Prova documental;
apresentação; "momento posterior"
1. O sumário de RP 4/5/2022 (10639/20.2T8PRT-A.P1) é o seguinte:
O depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária, pela sua utilidade, a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil (cf. respetivo nº 3), contanto que se refira a factos não essenciais e não previamente alegados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"No essencial, defende a A. recorrente que os documentos que apresentou com o seu requerimento de 10.1.2022 devem ser admitidos porque desmentem a justificação dada pela testemunha AA para o não pagamento das prestações devidas pela R. à A. relativamente à amortização do empréstimo de €150.000,00 que esta fez a seu favor com vista à realização de obras de adaptação do espaço locado.
A testemunha terá afirmado que o reembolso daquele financiamento nunca foi objeto de faturação autónoma por parte da A. Sendo tal afirmação devida a equívoco da testemunha, segundo a A., devem ser admitidos os documentos que juntou para prova de que houve efetivamente faturação autónoma processada pela A. que enviava também à R. os respetivos recibos. Aquelas faturas discriminavam as importâncias parcelares e não se confundem com as faturas das rendas.
Considera a recorrente que os documentos apresentados devem ser admitidos ao abrigo do art.º 423º, nº 3, última parte, do Código de Processo Civil [---], ou seja, por a sua apresentação se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, sendo essa ocorrência o depoimento da referida testemunha, tomado na sessão de audiência de 6.1.2022 (a 1ª sessão).
Vejamos.
O direito à prova, constitucionalmente consagrado no art.º 20° da Constituição da República --- princípio acolhido no art.º 413º, nº 1 --, é uma componente do direito geral à proteção jurídica, de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva. Desse direito decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, e, por outro, a possibilidade de utilização, pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem. A recusa de qualquer meio de prova deve ser fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.
O nosso Direito processual tem como um dos seus objetivos principais que a solução judicial seja a que mais se ajuste à real situação que é objeto do litígio. Por isso, o critério fundamental de aferição da admissibilidade de documentos é a sua pertinência para a prova dos fundamentos da ação ou da defesa (art.º 423º, nº 1), ou seja, para a prova dos factos que integram a causa de pedir e as exceções invocada na ação.
Em todo o caso, o direito à prova não é absoluto; contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca.
Não se suscitando qualquer dúvida sobre a licitude dos meios de prova que constituem documentos apresentado pela A. com o requerimento de 10.1.2022. Os documentos constituem fonte de prova real, não havendo dúvida quanto à sua admissibilidade como meio de prova. Neles se encontram registados factos que podem ser (ou não) relevantes para o processo, por via de uma intervenção humana intencional (art.º 362º do Código Civil). Tal como os outros meios de prova, têm por função a demonstração da realidade dos factos alegados pelas partes, ou melhor, a verdade dessa alegação (art.º 341º do Código Civil), depois do decurso da 1ª sessão (6.1.2022) e antes da 2ª sessão, a questão resume-se a saber se o seu oferecimento foi tempestivo e oportuno.
Sobre o momento da apresentação de documentos no processo civil comum, dispõem sobretudo os art.ºs 423º, 425º, 552º, nº 2, 572º, al. d), 588º, nºs 1 e 5, e 651º.
A regra é os documentos serem apresentados com o articulado em que se aleguem os factos que os mesmos visam demonstrar (nº 1 do art.º 423º). Se os documentos não forem juntos com esse articulado, dispõe o nº 2 do mesmo artigo que podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte condenada em multa por essa apresentação tardia; porém, não ocorrerá a condenação se provar que os não pôde oferecer com o articulado. O nº 3 estabelece uma norma que, pela sua justeza, é de todo indeclinável: depois do momento temporal referido no nº 2 ainda poderão ser admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
O Código de Processo Civil de 2013 visou, com este regime temporal coartar uma tendência que se constituíra em autêntica estratégia processual traduzida no protelamento da junção de documentos para o decurso da audiência final e os efeitos adversos que daí advinham para um procedimento que se deseja célere e desobstruído, sem incidentes evitáveis [---]. A solução mais rígida que foi consagrada de impor a apresentação dos documentos com o articulado respetivo foi, no entanto, temperada pela permissão legal de as partes, mesmo quando podiam e deviam ter apresentado anteriormente os documentos, ainda o poderem fazer até 20 dias antes da data da realização da audiência final, mediante o pagamento de multa. Manifestamente, o legislador, numa solução de compromisso, quis garantir o direito à prova com o menor prejuízo processual possível, sobretudo na audiência, prevenindo designadamente o seu adiamento resultante da necessidade de cumprir o contraditório se nela fosse de admitir a apresentação de documentos que já anteriormente pudessem ter sido indicados. A antecedência de 20 dias na junção de documentos justifica-se assim como prazo suficiente para que a parte contrária exerça o contraditório quanto a esses novos meios de prova e o tribunal os admita sem necessidade de dar sem efeito a data designada para a audiência e de prejudicar o seu normal funcionamento. [...]
Atento o momento em que os documentos foram apresentados pela A. e a possibilidade que esta tinha de os ter apresentado em momento processual anterior, por serem pré-existentes, a questão a decidir depende essencialmente de saber se ocorreu algum facto posteriormente aos limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 423º que tenha tornado necessária a sua apresentação (parte final do nº 3 do mesmo artigo).
