"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2023

Jurisprudência 2022 (131)


Incidente de comunicabilidade da dívida;
convenção arbitral; sentença arbitral*


I. O sumário de RL 26/5/2022 (27175/20.0T8LSB-A.L1-8) é o seguinte:

1 - Não ter o tribunal recorrido ponderado a posição da exequente quanto à questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade, não por a exequente não se ter pronunciado, mas por essa pronúncia ter escapado aos olhos do tribunal recorrido, não constitui nulidade do despacho recorrido.

2 - A conjugação dos arts. 550º nº 2 al. a), 703º nº 1 al. a), 704º, 705º, 729º e 730º do C.P.C. leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.

3 - A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., pelo que não está em conformidade com o espírito do legislador interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do art. 741º nº 1 do C.P.C., “movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; a alegação pode ter lugar no requerimento executivo ou até ao início das diligências para venda ou adjudicação, devendo, neste caso, constar de requerimento autónomo, deduzido nos termos dos artigos 293º a 295º e autuado por apenso”.

O art. 9º do C.C. dispõe o seguinte:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Comecemos por analisar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C.

Nos termos do art. 703º nº 1 do C.P.C., “à execução apenas podem servir de base:

a) as sentenças condenatórias;
b) os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.

Aos requisitos da exequibilidade da sentença se refere o art. 704º do C.P.C.

Conforme resulta do disposto no art. 705º do C.P.C., “são equiparados às sentenças, sob o ponto de vista da força executiva, os despachos e quaisquer outras decisões ou atos da autoridade judicial que condenem no cumprimento duma obrigação”; e “as decisões proferidas pelo tribunal arbitral são exequíveis nos mesmos termos em que o são as decisões dos tribunais comuns”.

A equiparação das decisões arbitrais às decisões dos tribunais comuns estabelecida no art. 705º do C.P.C. é quanto à sua exequibilidade.

Por força do art. 550º nº 2 al. a) do C.P.C., “emprega-se o processo sumário nas execuções baseadas em decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo”.

O art. 729º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença e, por sua vez, o art. 730º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em decisão arbitral.

A conjugação destas normas leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.

A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., segundo o qual “devem ser propostas contra ambos os cônjuges… as ações emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro”.

A questão da comunicabilidade da dívida não pode ser discutida na execução baseada em sentença, porque era na ação declarativa que essa questão deveria ter ficado definida.

Nos termos do art. 36º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária, “só podem ser admitidos a intervir num processo arbitral em curso terceiros vinculados pela convenção de arbitragem em que aquele se baseia, quer o estejam desde a respetiva conclusão, quer tenham aderido a ela subsequentemente. Esta adesão carece do consentimento de todas as partes na convenção de arbitragem e pode ser feita só para os efeitos da arbitragem em causa.”

Há, sem dúvida alguma, diferenças entre a ação declarativa e o processo arbitral.

Não está, pois, em conformidade com o espírito do legislador, interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral."

*III. [Comentário] A RL decidiu bem, mas importa deixar uma nota.

No caso concreto, pode dizer-se que a expressão "sentença" que consta do art. 741.º, n.º 1, CPC não abrange a sentença arbitral, porque nesse caso, atendendo às partes da convenção de arbitragem, o processo arbitral só podia ter sido proposto contra um dos cônjuges. Se esta condição não se verificar, nada impede que aquele termo "sentença" possa abranger igualmente a sentença arbitral.

MTS