"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/02/2023

Jurisprudência 2022 (120)


Acção de preferência; competência absoluta;
recurso; admissibilidade*


1. O sumário de STJ 11/5/2022 (627/19.7T8CNT.C1.S1) é o seguinte:

I - Admitido o recurso ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 629 do CPC (regras de competência em razão da matéria), o seu objeto fica limitado à apreciação da impugnação que esteve na base da sua admissão, não podendo alargar-se a outras questões.

II - A determinação do tribunal competente em razão de matéria, como é questão a tratar por agora, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respetivos fundamentos.

III - Uma ação de preferência como a presente, prevista no art. 1380º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante, conferindo-se aos tribunais comuns a competência (subsidiária) para dirimir conflitos nessa área.

IV - Tendo a ação corrido no Tribunal comum, não ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os autos respeitam a ação de preferência ao abrigo do estatuído no art. 1380º, do Cód. Civil, sem descurar o disposto no art. 1381º

Sobre a questão de saber se era de afastar o direito de preferência pela verificação do fator de exclusão previsto na al. a) do artigo 1381º CC, entendeu o Tribunal recorrido ser de aplicar o CIMI (Código do Imposto Municipal sobre Imóveis).

E por isso refere o acórdão recorrido: “Ainda que nada nele tenha sido erigido, para o direito fiscal “o terreno para construção” merecerá já indiscutivelmente a classificação de urbano.

Dividindo os prédios urbanos em: a) Habitacionais; b) Comerciais, industriais ou para serviços; c) Terrenos para construção; d) Outros, o artigo 6º do CIMI considera “terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção12, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo.” (cfr. nºs 2 e 3 da citada norma).

E, se o proprietário requereu e conseguiu a aprovação de construção ou de loteamento ou informação de viabilidade construtiva ou de loteamento, ou declarou no título aquisitivo que o terreno se destina a construção, terá de apresentar a declaração modelo 1 de IMI, no prazo de 60 dias, contados a partir da data da notificação da autorização ou da data da escritura (artigo 13º do CIMI).

Ou seja, o pedido de informação prévia de viabilidade de loteamento ou de construção com parecer favorável, obriga o proprietário a, no prazo de 60 dias a contar da data da notificação da autorização, a apresentar a declaração modelo 1 do IMI, para alteração matricial da natureza do prédio (art. 13º, nº1, al. b), CIMI)”.

Questiona a recorrente a competência do tribunal judicial para dirimir o litígio, entendendo que foram violadas as regras de competência em razão da matéria.

Não tem razão a recorrente.

A questão em causa é predominantemente civil e foi decidida com base no CC, pois que, conforme acórdão recorrido, “E como tal, teremos por excluído o direito de preferência invocado pela autora na presente ação, por força da al. a) do nº1 do artigo 1381º, CC”.

A legislação fiscal/administrativa apenas foi utilizada para, no caso, definir a qualidade ou fim, do terreno a preferir, para apurar se se verificava alguma causa de exclusão do direito de preferência.

É certo que “A possibilidade de afectar um terreno de cultura, por exemplo, a finalidade diferente depende de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território. A prova da viabilidade legal da construção é, assim, um elemento essencial para que o facto impeditivo do direito de preferência referido na 2ª parte da al. a) do art. 1381º do CC opere os seus efeitos” – como decidiu o Ac. da Rel. de Co., de 20-10-2015, no Proc. nº 768/12.1TJCBR.C1. Mas é, apenas, circunstância necessária para que o facto impeditivo do direito de preferência aludido na 2ª parte da al. a) do art. 1381º do CC opere os seus efeitos.

Como consta dos autos a ação foi intentada e é pedido que seja reconhecido à autora o direito de haver para si o prédio rústico vendido à ré.

Existindo várias categorias de tribunais tem de haver critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objetiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, como é questão a tratar por agora, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respetivos fundamentos.

E a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional.

Pelo contrário, os Tribunais Administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.

