Fixação judicial de prazo;
inutilidade superveniente da lide*
I - O processo especial de fixação judicial do prazo, a que se reportam os artigos 1026º e 1027º, ambos do Código de Processo Civil, é um processo de jurisdição voluntária que visa unicamente a fixação de prazo, não cabendo no seu âmbito a discussão de questões de cariz contencioso atinentes à obrigação, designadamente relativas ao conteúdo, interpretação e exigibilidade.
II - O pedido formulado na ação é o da fixação do prazo e a causa de pedir a inexistência do mesmo ou o não acordo entre devedor o credor quanto ao momento do vencimento da obrigação.
III - Não se justifica, por inútil, a fixação judicial do prazo para cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Conforme resulta do disposto no artigo 406° do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor só cumpre a obrigação, quando realiza a prestação a que está vinculado (cfr. artigo 762º do mesmo diploma).
Considerando o regime geral previsto para o incumprimento dos contratos (artigos 801º e seguintes do Código Civil) há uma distinção capital a estabelecer, consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível.
Na primeira hipótese, de mora, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); já na segunda hipótese, a prestação impossibilita-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável, seja quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, seja nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor.
De acordo com o disposto no artigo 801, n.ºs 1 e 2 do Código Civil tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor e tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato.
O caráter definitivo do incumprimento da obrigação ocorre quando: a) em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação; b) se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta; c) se o devedor declarar inequívoca e perentoriamente ao credor que não cumprirá a obrigação.
Pode assim afirmar-se que o incumprimento definitivo abrange os casos de impossibilidade da prestação, quer quando esta se torna absolutamente inviável, quando a probabilidade da sua realização se torna extremamente improvável (por não depender exclusivamente da vontade do devedor) ou mesmo quando o devedor manifesta perante o credor o propósito de não cumprir.
O incumprimento definitivo, na falta de cláusula resolutiva ou prazo essencial, traduz-se na perda do interesse objetivo do credor, em consequência da mora do devedor, na recusa deste em cumprir a obrigação, ou no decurso do prazo admonitório, situações que permitem à contraparte o direito de resolver o contrato (cfr. artigo 808º do Código Civil; v. ainda Acórdão da Relação do Porto de 18/12/2018, Processo n.º 4070/17.4T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, entendendo-se como incumprimento definitivo a recusa de cumprimento, nela se incluindo não só a declaração de não querer cumprir, como, em geral, todo o comportamento do devedor suscetível de indicar que não quer ou não pode cumprir, é de concluir que para a Recorrente poder instaurar a ação de processo comum, na qual será eventualmente discutida e decidida a questão substantiva da caducidade do direito de opção, não carece da fixação de prazo para que a Ré incorra em mora e nem de transformar a mora em incumprimento definitivo (designadamente através da interpelação admonitória) pois a própria Ré veio afirmar que não irá outorgar a escritura pública, não estando para tal disponível.
A questão que aqui se coloca é exatamente a de saber se perante a posição da Ré, que negou a existência da obrigação (por ter caducado o direito da Autora) e manifestou a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, ainda assim se justifica a fixação de prazo para cumprimento da obrigação, remetendo para a posterior ação comum de incumprimento o conhecimento da apreciação efetiva da existência da obrigação.
Ora, a resposta a esta questão terá de ser necessariamente negativa.
Entendemos não se justificar, por ser inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la, pois nestes casos a estipulação de tal prazo não é essencial para eventual apreciação de uma situação de mora e subsequente incumprimento definitivo da obrigação, caso esta venha a ser julgada existente e válida, visto que o devedor considera, desde logo, não ter qualquer intenção em cumprir a obrigação, assumindo, assim, o incumprimento definitivo.
