"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/04/2023

A "acção de prevenção" do art. 1276.º CC é... uma acção de prevenção


1. O art. 1276.º CC, cuja epígrafe é "Acção de prevenção", estabelece o seguinte: "Se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar."

Uma opinião muito autorizada (que influenciou posições que se mantêm até ao presente) pronuncia-se da seguinte forma a propósito da acção constante do art. 1276.º CC:

"Foi a força da tradição que levou o legislador, cremos que já em 1867, a manter este meio de defesa possessória praticamente inútil. E a desnecessidade da consagração expressa da providência resulta ainda do facto de ela estar praticamente incluída no âmbito das providências cautelares não especificadas, a que se refere o artigo 399.º do Código de Processo Civil [actual artigo 362.º]. Aí se alude, com efeito, à possibilidade genérica de se requerer, com base no fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável num direito, que o réu seja intimado para que se abstenha de certa conduta" (Pires de Lima/Antunes Varela(/Henrique Mesquita), Código Civil Anotado III (1987), 46 s.).

2. Salvo o devido respeito e a enorme consideração, não se pode acompanhar esta posição. São duas as razões da discordância.

Uma primeira razão prende-se com o carácter inibitório da acção de prevenção que consta do art. 1276.º CC: através dessa acção procura-se obter a abstenção ou omissão de qualquer conduta que constitua uma perturbação ou um esbulho da posse do autor. Sendo assim, essa acção de carácter inibitório deve relacionar-se com os procedimentos cautelares como qualquer acção inibitória se relaciona com estes procedimentos.

Em concreto, isto implica admitir que, antes da propositura ou durante a pendência da acção inibitória, possa ser requerida uma providência cautelar de carácter inibitório e antecipatório. Tome-se como exemplo a acção inibitória que se encontra regulada no art. 70.º, n.º 2, CC a propósito da tutela geral da personalidade: não só nunca se defendeu -- segundo se julga -- que essa acção é, afinal, um procedimento cautelar, como nunca se colocou em causa -- também segundo se crê -- que, antes ou durante a pendência dessa acção, é admissível requerer (e obter) uma providência cautelar de natureza inibitória de qualquer ameaça ou ofensa à personalidade do requerente.

O mesmo se verifica na acção de prevenção constante do art. 1276.º CC. Generalizando: esta acção relaciona-se com os procedimentos cautelares (e, em concreto, com uma providência cautelar de carácter inibitório) como qualquer acção inibitória se relaciona com esses procedimentos (ou com essa providência). Portanto, há um campo de aplicação próprio tanto para a acção de prevenção, como para um correspondente procedimento cautelar. Quer dizer: se não há nenhum problema na articulação entre acções inibitórias e providências cautelares inibitórias, também não tem de haver nenhuma dificuldade na articulação entre a "acção de prevenção" do art. 1276.º CC e uma correspondente providência inibitória.

Há efectivamente uma coincidência entre o emprego da expressão "justo receio" no art. 1276.º CC, relativo à acção de prevenção, e no art. 619.º, n.º 1, CC, respeitante ao arresto. Trata-se apenas de uma coincidência sem nenhum significado especial, tanto mais que, se o art. 1276.º CC regulasse um procedimento cautelar, ele seria o procedimento inominado previsto no art. 362.º CPC e neste preceito fala-se de "fundado receio" e que no art. 619.º CC, n.º 1, CC se emprega a expressão "justo receio" e no correspondente art. 391.º CPC a de "justificado receio". Acresce que a expressão "justo receio" não é, de modo algum, incompatível com a acção inibitória: esta acção destina-se a impor uma omissão ou abstenção de uma conduta ilícita perante o "justo receio" da sua realização ou repetição.

Em conclusão: tal como uma acção inibitória não é um procedimento cautelar, a acção de prevenção constante do art. 1276.º CC -- que constitui exemplo de uma acção inibitória -- tem um âmbito de aplicação próprio e também não é um procedimento cautelar; não há, na realidade, nenhuma duplicação inútil quando se fala de acções inibitórias e de providências cautelares com conteúdo inibitório. 

3. Poder-se-ia ainda argumentar que nada impede que o CC estabeleça procedimentos cautelares e que o disposto no art. 1276.º seria um desses casos. É claro que é verdade que nada obsta a que o CC regule procedimentos cautelares. A título meramente exemplificativo, o muito próximo art. 1279.º CC regula efectivamente um procedimento cautelar (o de restituição provisória da posse).  

