"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2023

Jurisprudência 2022 (116)


Reg. 1215/2012;
pacto de jurisdição; forma


I. O sumário de RL 19/5/2022 (10578/20.7T8LSB.L1-8) é o seguinte:

1. No plano subjectivo, o Regulamento (EU) n.º 1215 do Parlamento europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, reproduz a dicotomia entre domiciliados num Estado membro ou num Estado terceiro.

2. Em relação aos primeiros, o artigo 4.º, 1, confirma que, independentemente da sua nacionalidade, devem ser demandados nos tribunais onde estão domiciliados, sem prejuízo da aplicação das normas sobre jurisdição constantes do Regulamento, designadamente do disposto no artigo 25.º.

3. Um pacto de jurisdição celebrado entre um utilizador e o Facebook (e o Instagram), nos termos do qual “Se fores um consumidor com residência habitual num Estado-Membro da União Europeia, as leis desse Estado-Membro serão aplicadas a qualquer reclamação, ação ou litígio que tenhas contra nós e que surja de ou esteja relacionado com estes Termos ("reclamação"). Assim, poderás resolver a tua reclamação em qualquer tribunal competente nesse Estado-Membro que tenha jurisdição sobre a reclamação. Em todos os outros casos, concordas que a reclamação tem de ser resolvida num tribunal competente na República da Irlanda e que a lei irlandesa vai reger estes Termos e qualquer reclamação, independentemente das disposições referentes ao conflito de leis», é válido, porquanto a noção de forma escrita a que se refere a alínea a), do n.º1, do citado artigo 25.º , abrange qualquer comunicação com meios electrónicos que permite um registo duradoiro desse acordo.

4. O autor não pode ser considerado um consumidor se não fazia um uso só pessoal da sua conta, mas também utilizava a mesma para algumas divulgações da sua actividade profissional.

5. Sendo assim as coisas, são os tribunais da República da Irlanda os competentes para conhecer da acção.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No plano objectivo, o Regulamento (EU) n.º 1215 do Parlamento europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (chamado Bruxelas I-bis, adiante designado por REG; serão deste regulamento os artigos ulteriormente citados sem outra menção), aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição (artigo 1.º, 1).

No plano subjectivo, o REG reproduz a dicotomia entre domiciliados num Estado membro ou num Estado terceiro.

Em relação aos primeiros, o artigo 4.º, 1, confirma que, independentemente da sua nacionalidade, devem ser demandados nos tribunais onde estão domiciliados, sem prejuízo da aplicação das normas sobre jurisdição constantes do REG, designadamente do disposto no artigo 25.º.

Uma das normas mais importantes do REG é seguramente esta regra que prevê a possibilidade para as partes, ainda que não domiciliadas num estado-membro, de estipularem acordos que atribuem jurisdição a um juiz de um ou mais Estados da União para o conhecimento de determinada controvérsia, ainda que sem qualquer conexão subjectiva ou objectiva com esse Estado.

Tal acordo tem o efeito positivo de atribuir competência exclusiva a um determinado tribunal (prorrogação da jurisdição), prevenindo incertezas quanto à determinação do tribunal competente em caso de futuro litígio. Ao invés, tem o efeito negativo de retirar competência a qualquer outro juiz, o qual diante de tal pacto e chamado a pronunciar-se sobre o conflito, deverá julgar-se incompetente.

Quanto aos requisitos formais de validade de uma cláusula de prorrogação de jurisdição, o actual artigo 25.º exige que o acordo seja:

a) escrito ou confirmado por escrito;
b) concluído de uma forma admitida pelos usos que as partes tenham estabelecido entre si;
c) no comércio internacional, concluído na forma admitida pelos usos, conhecidos e respeitados pelos operadores do sector, que as partes conheçam ou devam conhecer.

O acordo acima referido em 50 é válido, de acordo com o requisito enunciado sob a), porquanto a noção de forma escrita abrange qualquer comunicação com meios electrónicos que permite um registo duradoiro desse acordo.

Na verdade, o Acórdão do TJUE de 21 de maio de 2015 (Jaouad El Majdoub c. CarsOnThe web. Deutschland GmbH) declara que: «o artigo 23.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a técnica de aceitação por «clic» das condições gerais de um contrato de compra e venda, como o que está em causa no processo principal, celebrado por via electrónica , que constituem um pacto atributivo de jurisdição, constitui uma comunicação por via electrónica que permite um registo duradouro desse pacto, na acepção desta disposição».
A competência do foro português para conhecer de qualquer «reclamação» que o autor pretendesse formular contra os serviços da ré ficou dependente de o recorrido poder invocar a sua qualidade de consumidor.

O autor não pode ser considerado consumidor.

O TJUE tem entendido que o conceito de consumidor é definido por oposição ao de «operador económico», só podendo o utilizador invocar a primeira qualidade se a utilização de determinado serviço, mesmo que inicialmente não prevista no contrato, não tiver adquirido depois caracter profissional (Acórdão TJUE de 25.1.2018, Schrems c. Facebook Ireland Ltd).
Ora quando o autor alega na sua petição inicial que:

9. Além disso o A. não fazia uso só pessoal da sua conta, também utilizava a mesma para algumas divulgações da sua actividade profissional;
10. E para comunicar, com familiares, amigos, além disso também fazia pela plataforma alguns contactos profissionais.
25. Bem como perdeu também contactos profissionais onde estavam envolvidos valores e termos dos serviços acordados, e o registo de conversas das quais não tinha qualquer cópia.
33. Esta situação também é relevante e grave, não só porque o A utilizava também muito a sua conta de facebook, como era administrador da página de facebook da sua empresa – ... Bar.
47. É inegável que o A. sofreu danos, a tristeza e a angústia e a preocupação que todo este problema lhe trouxe, não só pessoalmente como profissionalmente, não podem ser deixados ao acaso.
48. O desgosto, o medo de consequências por poder estar em listas negras, a incapacidade de retomar contactos e assuntos que estavam na conta, acrescido da impossibilidade de gerir a página de facebook do seu negócio têm provocado ao A insónias, mal estar físico e angústia,
 
Está manifestamente a invocar uma qualidade profissional conexa, diferente da de um mero consumidor e a colocar-se fora da aplicação do artigo 19.º do REG.

Aplica-se então a última parte do pacto, sendo competentes as justiças da Irlanda.

E não se invoque em contrário os considerandos do REG, os quais, digam o que disserem - e não dizem o que o tribunal interpretou que dizem (cfr. conclusões II) a NN)) do recurso da ré) - não têm obviamente capacidade de só por si gerar prescrições jurídicas."

[MTS]