Litigância de má fé;
apreciação; contraditório
1. O sumário de RG 11/5/2022 (1665/14.1T8BRG-I.G1) é o seguinte:
Se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia.
Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto, uma vez que esta só tem lugar na sentença, por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre essa matéria; o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A Meritíssima Juiz não conheceu da questão da litigância de má-fé, por parte do autor, na sentença, por considerar que quanto a essa matéria impunha-se observar previamente o contraditório (---). Nessa medida, concedeu ao autor uma oportunidade para este tomar posição sobre o assunto e só depois é que proferiu o despacho de 18-2-2022, em que o condenou como litigante de má-fé.
"A Meritíssima Juiz não conheceu da questão da litigância de má-fé, por parte do autor, na sentença, por considerar que quanto a essa matéria impunha-se observar previamente o contraditório (---). Nessa medida, concedeu ao autor uma oportunidade para este tomar posição sobre o assunto e só depois é que proferiu o despacho de 18-2-2022, em que o condenou como litigante de má-fé.
Perante este cenário processual o autor sustenta que "não é consentido ao juiz, salvo casos excecionais (…), relegar tal decisão quanto à litigância de má-fé para momento posterior à sentença, por a tanto se oporem os limites do seu poder jurisdicional, que cessa com a prolação da mesma." Com a prolação da sentença "o poder jurisdicional do tribunal quanto a essa matéria mostra-se esgotado, não sendo lícito reabrir a instância para tal fim. [E] o despacho proferido, após o esgotamento do poder jurisdicional do juiz do processo, à luz do disposto no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC. e de acordo com a sua interpretação extensiva, é nulo por excesso de pronúncia." (---)
Vejamos.
O n.º 2 do artigo 608.º estabelece que na sentença "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras." Significa isso que as questões aqui previstas "reportam-se aos fático-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, (…) às concretas controvérsias centrais a dirimir." (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 753.)
Portanto, se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença (--), sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia (---).
Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide (---) e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto (---), uma vez que esta só tem lugar na sentença (---), por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre esse tema (Cfr. Ac. Tribunal Constitucional 30/2020 e 498/2011.); o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual, nomeadamente a nulidade a que se reporta o artigo 615.º n.º 1 d).
No caso dos autos, a Meritíssima Juiz fundou-se na circunstância de da "factualidade provada e respetiva motivação resulta[r] que o A, apesar de saber, desde 1994, que as construções existentes no "Campo do ..." são ilegais, em 2011/2012 levou a cabo obras de adaptação da construção existente e procedeu à construção de um edifício novo para oficina, sabendo tratar-se de obras ilegais, não legalizáveis e, como tal, sem qualquer valor», para concluir que o autor «deduziu assim pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (pois sabia, pelo menos, desde 1994 da ilegalidade das construções implantadas no "Campo Do ...", relativamente às quais nunca foi emitida licença por o prédio se encontrar, em grande parte (zona poente) em Reserva "Agrícola Nacional") e, dessa forma, fez um uso manifestamente reprovável do processo.»
Quer isso dizer que antes de estarem assentes os factos provados não era possível afirmar, com a imprescindível segurança, que o autor "deduziu (…) pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar". Para além disso, note-se que até à prolação da sentença não foi levantada a questão da litigância de má-fé do autor.
Por outro lado, o poder judicial do juiz que, nos termos do artigo 613.º n.º 1, fica esgotado depois de proferida a sentença é o relativo "à matéria da causa" sobre a qual ele se pronunciou nessa peça processual (---).
Com efeito, o princípio da intangibilidade da decisão judicial, enunciado no n.º 1 do artigo 613.º, significa que, uma vez proferida decisão sobre uma determinada questão, o juiz já não a pode alterar, nem tão pouco modificar os fundamentos em que a mesma radica (---); "na verdade, o juiz da causa não pode, a partir desse momento, modificá-la quanto a eventuais erros do julgamento propriamente ditos, que haja detetado: ainda que ele admita que errou, tais erros de julgamento (quanto à matéria de facto e quanto à matéria de direito) somente podem ser corrigidos em sede de recurso. E nem pode corrigir os seus fundamentos." (Remédio Marques, Ação Declarativa À Luz do Código Revisto, 2ª Edição, pág. 639. Neste sentido veja-se Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 684.)
Neste contexto, não há qualquer vício processual decorrente de a condenação do autor como litigante de má-fé ser posterior à sentença (Neste sentido veja-se Ac. Rel. Guimarães de 31-10-2019 no Proc. 587/18.1T8PTL-A.G1, www.gde.mj.pt, bem como a doutrina e a jurisprudência aí citadas.). Aliás, o conhecimento da mesma na sentença é que teria originado uma nulidade processual, decorrente do desrespeito pelo princípio do contraditório. E o poder jurisdicional da Meritíssima Juiz sobre tal matéria não se encontrava esgotado quando ela a decidiu já depois de ter proferido a sentença."
[MTS]