"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/02/2023

Jurisprudência 2022 (114)


Alteração do pedido;
requisitos


1. O sumário de RC 10/5/2022 (408/21.8T8MGR-A.C1) é o seguinte:

Pedida na ação a declaração de nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma e a consequente restituição do locado, com condenação do réu no pagamento de quantia mensal determinada pelo uso e fruição do imóvel, não pode depois, mediante ampliação do pedido, sem acordo da contraparte, vir peticionar-se – o que não é consequência dos pedidos primitivos e implica alteração da causa de pedir – a resolução do contrato de arrendamento, celebrado verbalmente, por falta de pagamento de rendas, com condenação do réu a despejar o locado e a pagar as rendas em falta.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os autos permitem que se enxerte, ao abrigo do artigo 265.º do Código do Processo Civil – que será o diploma a citar sem menção de origem -, no pedido inicial a) Ser declarado nulo, por vício de omissão da forma, o contrato de arrendamento, celebrado verbalmente entre A. e R.; b) Ser o R. condenado a entregar, ou restituir, o imóvel à A., livre e devoluto de pessoas e bens; c) Ser o R. condenado a pagar à A., pelo uso e fruição do imóvel, a quantia mensal de €200,00, desde o início desse uso e fruição (descontando-se a quantia de €1200,00 efectivamente já paga pelo R.) até à efectiva restituição do imóvel à A., acrescido de juros de mora à taxa legal a contar desde a sua citação-, o pedido de resolução do contrato de arrendamento, celebrado verbalmente entre Autora e Réu, por falta de pagamento das rendas desde Dezembro de 2020 até ao presente?

A 1.ª instância entende que não, justificando, assim, a sua posição:

“A regra no nosso sistema processual civil incide sobre a estabilidade da instância, artigo 260.º do CPC. As excepções elencadas no código, de entre as quais se encontram as plasmadas no artigo 265.º do CPC, manifestações do princípio da economia processual, deverão ser objecto de interpretação criteriosa, encontrando-se proibido o recurso à interpretação analógica, cfr. artigo 11.º do CC.

Prescreve assim o artigo 265.º, n.º 2 do CPC que em qualquer altura do processo, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, o autor pode reduzir o pedido, podendo apenas ampliá-lo se a ampliação for o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

No que respeita à interpretação dos conceitos “desenvolvimento” e “consequência” do pedido primitivo, apesar de se tratarem [sic] de substantivos cujo círculo de interpretação não levanta dúvidas, cingimo-nos à definição avançada por Lebre de Freitas, a qual abarca com rigor o pensamento que perfilhamos: “uma vez formulado, um pedido é consequência de outro quando a procedência deste implica a procedência do primeiro, ainda que em medida que pode depender de factos que excedam o âmbito da respectiva causa de pedir” e “o pedido primitivo é desenvolvido quando ao conteúdo inicial do direito a que se refere vem acrescentar um conteúdo acessório ou complementar da mesma natureza, ou quando, tendo-se feito valer inicialmente parte do direito, se pretende agora fazê-lo em outra parte ou na totalidade, sem que a procedência do pedido primitivo implique necessariamente a procedência do acréscimo decorrente do desenvolvimento e mesmo, na segunda situação, sem que haja entre os dois fundados ou não na mesma causa de pedir, uma relação de dependência” (Lebre de Freitas, “Ampliação do Pedido em Consequência do Pedido Primitivo”, in “Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral”, Almedina, p.1302-1303).

Como se constata, o pedido formulado ora pela Autora não constitui nem desenvolvimento, nem consequência do pedido inicialmente formulado. Trata-se de novo pedido, com novos factos que não constavam inicialmente da petição inicial (não pagamento das rendas), constituindo mais do que pedido autónomo, também uma nova causa de pedir. E não argumente a Autora com a falta de meio processual para fazer valer o seu direito. Com efeito, a acção de despejo instaurada em processo declarativo comum não faz qualquer exigência no que respeita à forma escolhida pelas partes para celebrarem o contrato de arrendamento.

Impõe-se concluir que a ampliação do pedido não constitui nem alteração, nem ampliação do pedido previamente formulado, i.e., não respeita os pressupostos exigidos pelo artigo 265.º, n.º 2, 1.ª parte do CPC, razão pela qual se não admite a ampliação do pedido.

Notifique”.

Com todo o respeito pela Apelante, entendemos que a razão está do lado da 1.ª instância.

Vejamos: [...]

[...] a norma do artigo 265º, na parte que para aqui releva, preceitua:

“1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.

2 - O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. (...)

6 - É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida”.

Como sabemos, após a citação do réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas ao pedido e à causa de pedir, salvo as possibilidades de modificação consignadas na lei - constitui um claro afloramento dos princípios dispositivo e da auto-responsabilidade das partes vigentes no nosso ordenamento jurídico e suas traves-mestras.

Como regra geral, o artigo 260.º impõe o princípio da estabilidade da instância, o que implica que, citado o réu - como expressamente refere Alberto dos Reis “a instância fica iniciada com o ato da propositura da ação; mas só se fixa com o ato da citação do réu. Enquanto este não for citado, a situação é de instabilidade” - Comentário, 3º, pág. 66 -, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir - uma alteração estrutural daqueles pressupostos exige o acordo das partes, o que muito raramente acontece/ a instância é inicialmente conformada pelo autor na petição inicial, nos seus elementos subjectivos (“quanto às pessoas”) e objectivos (pedido fundado numa causa de pedir).. A citação do réu fixa os elementos definidores da instância, que seguidamente só é alterável na medida em que a lei o permita.”

