"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/02/2023

Jurisprudência 2022 (112)


Procedimento de injunção;
AECOP; cláusula penal*


1. O sumário de RL 28/4/2022 (28046/21.8YIPRT.L1-8) é o seguinte:

- O uso indevido do procedimento de injunção inquina na totalidade a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias em que se se transmutou, consubstanciando exceção dilatória inominada (art. 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, impedindo qualquer apreciação de mérito, designadamente, dos créditos cuja cobrança poderia ter sido peticionada por via daquele procedimento.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O Decreto-Lei nº 269/98, de 1/09 aprovou o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00, publicado em anexo a tal diploma, emergindo do art. 7º que o procedimento de injunção constitui uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro.

O art. 7º deste diploma, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, dispõe o seguinte:

“1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
2 - Para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - As ações destinadas a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, de valor não superior à alçada da Relação seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.”

A requerente “AA..., S.A”, intentou procedimento de injunção contra a requerida “BB..., Ldª” visando a cobrança das prestações concernentes aos serviços de comunicações que lhe prestou, acrescidas de juros, e bem assim, de quantias liquidadas e faturadas a título de cláusulas penais que haviam sido fixadas nos contratos, no valor total de € 6 374,92, ou seja, de valor inferior à alçada da Relação [---]

Tendo presentes as conclusões do recurso interposto da decisão proferida em 1ª instância, e que acima se deixou transcrita, é ponto assente, em face de tal decisão, que a recorrente reconhece ter feito um uso indevido do procedimento de injunção para a cobrança das quantias liquidadas e faturadas a título de “cláusula penal”.

O objeto do presente recurso, e como acima se deixou assinalado, versa sobre a possibilidade de se determinar o prosseguimento da ação apenas para a satisfação do crédito atinente às prestações pecuniárias emergentes diretamente dos contratos celebrados entre a requerente e a requerida, e relativamente aos quais era possível o recurso ao procedimento de injunção para a respetiva cobrança. Ou seja, cabe decidir se é possível manter a instância para a apreciação da parte do pedido que poderia ter sido deduzido em procedimento de injunção. 

Evidenciam os autos que o procedimento de injunção intentado pela requerente foi transmutado em ação especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, em virtude de se ter frustrado a notificação da requerida para o processo de injunção (cf. arts. 10º, nº 1, al. j), e 16º, nº 1, do regime anexo ao referido DL 269/98).

De acordo com o art. 17º, nº 1, do mesmo regime, verificada a distribuição, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4.º, estipulando o art. 3º, nº 1, que se “… a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo   procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa”, o que significa que nesta fase inicial da ação e com vista ao conhecimento de qualquer exceção, o juiz terá de apreciar a concreta pretensão que o requerente configurou no requerimento de injunção, e caso conclua, então, pela verificação de qualquer exceção dilatória insuprível, a consequência inevitável é a absolvição do(a) requerido(a) da instância, conforme previsto no art. 278º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil, o que inviabiliza o conhecimento de mérito.
Em casos como o dos autos e à luz do referido regime legal, recairá sempre sobre o juiz o dever de avaliar e decidir, em primeiro lugar, e tendo presente a concreta e global pretensão do requerente, se lhe era lícito recorrer ao procedimento de injunção como meio de obter a satisfação do crédito reclamado.

As exceções dilatórias são enumeradas de forma exemplificativa no art. 577º do Código de Processo Civil.

O recurso ao processo de injunção, quando não se mostram preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, configura uma situação de uso indevido daquele meio como forma de exigir o cumprimento das obrigações a que se reporta o art. 1º do referido diploma preambular, que consubstancia exceção dilatória inominada conforme foi decidido pela Mmª juiz de 1ª instância, que afastou expressamente a possibilidade de enquadrar a situação à luz do erro na forma do processo (art. 193º do Código de Processo Civil), não sendo assim correta a afirmação da recorrente constante da 1ª conclusão da sua alegação de recurso.