Para a recorrente, a ocorrência posterior que constitui a segunda ressalva daquele nº 3 é, no caso, o depoimento de uma determinada testemunha prestado na audiência final.
Esta ressalva está sobretudo destinada à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no nº 2 do mesmo art.º 423º e, segundo Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 370.], não se verifica -- não se torna necessária a apresentação de documentos em virtude de ocorrência posterior -- quando a testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, quer se trate de um facto essencial já alegado, que de um facto puramente probatório, sendo que a ocorrência que torna necessária a apresentação deste meio de prova é a pretérita alegação desta matéria, cabendo então a situação no nº 1 do art.º 423º.
A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa professam entendimento, em larga medida, semelhante quando referem [Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pág. 501.] que “o depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº 3 do art. 423 do Código de Processo Civil”. Acrescentam ali que “o conceito de “ocorrência posterior” que legitima a entrada de documentos no processo não respeitará, por certo, a factos que constituam fundamento da ação ou da defesa (factos essenciais, na letra do art. 5º), pois tais factos já hão de ter sido alegados nos articulados oportunamente apresentados ou, pelo menos, por ocasião da dedução de articulado de aperfeiçoamento (art. 590º, nº 4). Tão pouco respeita a factos supervenientes, pois a alegação desses factos deve ser acompanhada dos respetivos documentos, sendo esse o meio da sua entrada nos autos (art. 588º, nº 5). Portanto, no plano dos factos, a ocorrência posterior dirá somente respeito a factos instrumentais ou a facto relativo a pressupostos processuais (…)” [No mesmo sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 3ª edição, Vol. 2º, pág. 241.]. Na perspetiva destes autores, o próprio facto instrumental --- e não a sua notícia, designadamente através de depoimento testemunhal --- enquanto ocorrência relevante para efeito do nº 3, tem que ser posterior aos limites temporais previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 423º.
Não tem sido exatamente este o entendimento que, pelo menos, a jurisprudência mais recente tem produzido. Segundo esta, um depoimento testemunhal ou um depoimento de parte, por ex., produzidos em audiência, podem constituiu uma “ocorrência posterior” justificativa da apresentação e admissão de documentos naquela mesma sede, contanto que não se trate de factos essenciais da ação ou de exceção, a seu tempo invocados, já que, com a respetiva alegação, deverão ser entregues também os documentos destinados a fazer a sua prova.
No acórdão da Relação de Lisboa de 25.9.2018 [Proc. 744/11.1TBFUN-D.L1-1, in www.dgsi.pt.] consignou-se: “A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (relativamente a alterações factuais exteriores ao processo a forma adequada de as tornar relevantes é a dedução de articulado superveniente, não se levantando aí qualquer problemática quanto à possibilidade de com esse articulado se apresentarem os correspondentes documentos). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes.”
Para além do ónus de alegação dos factos essenciais, o tribunal pode atender aos factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão a causa (art.º 5º, nº 2), sendo perante a revelação destes factos (e não daqueloutros), na produção de prova em audiência que poderá surgir a necessidade de confirmação ou contradição dos mesmos mediante prova documental. E, como se refere ainda naquele acórdão da Relação de Lisboa, a essa situação de necessidade/utilidade na apreciação do documento se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior.
Portanto, a ocorrência posterior a que se refere o nº 3 não é um facto principal ou essencial --- estes entram na causa através da alegação nos articulados normais, em articulado superveniente ou ainda em articulado de um incidente, como o da habilitação do sucessor no direito litigioso (art.ºs 351º e 356º); situações abrangidas pela norma do nº 1 do art.º 423º -- mas factos instrumentais e complementares ou concretizadores relevantes para a demonstração dos factos essenciais ou nucleares ou de facto que interesse à verificação dos pressupostos processuais. Note-se que estes factos nem sequer têm que ser alegados, bastando que resultem da instrução a causa (art.º 5º, nº 2, al.s a) e b), do Código de Processo Civil).
Assim, o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária, pela sua utilidade, a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.º 1 e 2, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais ou principais [Acórdão da Relação de Lisboa de 26.9.2019, proc. 27/18.6T8ALQ-A.L1-6, in www.dgsi.pt] e exista um elemento de novidade, mormente por se prefigurar, em resultado da instrução, nova factualidade instrumental idónea a suportar presunções judiciais, complementar ou concretizadora de factos essenciais (integrantes da causa de pedir ou de exceções oportunamente deduzidas). Os factos instrumentais, indiciários ou probatórios, serão assim o campo natural de aplicação da norma da 2ª parte do artigo 423º, n.º 3. [Acórdão da Relação de Lisboa de 6.12.2017, in www.dgsi.pt, citando outra jurisprudência.]
Assim sendo, e acompanhando aquela jurisprudência, temos para nós que o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um ou mais documentos fora dos momentos previstos no artigo 423º, n.ºs 1 e 2, desde que no seu depoimento invoque factos relevantes que sejam novos no processo e não devam ser qualificados como factos essenciais."
[MTS]