"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/02/2023

Jurisprudência 2022 (119)


Bem comum do casal:
privação do uso; forma de processo
 
 
1. O sumário de RC 24/5/2022 (4224/19.9T8VIS.C1) é o seguinte:
 
I – Mesmo estando pendente inventário para partilha dos bens comuns do casal após divórcio, o processo comum de declaração é o meio processual próprio para a autora pedir contra o seu ex-cônjuge uma compensação pecuniária mensal, até à homologação da partilha dos bens comuns, por este a impedir de usar um bem imóvel comum, ocupado exclusivamente pelo mesmo
 
II – Em tal caso, ainda que a mesma pretensão tenha sido deduzida no âmbito do processo de inventário, este não é o meio processual adequado para o efeito.
 
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão que a decisão recorrida decidiu foi a de saber se o processo comum de declaração era o próprio para a autora exigir judicialmente ao réu uma compensação pecuniária mensal baseada no facto de ele, réu, impedir a autora de usar um bem comum do casal.
 
Como resulta do exposto acima, o tribunal a quo respondeu negativamente a esta questão dizendo, em síntese, o seguinte: uma vez que existiam bens comuns, entre os quais figurava aquele que a autora alegava que estava impedida de usar por acção do réu, e que a pretensão visada com a acção já havia sido apresentada no processo de inventário que a autora havia requerido para partilha dos bens comuns, o meio adequado para a efectivação do direito era o processo de inventário, já instaurado, e não a acção de processo declarativo comum.
 
Sendo estas as razões da decisão recorrida, é bom de ver que nenhuma relação tem com elas as seguintes alegações de recurso:
 
· Que o património a partilhar através do processo do inventário só engloba bens/verbas existentes na data da propositura da acção de divórcio e não os contraídos/adquiridos posteriormente;
 
· Que a dívida que a recorrente pede nos presentes autos foi contraída depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges e já depois de dissolvido o casamento por sentença transitada em julgado.
 
A decisão recorrida incorreu em erro, mas por outras razões. Vejamos.
 
A resposta à questão de saber se o processo comum de declaração era o próprio para a autora exigir judicialmente ao réu uma compensação pecuniária mensal baseada no facto de ele, réu, impedir a autora de usar um bem comum do casal, não passava por saber, como está implícito na decisão recorrida, se existiam bens comuns a partilhar entre a autora e o réu e/ou se o pedido deduzido na presente acção já havia sido deduzido no processo de inventário requerido pela ora autora. Nenhuma destas circunstâncias servia aos olhos da lei para aferir da propriedade do processo usado pela autora.
 
A resposta à questão da propriedade de um processo para o autor fazer valer o seu direito é dada, num primeiro momento, pelo n.º 2 do artigo 546.º do CPC. Nos termos deste preceito, o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponde processo especial.
 
Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito do artigo 469.º do CPC, cujo teor é igual ao do n.º 2 do artigo 546.º: “Vê-se, pois, que o campo de aplicação do processo comum se determina não directamente, mas por exclusão de partes: depois de nos certificarmos de que para um determinado caso concreto não há na lei processo especial, é que podemos tranquilamente concluir que esse caso entra na órbita do processo comum. Sendo assim, o problema que se põe, a averiguar se deve adoptar-se, em certo caso, o processo comum ou processo especial é sempre este: estabelece a lei algum processo especial que seja aplicável ao caso? Se estabelece, é esse o processo que deve empregar-se; se não, cai-se no processo comum” [Código de Processo Civil anotado, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, páginas 285 e 286].
 
Segue-se do exposto que a questão que se colocava, no caso, era a seguinte: a lei, entenda-se Código de Processo Civil, determinava que a pretensão da autora fosse deduzida no processo de inventário para partilha dos bens comuns?
 
A resposta a esta questão era negativa.
 
O processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal está previsto no artigo 1133.º do CPC, sendo inequivocamente um processo especial. A sua função é a de partilhar bens comuns do casal (alínea d) do artigo 1082.º do Código Civil).
 
Apesar de ser esta a função do inventário resulta, no entanto, do n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil que a partilha dos bens comuns compreende várias operações, sendo uma delas a conferência das dívidas dos cônjuges ao património comum. Precise-se que estas dívidas são as previstas no n.º 2 do artigo 1697.º do Código Civil, ou seja, as que têm origem no facto de terem respondido bens comuns por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges.
 
Como é bom de ver, a conferência em questão só terá lugar se tais dívidas forem relacionadas ou reclamadas. E, assim, havendo inventário para partilha dos bens comuns, se os cônjuges pretenderem que cada um deles confira o que deve ao património comum, o inventário é inequivocamente o processo próprio para os cônjuges reclamarem tais dívidas.
 
Sucede que a dívida que está em causa na presente acção não é uma dívida de um dos cônjuges ao património comum, é dívida de um dos cônjuges ao outro. E dívida cujo facto que lhe deu origem – segundo a alegação da autora – ocorreu já depois da dissolução do casamento, ou seja, já depois de cessadas as relações patrimoniais entre a autora e o réu. Trata-se, assim, de uma dívida que, segundo o n.º 1 do artigo 1689.º do Código Civil, combinado com o n.º 2 do artigo 1697.º do mesmo diploma, não releva para as operações de partilha dos bens comuns.
 
E não relevando para tais operações, só se poderia afirmar que o processo próprio para a reclamar era o inventário se resultasse expressa ou implicitamente da lei que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, cada um dos cônjuges só podia reclamar os seus créditos contra o outro no processo de inventário.
 
Esta regra não existe. É certo que também não existe a regra contrária, ou seja, que os cônjuges não podem reclamar, no processo de inventário, os créditos de cada um sobre o outro. 
 
Mais: o n.º 2 do artigo 1689.º e o n.º 1 do artigo 1697.º, ambos do Código Civil, apontam no sentido de que, em relação a uma certa categoria de créditos - mais concretamente aqueles com origem no facto de um dos cônjuges ter satisfeito além do que lhe competia fazer por dívidas das responsabilidades de ambos os cônjuges – o cônjuge pode reclamar, no processo de inventário, o seu crédito contra o outro. Trata-se, no entanto, de uma faculdade. Se a não exercer não fica inibido de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns. E o mesmo se pode dizer em relação aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro com uma origem diferente da prevista no n.º 1 do artigo 1697.º do CC, como sucede com o crédito em causa nos presentes autos.
 
Segue-se do exposto que não há regra, no Código Civil ou no Código de Processo Civil, que determine que, havendo inventário para partilha dos bens comuns, a compensação pecuniária que a autora está a exigir ao réu através da presente acção deve ser deduzida no processo de inventário. E, não havendo, a conclusão a retirar é a de que era permitido à autora exigir judicialmente tal compensação através do processo comum de declaração. Cita-se em abono desta interpretação da lei, o acórdão do STJ proferido em 3-10-2019, no processo n.º 1517/13.2TJLSB.L1.S2, publicado em www.dgsi.pt.
 
Em suma: ao julgar que o processo comum de declaração não era o processo próprio para a autora deduzir a sua pretensão, a decisão recorrida incorreu em erro."
 
[MTS]