-- STJ 24/5/2022 (3853/20.2T8BRG.G1.S1);-- STJ 7/6/2022 (24974/19.9T8LSB.L1.S1);-- STJ 7/6/2022 (4147/20.6T8STB.E1.S1) (referido no acórdão a seguir indicado);-- STJ 23/6/2022 (3239/20.9T8CBR-A.C1.S1).
Como se vai procurar demonstrar, não se pode aceitar a argumentação utilizada pelo STJ.
[...] o Tribunal de Justiça da União Europeia tem também uma importante jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional, relativa a ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000 [---].
O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, Fiona Shevill, Ixora Trading Inc, Chequepoint SARL e Chequepoint Internacional Ltd contra Presse Alliance, S.A. [Processo C-68/93, EU:C:1995:61], relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal France Soir, à venda em vários países europeus, incluindo Inglaterra, onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta. [...]
No entanto, uns anos volvidos, no importante Acórdão de 25.10.2011, e-Date Advertising GmbH contra X e Olivier Martinez contra MGN Limited [ Processos apensos C-509/09 e C161/10, EU:C:2011:685., relativamente à propositura de ações de responsabilidade civil pela publicação em portais noticiosos na Internet de referências à condenação de X pelo homicídio de um conhecido ator e aos encontros amorosos de Kyllie Minogue e Oliver Martinez, já se entendeu que o artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, deveria ser interpretado no sentido de que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado. [...]
Mais tarde, no Acórdão de 17.10.2017, Bolagsupplysningen OU e Ingrid Ilsjan contra Svensk Handel AB [Processo C-194/16, EU:C:2017:766.], relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia, entendeu-se que o artigo 7.º ponto 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, deveria ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses. [...]
Finalmente, no recente Acórdão de 21-12-2021, Gtflix Tv contra DR [Processo C-251/2020, EU:C:2021:103], relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação em sítios e fóruns Internet de afirmações depreciativas da sociedade Gtflix Tv que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se no sentido que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.
4. A aplicação ao caso concreto
Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.
O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso.
Relembre-se que, na presente ação, o Autor fundamenta o pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, na violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem, no facto de um “seu avatar” ser um dos muitos protagonistas dos videojogos mundialmente comercializados ... e ..., 2011, 2012, 2013 e 2014, produzidos pela Ré, sem que tenha dado autorização para que o seu nome e imagem fossem utilizados, invocando como danos a ressarcir a exposição pública não autorizada do seu nome e imagem sem qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles jogos poderá ter na sua vida profissional e pessoal e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que aquela utilização não autorizada lhe provocou. Na versão apresentada na petição inicial, esses videojogos foram produzidos nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia) e foram e são comercializados e difundidos por todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré, (destacando-se na Europa a E... SARL que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos ..., ... e ...), tendo o Autor domicílio em Portugal e jogado profissionalmente desde 2003-2004 até aos dias de hoje em clubes portugueses, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, em que jogou no ..., na .... [...]
Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.
Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping.
Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (desde finais de 2009, pelo ... e finais de 2018, pelo ...), com exceção das épocas desportivas de 2013/2014 e 2014/2015, que o Autor jogou numa equipa romena, o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.
Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, se encontrava.
Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (finais de 2009, relativamente ao ... e finais de 2018, relativamente ao ...), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça.
Esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.
3. a) Salvo o devido respeito, a jurisprudência do STJ que tem aceitado a competência dos tribunais portugueses para a apreciação da indemnização pedida pelos demandantes padece de um salto lógico na transposição da jurisprudência europeia para a ordem interna portuguesa e, em especial, para a aplicação do critério da causalidade estabelecido no art. 62.º, al. b), CPC.
-- Estes preceitos aplicam-se (ou aplicavam-se) apenas a demandados domiciliados num Estado-Membro da UE (art. 3.º, n.º 1, CBrux; art. 3.º, n.º 1, Reg. 44/2001; art. 5.º, n.º 1, Reg. 1215/2012);
-- Os mesmos preceitos aplicam-se (ou aplicavam-se) em alternativa à competência-regra do domicílio do demandado (art. 2.º, n.º 1, CBrux; art. 2.º, n.º 1, Reg. 44/2001; art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012).