Neste sentido se pronunciam os já citados Acórdãos da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2018 e da Relação de Lisboa de 24 de outubro de 2017 (onde se considera que “[N]egando a R. a existência da obrigação, recusa-se, consequentemente, a cumpri-la [---], pelo que é, em todo o caso, também, defensável o entendimento de que não se justifica a fixação judicial de prazo para cumprimento da obrigação, a quem antecipadamente declarou não a cumprir”, e onde se citam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29/03/1984, CJ, Tomo II, pág. 119, da Relação do Porto de 16/02/1989, CJ, Tomo I, pág. 194); no mesmo sentido podemos ainda citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016 (Relator Oliveira Barros, disponível em www.dgsi.pt) onde se afirma que “[T]em-se, de resto, repetidamente feito notar,- e tal é o que se revela, a todas as luzes, irrecusável -, não se justificar, por inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.
Em face do exposto impõe-se concluir que, tendo a Ré negado a existência da obrigação, por entender encontrar-se caduco o direito da Autora, manifestando a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, se mostra efetivamente inútil a fixação judicial do prazo para cumprimento da obrigação.
Não merece, por isso, censura a sentença recorrida que julgou verificada a inutilidade da presente lide, improcedendo integralmente o recurso.
As custas deste recurso são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil) em face do seu integral decaimento.
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a posição da RG (nem, portanto, a da anterior jurisprudência que se pronunciou no mesmo sentido).
O autor requereu que o tribunal fixasse um prazo para o cumprimento de uma obrigação. Depois disso, conforme informa o acórdão,
"A Ré, em sede de contestação veio invocar a caducidade do direito invocado pela Autora e, consequentemente, a inexistência de qualquer obrigação da sua parte, afirmando expressamente não estar disponível para outorgar a escritura de compra e venda, considerando inútil a fixação de prazo para a mesma".
A verdade é que a manifestação pelo réu de que jamais se dispõe a cumprir a obrigação nunca pode ser fundamento para a não fixação do prazo pelo tribunal. Se assim fosse, estaria descoberta a via não só para evitar qualquer fixação de todo e qualquer prazo, mas também para impossibilitar que o credor pudesse utilizar contra o devedor um prazo judicialmente fixado: bastaria que o réu dissesse que não tem a mínima intenção de cumprir a obrigação.
Até pode ser que o réu o diga. O que não pode suceder é que isso constitua fundamento para não se fixar o prazo requerido pelo autor.
b) Recorde-se a configuração da inutilidade superveniente da lide (art. 277.º, al. e), CPC): esta inutilidade ocorre quando a acção era útil no momento da sua propositura e, pela ocorrência de um facto superveniente durante a sua pendência, se torna inútil.
A intenção de não cumprir a obrigação manifestada pelo réu na sua contestação não pode valer certamente como um facto que torna inútil o que até aí era útil. Pela mesma lógica, haveria que concluir que qualquer facto alegado pelo réu na contestação seria um facto superveniente e, mais em particular, que, numa acção para cobrança de dívida, a manifestação pelo réu de que jamais a pretende pagar constituiria fundamento para a inutilidade superveniente da lide. Parece seguro que a negação da dívida pelo do réu (e mais ainda a alegação da intenção de jamais a vir a cumprir) nunca pode ser considerada um facto superveniente.
In casu, a haver qualquer inutilidade da fixação do prazo, ela nunca poderia ser superveniente, dado que entre o momento da instauração do processo e o momento da sua decisão não ocorreu nenhum facto que a tivesse tornado inútil. Como se disse, a alegação pelo réu de que não tenciona cumprir a dívida jamais pode ser considerada um facto superveniente.
c) Por fim, no seu acórdão a RG afirma o seguinte:
"Com a fixação do prazo o tribunal não decide da existência, validade, exigibilidade ou obrigação de o cumprir, pois neste processo especial não está em causa a discussão de questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar (designadamente de vícios referentes à inexistência, nulidade, prescrição ou caducidade da obrigação), as quais devem ser decididas no âmbito da ação comum."
Com a devida consideração, não se compreende como é que, depois desta afirmação, se entende dar relevância à caducidade alegada pela ré e se conclui pela inutilidade superveniente da lide.
MTS