definido supra. Em parte alguma da petição inicial, os autores alegaram factos consubstanciadores desta incerteza objetiva e grave da existência do direito de que se arrogam titulares.
Ademais, sempre se diga que dos factos alegados pelos autores não se assaca a existência de um verdadeiro litígio nem a verificação de um qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários.
Face ao exposto, é manifesta a falta do interesse em agir por parte dos autores.» [...]
3.º
À luz da causa de pedir apresentada pelos autores, temos um imóvel que se encontra registado como pertencendo em compropriedade a autores e réus, cabendo a cada um deles uma quota de ¼.
Mas, os autores dizem-nos que isso, quanto a eles, não corresponde à realidade, dado que, aquando das partilhas realizadas por óbito de E. N. e de sua mulher M. G., a quem o imóvel pertencia no seu todo, este foi dividido de facto, pelos seus herdeiros, em quatro partes. Estes herdeiros, "após dividirem e demarcarem as partes que lhes ficaram a pertencer, (…) de acordo com a quota-parte de cada um, o que aconteceu logo após o falecimento de (…) E. N. (…) e M. G., cujos decessos ocorreram, como se disse e respetivamente, em 09/05/1959 e 08/01/1965, entraram na posse, cada um, da sua parte, guardando-a, lavrando-a, cultivando-a, limpando-a, plantando na mesma árvores de fruto e vinha, na mesma semeando outros produtos agrícolas, que recolhiam e consumiam em proveito próprio, vendendo os excedentes, cujos preços das vendas, revertiam a seu favor, que gastavam em tudo o que necessitavam, pagando, inclusivamente, o imposto predial ao Estado, após o inscreverem cada um na matriz em seu nome na proporção de ¼" (7). "Posses essas que sempre foram de boa-fé, louvadas na divisão e partilha entre irmãos, pacifica, seja, sem o mínimo de violência, pública, seja, à vista uns dos outros e sem jamais qualquer um deles se ter oposto, quer expressa, quer tacitamente àquelas divisões, fabricos e granjeios, à vista de todos os vizinhos, designadamente dos confinantes, não deduzindo estes também a menor oposição, pois que nenhum prejuízo sofreram, nem poderiam sofrer com tais divisões, factos possessórios ditos, que praticados e exercidos foram, desde os decessos de seus pais, em continuação dos mesmos, seja, há mais de 50 e 60 anos, o que tudo fora feito ininterruptamente, quer, por si, quer por seus herdeiros ou transmissários que lhes vieram a suceder e sempre todos eles, de boa-fé e conscientes de que usavam e possuíam, coisa própria, sem prejudicarem fosse quem fosse." (---)
Em novembro de 2002 o autor adquiriu uma dessas "parcelas" e "logo após a compra, deram continuidade aos mesmos factos, de seus antecessores, lavrando a parcela, agricultando-a, fabricando as videiras e recolhendo as uvas que transformavam em vinho, plantando árvores de fruto, colhendo-lhe os frutos que consumiam em seu proveito, plantando legumes e hortaliças e tudo o mais que essa parcela produz, tudo consumindo em seu único proveito, inscrevendo-a na matriz em seu nome como 1/4, pagando o respetivo imposto, seja, praticando na mesma todos os atos e factos de posse, como fazem os verdadeiros proprietários, como já o faziam os seus antecessores, e dentro do mesmo circunstancialismo em que eles o faziam" (---).
E em junho de 2002 a autora comprou uma outra "parcela" e "logo após a compra entrou na posse daquela parcela, nela praticando os atos de posse que já vinham sendo praticados pelos anteriores proprietários e transmitentes e dentro do mesmo circunstancialismo, seja pelo E. S. e mulher M. G., de todo o prédio, pelos seus sucessores, cada um, na sua parcela e pelos subsequentes proprietários, conforme supra artigos 4º, 16º, 17º, 29º, 31º, 32º e 34º, plantando no mesmo, além doutras árvores, oliveiras." (---)
Assim, os autores sustentam que cada um deles é proprietário de uma concreta "parcela" do imóvel e que não são comproprietários, em ¼, da totalidade do prédio, tendo aqueles seus direitos de propriedade sido adquiridos por usucapião.
Neste cenário, consideram os autores que "se verifica uma necessidade justificada, razoável e fundada da propositura da presente ação" (---).
Ora, "o interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte ativa em obter a tutela jurisdicional" (Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 366.). E «a utilidade da tutela pode respeitar à utilidade do resultado a obter ("utilitá sostanziale"); nesta situação, o interesse processual só falta se o resultado a obter for, em abstrato, inútil.» (Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 367.) "É o interesse em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio" (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 79 e 80.). "Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação - mas não mais do que isso." (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 181.)
É evidente a utilidade e razoabilidade do recurso a juízo por parte dos autores, atendendo ao que alegam e pedem. E sendo assim, à partida, têm interesse em agir.
Contudo, poderá dizer-se, como disse a Meritíssima Juiz, que não há "qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários", deixando implícita a ideia de que existindo esta alternativa não é possível optar-se, desde logo, pela via judicial.
Neste ponto, atenta a particularidade de nesta lide os dois novos prédios, alegadamente adquiridos por usucapião, serem como que retirados ou destacados de um outro que está registado como sendo um só e pertencendo em compropriedade a todas as partes, não se tem como inquestionável a inexistência de "impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial". Na verdade, do artigo 116.º e seguintes do Código do Registo Predial parece resultar que, quando já "exista inscrição de aquisição", é em relação a todo o imóvel inscrito, e não uma ou mais partes dele, que se reporta o "novo trato sucessivo" fundado na usucapião de que aí se fala.
De qualquer modo, dentro da linha do decidido no Ac. Rel. Lisboa de 5-1-2021 no Proc. 10486/18.1T8LRS.L1-7 (---) e tendo em mente que "a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (…)" (---), julgamos que a circunstância de o cidadão ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, a que se refere o artigo 116.º do Código do Registo Predial, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo. Importa ter presente que, por um lado, pela via judicial se obtém maior proteção e segurança jurídica e que, com o trânsito em julgado da decisão, a questão fica definitivamente resolvida. E, por outro, deve ter-se em consideração que a escolha em primeiro lugar da via extrajudicial não significa que fica garantido que não haverá a necessidade de uma intervenção dos tribunais; que se assegura que os tribunais não terão de se ocupar com esta matéria. Veja-se o que acontecerá no caso de surgir uma impugnação da escritura de justificação notarial ou um recurso de uma decisão do notário desfavorável à pretensão do cidadão, designadamente por entender que estes mecanismos não são adequados ao caso concreto que lhe é apresentado (---).
Aqui chegados, conclui-se que os autores têm interesse em agir."
[MTS]