Concluindo-se que o procedimento de injunção não era o adequado, porque por via dele não era possível ao credor obter a cobrança de valores atinentes a cláusulas penais acordadas, como se concluiu nos autos, então a ação especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, iniciada em consequência de transmutação do procedimento de injunção também não poderá ser permitida, nem aproveitada em qualquer parte, por se encontrar por ele inquinada. E estando comprometida a própria instância, não há lugar a qualquer apreciação de mérito, impondo-se a absolvição da requerida nos termos decididos pelo tribunal a quo.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de fevereiro de 2012 (relatado pelo Sr. Conselheiro Salazar Casanova, proferido no processo nº 19937/10.3YIPRT.L1.S1, integralmente acessível em www.dgsi.pt) constitui apoio de decisão neste sentido, ao decidir que “(…) as condições que a lei impõe para que seja decretada a injunção são condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada; no entanto, ultrapassada esta fase, elas não assumem expressão na fase subsequente do processo que venha a ser tramitado sob a forma de processo comum ordinário quando o seu valor seja superior à alçada da Relação ( artigo 7.º/2 do DL n.º32/2003).

Com efeito, neste caso, a circunstância de o crédito não se enquadrar na transação comercial a que alude o artigo 2.º/1 e 3.º do Decreto-Lei n.º 32/2003 não exerce nenhuma influência, rectius, não tem qualquer correlação com a forma de processo a tramitar em momento subsequente.” – sublinhado nosso.

Mas assim não acontece, como também ali se assinala, “(…) na ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que a lei determina que seja a aplicável nos casos em que, em razão da oposição [---], se converteu a providência de injunção respeitante a transações comerciais de valor inferior à alçada da Relação.” – sublinhado nosso -, sendo que nestas circunstâncias, como resulta do mesmo acórdão, o processo não pode ser aproveitado, por verificação de exceção dilatória inominada de uso inadequado do procedimento de injunção.

Também no sentido de que o uso indevido do procedimento de injunção compromete a ação para cumprimento de obrigação emergente de contrato em que aquele se transmutou, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado em 20 de maio de 2014 (processo 30092/13.6YIPRT.C1, acessível em www.dgsi.pt):

“(…) estamos perante uma situação em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a utilização da injunção, o que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa.

Importa assim rejeitar a utilização do procedimento injuntivo (e do processo especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato), já que, não estando em causa uma transacção comercial, também não se evidencia uma qualquer obrigação pecuniária que emirja do contrato celebrado entre as partes.

Esta situação configura uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do n.º 2 do art.º 576º (e art.º 577º), do CPC de 2013, e não de erro na forma de processo, ainda que, nesta segunda perspectiva, possa conduzir a idêntico resultado processual. Na verdade, tal excepção dilatória inominada, afectando o conhecimento e o prosseguimento da acção especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização (as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção), não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento; caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.

7. A transmutação do procedimento de injunção, por via de oposição [---] que seja deduzida, em acção declarativa de condenação - acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato -, não legitima a utilização indevida daquele, derivada da falta de pressupostos que o possibilitariam. E nesse mesmo enquadramento adjectivo, se o crédito reclamado não for nenhum daqueles que a lei correlaciona com este processo especial, a acção não poderá proceder, estado de coisas que, como vimos, também ocorre no presente caso.

Também no seguimento destas decisões, e mais recentemente, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa que a absolvição da instância quando a ação já está transmutada em ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, de valor inferior ao da alçada da Relação, determina a inaproveitabilidade total da ação, ou seja, também para os créditos que poderiam ser peticionados por aquela via (injunção) - (Acórdão de 23/11/2021, proferido no processo 88236/19.0YIPRT, Relator Edgar Lopes, acessível em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, improcede o recurso."


*3. [Comentário] O que se pode discutir no acórdão da RL é a razão pela qual a absolvição da instância não se limitou ao pedido relativo à cláusula penal.

O motivo parece ser o de que, tal como esse pedido inquina, in toto, o procedimento de injunção, então também deve viciar totalmente a posterior AECOP na qual se convolou (no caso, por frustração da notificação do requerido) aquele procedimento. Pelos vistos, é a solução que é prevalecente na jurisprudência, mas não é indiscutível. 

Parecendo que nada obstaria a uma absolvição parcial na AECOP se o credor tivesse inicialmente optado por este meio processual, não é claro o que pode obstar a essa mesma absolvição quando a AECOP resulta da convolação de um procedimento de injunção. Há uma diferença substancial entre este procedimento e a AECOP que justifica que não tenha de se transpor para a AECOP o que vale naquele procedimento. Mais até: enquanto no procedimento de injunção dificilmente se pode aceitar uma cumulação de pedidos, é claro que nada obsta a essa cumulação na AECOP e, portanto, à inadmissibilidade desta acção (nomeadamente, atendendo à inadequação da forma do processo) apenas quanto a um dos pedidos cumulados (art. 555.º, n.º 1, e 37.º, n.º 1, CPC).

MTS