"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2023

Jurisprudência 2022 (125)


Reconhecimento de sentença estrangeira
ordem pública



1. O sumário de RL 12/5/2022 (186/22.3 YRLSB.L1.6) é o seguinte:

I) – O decree nisi de divórcio, tradicional nos regimes de matriz anglo-saxónica, precede o decree absolute e significa que o tribunal não encontra impedimento à dissolução do casamento, fixando um período de reflexão ou oposição findo o qual a dissolução se efectiva, sendo patente a inteligência da decisão de divórcio que utiliza tal expressão.

II) – Inexiste na Convenção de Haia qualquer exigência quanto ao prazo de validade da apostila, limitando-se a mesma a estabelecer as condições da sua validade.

III) – Face ao artigo 984.º do CPC, a Relação deve recusar a revisão quando do exame do processo ou de conhecimento oficioso apure estar em falta o requisito da citação; se nada resulta quanto a omissão, não tendo o Requerido alegado que essa notificação não ocorreu, é irrelevante que a menção seja ou não feita na decisão.

IV) – Na apreciação da acção de revisão de sentença estrangeira importa avaliar a contrariedade do reconhecimento aos princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico interno de Portugal; a excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.

V) – A decisão de divórcio com fundamento em justa causa em nada contraria a ordem pública internacional do Estado Português; o afastamento do regime do divórcio-sanção não pode ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português; menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais a enformam.

VI) – Nem toda a matéria atinente a relações familiares partilha do relevo atribuído às questões respeitantes à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou protecção das crianças.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"5. – Defende o Requerido na sua oposição que a sentença, por decretar o divórcio por justa causa, ofende princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa.

Louva-se na abolição na ordem jurídica portuguesa do denominado divórcio-sanção [---] – revogação do artigo 1787.º do Código Civil, pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro -, entendendo que a revisão de uma sentença que mencione existir justa causa de divórcio contraria tal ordem jurídica interna enquadrando-se, por isso, na previsão da alínea f) do artigo 980.º.

Não consta que a sentença revidenda tenha declarado um dos cônjuges culpado, como não consta que tenha apreciado a existência de justa causa. Consta tão somente que foi submetido um pedido de divórcio nisi por justa causa (a Judgement of Divorce Nisi was entered by the Court in the above-mentioned case for cause wich is fully set forth in the decree of file in the Court).

Embora tal obste desde logo a que proceda a excepção invocada, admitindo similitude entre justa causa e atribuição de culpa, apreciemos a questão por exaustão de razões.

Estabelece a alínea f) do artigo 980.º que para que a sentença seja confirmada é necessário: (…) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

A questão colocada nesta norma constitui excepção ao regime formal a que obedece o regime da revisão de sentenças estrangeiras, introduzindo uma apreciação de mérito, não da sentença, mas do efeito do reconhecimento.

É o reconhecimento, e não a própria decisão, que deve ser compatível com a ordem pública internacional. (…) Por isso, o momento relevante para a concretização da ordem pública internacional é o do reconhecimento, e não o momento em que a decisão é proferida. (…)

Em suma, o tribunal de reconhecimento tem de limitar-se a averiguar se, à luz dos factos dados como provados pelo tribunal de origem, e da determinação, interpretação e aplicação do Direito aplicável a que procedeu, o reconhecimento implica uma violação manifesta e inaceitável de uma regra essencial vigente na ordem jurídica do foro, ou de um direito reconhecido como fundamental nesta ordem jurídica, no momento do reconhecimento [Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras, vol III, tomo II, p. 119-120.].

Voltando ao caso concreto, uma primeira nota sobressai: vem invocada pelo Requerido a violação da ordem jurídica portuguesa quando a norma se refere à ordem pública internacional do Estado Português.

A norma anterior à do artigo 980.º, alínea f), do Código de Processo Civil, a do artigo 1096.º, alínea f), do Código de Processo Civil na redacção do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, tinha idêntica redacção. Não assim quanto à primitiva redacção do artigo 1096.º, alínea f) do Código de Processo Civil na redacção anterior à reforma de 95/96 que dispunha como segue:

Para que a sentença seja confirmada é necessário: (…)
f)- Que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa; (…).

Não é sem consequências a alteração. Trata-se de avaliar os princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico português interno (a que parece referir-se o Requerido) [---].

O regime actual, mesmo quanto a esta cláusula excepcional que em alguma medida aflora o mérito, é assim mais consentâneo com o sistema vigente em Portugal de recusa de apreciação intrínseca da decisão a rever, remetendo a apreciação face ao acquis do direito comum dos países ocidentais fundado na defesa dos direitos fundamentais da pessoa; mesmo aí, como já referido, a apreciação cinge-se às consequências do reconhecimento, não atingindo o mérito da decisão.

A excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.

A atuação da cláusula de ordem pública internacional é justificada, em especial, quando estejam em causa direitos fundamentais. Com efeito, o conteúdo da ordem pública internacional tende hoje a ser determinado à luz dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, pelas Convenções Internacionais e pelo Direito da União Europeia. (…)

Excecionalmente, poderão existir proposições jurídicas fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, internacional ou europeia, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do legislador em matéria de Direito Privado, não se revestem destas características [Idem, p. 118.].

O enquadramento genérico pretende surpreender os contornos do que deva entender-se por ordem pública internacional do Estado Português, sem escamotear que nos encontramos face a um conceito genérico e indeterminado que exige do intérprete um esforço de concretização apenas possível no confronto com o caso concreto em apreciação [---], conceitos estes carecidos de preenchimento valorativo [Cf. Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, 1983, p. 114.].

Trata-se de saber se a declaração de que o divórcio decretado ocorreu por justa causa contraria a ordem pública internacional do Estado Português. Mesmo concedendo que a declaração de justa causa se equipara à declaração de culpa (de um ou de ambos os cônjuges) como causa do divórcio, antecipe-se que entendemos que não pode o afastamento do divórcio-sanção ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português e, menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que enformam a sua ordem jurídica [Baptista Machado in Lições de Direito Internacional Privado, 1974, p. 254-256].

A matéria em causa no caso que nos ocupa é matéria de relevo na organização social da sociedade constituída em Estado, uma vez que respeita à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou à dissolução deste e respectivas consequências. Mas o particular relevo da matéria não se estende a todas as questões que a integram. Dir-se-á que a definição de culpa do divórcio exprime uma concepção arredada da ordem jurídica portuguesas. É verdade, dada a revogação da norma respectiva a que já aludimos. Todavia, nem por isso se encontra proscrita na ordem jurídica interna toda e qualquer apreciação de responsabilidade decorrente da ruptura do vínculo contratual que o casamento civil constitui, por via do disposto no artigo 487.º do Código Civil.

Por tudo, entende-se que o facto de a decisão dar provimento a um pedido de divórcio com indicação de que o mesmo se funda em justa causa em nada fere, atinge ou contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, sendo certo que seria ainda necessário que os atingisse manifestamente.

Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2018, proferido no processo 137/17.7YRPRT.S1 (José Rainho) em caso similar, embora ainda mais impressivo por se tratar de efectivas consequências do divórcio decretado com declaração de culpa [---] [Cf. desta Relação e secção o acórdão de 6 de Maio de 2021, proferido no processo 2247/20.4YRLSB-6 (Gabriela de Fátima Marques).]."

[MTS]