Só que o entendimento de que o art. 1276.º CC estatui um procedimento cautelar abre um novo problema. Nessa hipótese, haveria que articular o procedimento cautelar que, segundo essa opinião, estaria regulado no art. 1276.º CC com a respectiva acção principal. Efectivamente, partindo-se do princípio de que não se pretende construir um procedimento cautelar que, excepcionando o disposto no art. 364.º, n.º 1, CPC, não seria dependência de nenhuma acção principal, haveria então que encontrar ou construir a acção principal correspondente ao procedimento cautelar estabelecido no art. 1276.º CC. Quer dizer: se o art. 1276.º CC regula, afinal, um procedimento cautelar, haverá então necessariamente uma acção principal correspondente a esse procedimento.

Perante isto, a pergunta impõe-se e é evidente: qual é então a acção principal a que corresponde o procedimento cautelar regulado no art. 1276.º CC? Segundo a orientação acima referida, essa acção não poderia ser a "acção de prevenção" constante do art. 1276.º CC, dado que esta "acção" é, afinal, um procedimento cautelar. Mas -- cabe perguntar --, não podendo ser aquela "acção de prevenção", que outra acção poderá ser então a acção principal correspondente a esse procedimento?

A uma tutela cautelar inibitória não pode deixar de corresponder uma tutela definitiva de carácter igualmente inibitório, ou seja, a um procedimento cautelar inibitório não poderá deixar de corresponder uma acção inibitória. Segundo a opinião acima exposta, a acção referida no art. 1276.º CC não pode ser o meio de obter aquela tutela inibitória, já que, para essa opinião, aquele preceito se refere, afinal, a um procedimento cautelar. Só resta a alternativa de considerar que a acção principal correspondente ao procedimento cautelar que, segundo essa óptica, está regulado no art. 1276.º CC teria de ser, não, naturalmente, a "acção de prevenção" constante deste mesmo preceito, mas uma "outra" acção de prevenção da posse. O problema é que não se vê como construir uma "outra" acção de prevenção da posse, ou seja, uma acção de prevenção que não seja a "acção de prevenção" do art. 1276.º CC.

Explicando melhor: supondo que o art. 1276.º CC consagra afinal um procedimento cautelar, este procedimento exigiria a propositura ou a pendência de uma acção principal; mas -- cabe perguntar -- esta acção não teria de ser uma acção inibitória exactamente igual, no conteúdo e na finalidade, à "acção de prevenção" que realmente está regulada naquele preceito civil? Suponha-se, por exemplo, que o proprietário de um terreno agrícola requer que seja decretada uma providência que iniba um seu vizinho de vir a realizar culturas no seu terreno; pergunta-se: a acção principal que, caso não se verificasse a inversão do contencioso, o requerente da providência teria o ónus de propor não seria uma acção em que, na expressão do art. 1276.º CC, o "autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, [fosse] intimado para se abster de lhe fazer agravo"? A resposta é evidente: é claro que sim.

Está assim demonstrada a utilidade prática da "acção de prevenção" constante do art. 1276.º CC. É claro que o possuidor pode obter, através de um procedimento cautelar comum (art. 362.º CPC), uma tutela cautelar que evite a consumação da ameaça à sua posse; mas, no sistema processual português, esse mesmo possuidor, salvo se tiver sido decidida a inversão do contencioso nesse procedimento cautelar, necessita de propor uma acção principal para evitar a caducidade daquela tutela provisória (art. 373.º, n.º 1, al. a), CPC). Essa acção principal é, naturalmente, a "acção de prevenção" do art. 1276.º CC. Não se vislumbra que possa ser qualquer outra.

A orientação que tem vindo a ser criticada segue um outro caminho: nega a utilidade prática da "acção de prevenção" do art. 1276.º CC e transforma-a no procedimento cautelar comum regulado no art. 362.º CPC. Só que, em função do que foi dito, tornam-se patentes os inconvenientes desta solução. Na verdade, aquela orientação nega que o art. 1276.º CC se possa referir a uma verdadeira acção, mas acaba por ter de admitir a construção de uma acção de prevenção inominada com o mesmo conteúdo e a mesma finalidade da "acção de prevenção" constante daquele preceito. Tudo isto soa, verdadeiramente, muito estranho.

4. Resta enunciar as seguintes conclusões: 

-- A "acção de prevenção" do art. 1276.º CC é... uma acção de prevenção, não um procedimento cautelar; 

-- À "acção de prevenção" do art. 1276.º CC corresponde, no plano dos procedimentos cautelares, um procedimento cautelar com uma finalidade inibitória que segue o regime dos procedimentos cautelares comuns (art. 362.º ss. CPC);

-- A "acção de prevenção" do art. 1276.º CC é a acção principal que o possuidor que obteve uma inibição provisória no referido procedimento cautelar comum tem o ónus de instaurar, se naquele procedimento não tiver sido decretada a inversão do contencioso.

MTS