Por isso, a ausência de acordo das partes implica um forte constrangimento para o autor que pretenda, após a citação, alterar a causa de pedir ou ampliar a causa de pedir ou o pedido. A primeira só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor e, quanto ao pedido, apenas se aceita uma ampliação caso seja desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

Nas palavras de Alberto dos Reis - Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3, Coimbra Editora, 1946, pág. 92 -, estão em causa dois limites: um limite temporal e um limite de qualidade ou nexo. E, quanto a este limite, ensina o mestre - pág. 92 -, que “a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial”.

Mais, “a ampliação do pedido não se destina a suprir eventuais falhas processuais da petição inicial; a ampliação do pedido, prevista no nº 2 do artº 265º do CPC, implica que o pedido ampliado seja um lógico incremento ou corolário do pedido inicial” / - no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 17-11-2016, proc. 7072/15.1T8VIS-A.C1.

A ampliação do pedido traduz-se numa modificação objetiva da instância e constitui um acrescento, um aumento do pedido primitivo, ou seja, a ampliação do pedido só pode ser efetivada se for o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, importando notar que o preceito concede essa faculdade “em qualquer altura”, ou seja, independentemente de ser antes ou depois de citados os réus e/ou de estes terem apresentado contestação.

A ampliação do pedido deve ser sempre perspectivada como sendo um aumento para mais da pretensão inicial, estando vedada a formulação de quaisquer pedidos alternativos ou subsidiários, por o limite de qualidade ou de nexo impor que a ampliação a realizar esteja contida virtualmente no pedido inicial.

Salvo o devido respeito pela alegação da Autora, não é o que acontece nos presentes autos.

Teremos de concordar – e este é um dos princípios do processo civil moderno - que o poder de iniciativa/gestão processual, por parte do juiz do processo, não deverá ser omitido nos casos em que a prevalência de razões de ordem formal, sobre o conteúdo substancial da petição, ainda que imperfeitamente expresso, acaba por remeter as partes, desnecessariamente, para a propositura de uma nova acção. O mesmo vale dizer quanto ao princípio da verdade material, pois não há dúvida que esta solução está também em perfeita sintonia com o propósito da lei ao estabelecer - no seu artigo 611º, nº 2 - que o conteúdo da sentença deve ser definido de modo a corresponder “à situação existente no momento do encerramento da discussão”, por forma a, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa - In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, 2ª ed., reimpressão, 2021, Coimbra, Almedina, pág. 732 – “levar o mais longe possível o intuito de assegurar a atualidade da sentença, no sentido da sua adequação à realidade existente na situação submetida a juízo”.

Mas a lei, por vezes, limita estes poderes de gestão do juiz, atirando-lhe com normas imperativas a que o julgador, naturalmente, deve obediência.

Como escreve a 1.ª instância, “como se constata, o pedido formulado ora pela Autora não constitui nem desenvolvimento, nem consequência do pedido inicialmente formulado. Trata-se de novo pedido, com novos factos que não constavam inicialmente da petição inicial (não pagamento das rendas), constituindo mais do que pedido autónomo, também uma nova causa de pedir.

E não argumente a Autora com a falta de meio processual para fazer valer o seu direito. Com efeito, a acção de despejo instaurada em processo declarativo comum não faz qualquer exigência no que respeita à forma escolhida pelas partes para celebrarem o contrato de arrendamento”.

Concordamos.

Está para nós claro que o novo peticionário - seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado verbalmente entre Autora e Réu, por falta de pagamento das rendas desde Dezembro de 2020 até ao momento, nos termos do disposto nos art.ºs 1047º, 1048º, e 1083º, nº 1, 3 e 4, todos do Código Civil, devendo, consequentemente, ser o Réu condenado a despejar o locado de imediato, restituindo-o à A., livre, devoluto de pessoas e bens, e no mesmo estado de conservação em que o recebeu;- Seja o R. condenado a pagar à A. as rendas em falta desde Dezembro de 2020, até à efectiva restituição do imóvel à A., quantia essa acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde a sua citação - não é consequência dos pedidos primitivos - a) Ser declarado nulo, por vício de omissão da forma, o contrato de arrendamento, celebrado verbalmente entre A. e R.. b) Ser o R. condenado a entregar, ou restituir, o imóvel à A., livre e devoluto de pessoas e bens; c) Ser o R. condenado a pagar à A., pelo uso e fruição do imóvel, a quantia mensal de €200,00, desde o início desse uso e fruição (descontando-se a quantia de €1200,00 efectivamente já paga pelo R.) até à efectiva restituição do imóvel à A., acrescido de juros de mora à taxa legal a contar desde a sua citação.

O fundamento do novo pedido resulta da existência de um contrato de arrendamento verbal válido, que o Réu não cumpriu, pagando a respectiva renda.

Mas esta causa de pedir é diversa da que suporta os pedidos efectivamente formulados na petição inicial, sabendo-se que os mesmos se referiam nuclearmente à existência de um contrato nulo por falta de forma, pedindo-se a restituição do imóvel e o pagamento de uma indemnização pelo uso e fruição do prédio que é propriedade da autora.

E, sendo a causa de pedir o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido, isto é, ao pedido, não nos merecem dúvidas que o pedido formulado no requerimento da autora não é o desenvolvimento do pedido efectuado na petição inicial, pois derivam de diferentes factos concretos. Estamos perante diferentes causas de pedir e de diferentes pedidos."

[MTS]