"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/02/2023

Jurisprudência 2022 (118)


Petição inicial;
ineptidão; contradição


1. O sumário de RC 24/5/2022 (2145/20.1T8CBR.C1) é o seguinte

Ocorre ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, de conhecimento oficioso, se o autor, peticionando a condenação da contraparte, a título de enriquecimento sem causa, no pagamento dos valores que, no âmbito de união de facto com esta, alegou ter despendido na aquisição de determinados bens, em simultâneo invoca ser comproprietário desses mesmos bens, na proporção do valor suportado com a aquisição.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No artigo 10.º da petição inicial, sem qualquer justificação adicional, o A. elenca um conjunto de bens (entre eles o aludido imóvel que constitui a casa de morada de família), que designa como “bens comuns” e o seu valor.

Finalmente, no art. 11.º alega que tais bens foram adquiridos “em comunhão de esforços ou no âmbito do regime de compropriedade e pertencem a um património comum carecido de liquidação”.

Ou seja, para além de um conjunto de expressões conclusivas e de natureza jurídica, sem qualquer suporte factual justificador, resulta o ostensivo arrogar por parte do A. do direito de compropriedade sobre esses bens, incluindo o imóvel relativamente ao qual tem vindo a custear metade dos encargos devidos pelo mútuo bancário contraído para a sua aquisição.

E por aqui se queda a construção da pretensão do A. no sentido de obter a declaração de enriquecimento sem causa da Ré à custa do A. e a condenação da mesma ao reembolso da quantia correspondente ao empobrecimento do A.

Ainda que se ignore a falta de consubstanciação da invocada existência da união de facto, tendo o A. apoiado o seu direito exclusivamente com base do enriquecimento sem causa, importava alegar o concreto enriquecimento da Ré, sem causa justificativa, à custa do A. (art. 473.º do Cód. Civil).

Ora, a esse propósito, limitou-se a alegar que relativamente a um imóvel não especificado, o A. tem vindo a contribuir, desde 2013, com o pagamento de metade das quantias relativas ao mútuo bancário contraído (pela Ré) com a sua aquisição e que, tal imóvel, em conjunto com outros bens que elencou, se tratam [sic] de bens em regime de compropriedade, carecida de liquidação.

Do exposto resulta que, para além da inexistência de consubstanciação da base factual necessária a aferir a pretensão de obter a prestação indevida, estamos em presença de um pedido que se encontra em contradição com a causa de pedir.

É que se por um lado o A. se arroga da qualidade de comproprietário dos bens elencados 10.º, ao mesmo tempo, e em termos inconciliáveis, pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe o montante correspondente ao valor com que se viu empobrecido por via dessas aquisições.

O A. ou é comproprietário desses bens e pode, se assim o entender, exigir o reconhecimento dessa qualidade e (eventualmente) a sua divisão (arts. 1403.º e 1412.º do Cód. Civil), ou é detentor de um mero direito de crédito que emerge do facto de a Ré, sem causa justificativa, ter enriquecido à sua custa (art. 473.º do Cód. Civil).

O que se mostra totalmente incompatível e totalmente incongruente em termos jurídicos é fundamentar esse aludido direito de crédito na existência da compropriedade (que pressupõe o status e medida do seu direito incorporados na quota respetiva).

Do exposto decorre que a petição inicial não apenas é inepta por falta de causa de pedir, como também o é por o pedido se apresentar em contradição com a causa de pedir, conforme sancionado pelo art. 186.º, n.º 1 e 2, b) do CPC, sendo para esse efeito indiferente que a Ré tenha ou não interpretado convenientemente a petição inicial.

Sendo a ineptidão (com o fundamento agora enunciado) de conhecimento oficioso, nada obsta que este tribunal a verifique e reconheça nesta fase, uma vez que tal vício não se mostra sanado (art. 196.º do CPC)."
 
[MTS]