"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/04/2023

Jurisprudência 2022 (169)


Causa de pedir; qualificação;
objecto do recurso


1. O sumário de STJ 15/9/2022 (188/20.4T8ADV.E1.S1) é o seguinte:

I. Ao propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo.

II. Essa causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida, sendo a qualificação jurídica desses factos periférica à causa de pedir.

III. Este objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual.

IV. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, apreciando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Apesar de o acórdão recorrido, na parte decisória, ter declarado a improcedência do recurso de apelação deduzido pelo Autor, lendo a sua fundamentação, constata-se que a sua posição foi a de não conhecimento do recurso, face ao conteúdo das alegações apresentadas pelo Recorrente. Entendeu o acórdão recorrido que o Autor, nas alegações do recurso de apelação, pretende que a ação por si deduzida seja julgada procedente, com fundamento numa “causa de pedir” diversa daquela que invocou na petição inicial e que delimita o objeto do processo, o que impede o tribunal de recurso de conhecer do mérito da “nova causa de pedir” só agora alegada.

O Recorrente, nas alegações de revista, defende que a nova fundamentação invocada nas alegações do recurso de apelação se traduz simplesmente num diferente enquadramento legal dos factos provados no processo, cujo conhecimento é permitido ao tribunal de recurso, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Cumpre decidir.

Na presente ação, o Autor, na petição inicial, invocou como causa de pedir a nulidade, por falta de observância da forma legalmente prescrita para a outorga de um contrato através do qual emprestou à Ré determinada quantia em dinheiro, com o consequente dever de restituição da quantia mutuada ainda não reembolsada, por força dos efeitos retroativos da nulidade do negócio jurídico.

Na contestação, a Ré impugnou de forma motivada a versão apresentada pelo Autor, negando que tenha celebrado com este qualquer contrato de mútuo e alegando que apenas acordou com este a abertura de contas bancárias em seu nome, através das quais o Autor procederia à realização de movimentos bancários, agindo a Ré na movimentação dessas contas, enquanto sua titular, segundo as instruções do Autor, o que ocorreu.

Foi esta última realidade que a sentença da 1.ª instância acolheu, tendo julgado não provada a versão apresentada pelo Autor, e provada, em grande parte, a narrativa da Ré.

Perante este resultado probatório, a sentença da 1.ª instância considerou que não se provou a existência do contrato de mútuo, nulo por inobservância de forma, que individualizava os pedidos formulados pelo Autor, tendo, por isso, julgado improcedente a ação e absolvido a Ré daqueles pedidos.

O Autor recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação, visando, em primeiro lugar, a introdução de algumas alterações à matéria de facto provada e, na sequência dessas alterações, a qualificação do contrato celebrado entre Autor e Ré como um negócio fiduciário, sujeito às regras de um mandato sem representação, uma vez que estes tinham acordado que a Ré abrisse em seu nome uma conta numa instituição bancária, para permitir que esta, no interesse, por conta e mediante instruções do Autor, realizasse movimentos bancários, estando a Ré obrigada a restituir ao Autor o saldo resultante desses movimentos, o qual correspondia ao valor do pedido, após a sua redução.

É flagrante que os fundamentos da pretendida procedência da ação, alegados no recurso de apelação, eram distintos da causa de pedir invocada na petição inicial como fundamento da pretensão aí deduzida. O Autor, na petição inicial, justificou o direito ao pagamento da quantia peticionada, no dever de restituição de um valor entregue à Ré, a título de empréstimo, na sequência de um contrato de mútuo inválido, por inobservância da forma legalmente exigida, enquanto no recurso de apelação pretendia que o tribunal de recurso lhe deferisse o pedido formulado na petição inicial, com fundamento no dever da Ré lhe devolver uma quantia que lhe havia confiado para que esta a gerisse segundo as suas instruções. Se em ambas as situações há coincidência na entrega pelo Autor à Ré de uma determinada quantia, enquanto na petição inicial se alega que essa quantia foi emprestada, com a consequente transmissão da propriedade sobre ela para a Ré e a inerente disponibilidade da mesma, nas alegações de recurso essa transmissão já se encontra limitada por um pactum fiduciae que condiciona a disponibilidade dessa quantia pela Ré - ela apenas a pode utilizar em cumprimento das instruções do Autor, no interesse deste – não se lhe aplicando as exigências de forma de um contrato de mútuo.

Não estamos, pois, perante uma diferente qualificação jurídica da mesma factualidade, mas sim perante a invocação de factualidades distintas em diferentes momentos processuais.

Ao propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo (artigo 552.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil). Essa causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida, sendo a qualificação jurídica desses factos periférica à causa de pedir.

Este objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes (artigo 608.º e 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil), ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, julgando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.

Diferente é a situação em que ao tribunal apenas se pede uma diferente qualificação jurídica dos factos integrantes da causa de pedir formulada pelo demandante. Essa já é uma atividade que lhe é permitida, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Ora, como vimos, no presente caso, o Autor pretendeu no recurso de apelação que um dos pedidos por si formulado (entretanto reduzido), fosse julgado procedente, com fundamento em factos com um conteúdo distinto daqueles que integravam a causa de pedir por si invocada na petição inicial.

Se é verdade que esses factos resultavam da defesa apresentada pela Ré na contestação e que o tribunal da 1.ª instância julgou provados, constata-se que o Autor não utilizou o mecanismo previsto no artigo  265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não tendo promovido a alteração da causa de pedir ou a dedução, subsidiária, de um nova causa de pedir, pelo que o objeto do processo se manteve inalterado, apesar do teor da defesa motivada apresentada pela Ré, pelo que aqueles factos não podem ser utilizados para julgar o mérito do pedido formulado nesta ação [---].

Assim sendo, nem o tribunal da 1.ª instância, nem o tribunal de recurso, podiam julgar o mérito do pedido formulado, com a fundamentação invocada pelo Autor nas alegações do recurso de apelação, pelo que se revela correta a opção do acórdão recorrido de não conhecer do mérito do recurso, incluindo a impugnação da decisão da matéria de facto, uma vez que a mesma visava a introdução de modificações que suportassem a “nova causa de pedir” que o Autor, indevidamente, pretendia fazer valer.

Resta acrescentar que a esta situação não é aplicável o disposto no artigo 652.º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, uma vez que não nos encontramos perante um caso de deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões ou de falta de especificação dos elementos referidos no n.º 2, do artigo 639.º, do Código de Processo Civil, mas sim perante uma situação em que as questões colocadas no recurso de apelação extravasam o objeto do processo, não sendo tal situação suscetível de correção."

[MTS]