Tendo em conta o disposto no nº 3 do art. 212º da Constituição e do art. 1º do ETAF o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui assim a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais, detendo por força dela os Tribunais Administrativos competência para dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas, exceto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 4º do ETAF, mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa – MARIA HELENA BARBOSA FERREIRA CANELAS “A AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS EM SEDE DE ACÇÕES RELATIVAS A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL”, in Revista Julgar, nº 15, 2011.

A “atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura. (Como explicita Miguel Teixeira de Sousa “[a] competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial” - cf. A Competência declarativa dos tribunais comuns, 1994, p.76” como referido no Ac. do Tribunal de Conflitos de 16-05-2014, no Proc. nº 033/14.

Neste mesmo acórdão se refere que a titularidade do direito de preferência de que se arrogam os autores é uma titularidade de direito civil - art. 1380º do CC -.

E os autores serão titulares do direito de preferência - direito real de aquisição - se preencherem os pressupostos e os requisitos definidos na lei civil.

Nenhuma legislação de direito público lhes confere essa qualidade de preferentes, nem essa qualidade deriva de qualquer ato de império de qualquer autoridade administrativa do Estado.

No caso em análise nada existe que permita integrar a ação na jurisdição administrativa e fiscal sendo, para esse efeito, irrelevante (para o efeito) a referência aos artigos do CIMI.

Uma ação de preferência como a presente, prevista no art. 1380º do CC, é manifestamente o exercício de um direito real de aquisição, visando dar completude ao direito de propriedade do proprietário confinante.

E tem como objetivo primeiro a declaração da existência desse direito de preferência e como escopo ulterior a materialização e efetivação desse direito de preferência.

O litígio nos presentes autos é subsumível à competência subsidiária dos tribunais comuns, sendo que até à interposição do recurso de revista não se tinha colocado qualquer dúvida.

Nem se entende por que a recorrente/autora tendo intentado a ação em Tribunal comum vem agora pretender discutir a competência material desse mesmo Tribunal.

Assim que, no caso concreto, cabe ao tribunal comum a competência material para conhecer a ação de preferência intentada pela recorrente.

Pelo que não ocorreu violação das regras de competência em razão da matéria que tornasse admissível o recurso de revista.

Não havendo violação das regras de competência em razão da matéria é inadmissível o recurso de revista e, consequentemente, fica prejudicado o conhecimento do objeto do mesmo.

Conforme refere Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 48, “a norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o Tribunal Superior com a discussão da matéria em causa, ficando excluídas outras questões que são submetidas à regra geral”.

Assim, não se toma conhecimento do objeto do recurso, por não se verificar o pressuposto da sua admissibilidade.

Conforme refere o Ac. deste STJ, no Proc. 34/12.2TBLMG.C1.S1, “Impossibilitada a admissão do recurso por inverificado o fundamento excecional do n.º 2, alínea a) “in fine” do artigo 629.º do Código de Processo Civil, nada mais poderá ser conhecido nesta sede”."


*3. [Comentário] O acórdão decidiu indiscutivelmente bem a questão da competência material.

Só não se pode acompanhar o acórdão na parte em que afirma que "não havendo violação das regras de competência em razão da matéria é inadmissível o recurso de revista e, consequentemente, fica prejudicado o conhecimento do objeto do mesmo".

Salva a devida consideração, não é assim (e também não era assim no acórdão citado). O recurso era admissível, atendendo a que o recorrente alegou a violação das regras em razão da competência material (art. 629.º, n.º 1, al. a), CPC) e o STJ confirmou que era esse o objecto do recurso. O que no acórdão realmente se fez foi entender que o tribunal no qual a acção foi proposta era materialmente competente, apreciando-se assim o mérito do recurso e rejeitando a sua procedência.

Dito de outro modo: se o recorrente invocar a violação das regras da competência absoluta e se o tribunal ad quem confirmar que é esse o objecto do recurso, está assegurada a sua admissibilidade; depois disso, a pronúncia do tribunal ad quem sobre a competência ou incompetência do tribunal recorrido incide sobre o mérito do recurso.

MTS