É, assim, mais do que discutível que a jurisprudência europeia possa ser transporta para um caso a solucionar pelo direito interno português, dado que este não comporta nenhumas regras semelhantes àquelas que se encontram estabelecidas nos referidos instrumentos europeus. Na verdade, no direito interno português:
-- Não vigora, nem no âmbito da competência interna, nem do da competência internacional, nenhuma regra que estabeleça que, para toda e qualquer acção, é sempre competente o tribunal do domicílio do demandado;
-- Consequentemente, também não vigora nenhuma regra segundo a qual, em certas hipóteses, essa parte pode ser demandada noutros tribunais que não o do seu domicílio.
A este quadro jurídico acresce a circunstância de a demandada (um empresa norte-americana) não ter domicílio em Portugal e de, portanto, não se verificar um dos elementos essenciais para a aplicação do referido regime europeu e, por isso, para a definição do centro de interesses do lesado como sendo o lugar onde ocorreu o facto danoso. Note-se que, segundo o regime europeu, é esta circunstância que permite que o lesante, em vez de ser demandado nos tribunais do seu domicílio, possa ser demandado nos tribunais daquele centro de interesses (que, normalmente, coincidirá com o do domicílio do lesado).
Em conclusão: perante enquadramentos legais totalmente díspares e elementos de facto igualmente distintos não podem ser defendidas as mesmas soluções.
Não se percebe, aliás, como é que se entende que, pela circunstância de em Portugal ter ocorrido uma das múltiplas violações do direito à imagem e ao nome do demandante, não se considera que a competência dos tribunais portugueses para a apreciação de toda e qualquer violação ocorrida em toda e qualquer geografia é uma competência exorbitante. É certo que, muito possivelmente, o que é difícil é que se entenda que a competência internacional atribuída pelo critério da causalidade não é, sempre e em si mesma, uma competência exorbitante, mas isso não justifica (antes pelo contrário) que se possa aplicar esse critério estendendo ao todo (violação ocorrida em qualquer parte do Mundo) o que apenas pode valer para uma parte (violação ocorrida em Portugal).
Pode imaginar-se que, ao contrário do que exige o disposto no art. 71.º, n.º 2, CPC, não se quis aceitar que Portugal seja "o lugar onde o facto ocorreu", isto é, onde ocorreu a totalidade da violação dos direitos do demandante. Mas, se é assim, como justificar que não se aplique o critério da coincidência pela circunstância de não se poder afirmar que o facto ilícito (ou a totalidade do facto ilícito) tenha ocorrido em Portugal, mas se aplique o critério da causalidade para justificar que os tribunais portugueses são competentes para apreciar toda e qualquer violação ocorrida em toda e qualquer parte do Mundo?
Aliás, não deixa de ser curioso que o STJ siga a jurisprudência europeia que, na interpretação do regime estabelecido para a competência relativa à responsabilidade civil extracontratual (art. 5.º, n.º 3, CBrux, art. 5.º, n.º 3, Reg. 44/2001 e art. 7.º, n.º 2, Reg. 1215/2012), identifica o lugar do facto danoso com o centro dos interesses do demandante, mas depois, em vez de aplicar o regime correspondente do direito interno português (que é o que consta do art. 71.º, n.º 2, CPC), opte por não aplicar esse regime.
Em coerência com a jurisprudência europeia que aceita seguir, o STJ não poderia ter deixado de aplicar o art. 71.º, n.º 2, CPC (ou, talvez melhor, de se confrontar com a dificuldade da sua aplicação). Foi aliás isso que, pelo menos em coerência com a orientação nele defendida, se fez em STJ 7/6/2022 (24974/19.9T8LSB.L1.S1).
d) Em conclusão: a competência internacional dos tribunais portugueses para as acções de indemnização propostas por futebolistas que consideram que foram violados os seus direitos à imagem e ao nome deve ser reconhecida, com base no critério da coincidência (art. 71.º, n.º 2, e 62.º, al. a), CPC), apenas para os danos efectivamente sofridos pelo demandante em Portugal. É esta -- e apenas esta -- a solução que está à disposição da jurisprudência portuguesa -- e que, aliás, é muito fácil de aplicar.
É claro que, aceite nestes termos a competência internacional dos tribunais portugueses, a decisão de mérito só pode incidir sobre os danos ocorridos em Portugal.
e) A latere destas considerações pode acrescentar-se que, atendendo ao requisito da "proper personal and subject-matter jurisdiction over the judgment debtor", o reconhecimento nos Estados Unidos de uma decisão portuguesa de alcance mundial não é nada que possa ser considerado certo e seguro.
MTS