"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/04/2023

Jurisprudência 2022 (155)


Penhora; princípio da proporcionalidade;
pluralidade de executados


1. O sumário de RG 13/7/2022 (615/20.0T8VNF-B.G2) é o seguinte:

I - A penhora consiste numa apreensão judicial do património do executado com vista à sua posterior venda executiva e subsequente satisfação da obrigação exequenda, através do produto dessa alienação forçada. e todos os bens e direitos do devedor que sejam suscetíveis de penhora respondem, em regra, pela obrigação.

II - O incidente de oposição à penhora cinge-se à impugnação do ato de penhora, e deve assentar nos fundamentos enunciados no n.º 1 do artigo 784º do Código de Processo Civil.

III - A alínea a) do n.º 1 do referido artigo 784º abrange os casos em que tenham sido penhorados bens ou direitos cujo valor exceda o da quantia exequenda e demais custas da execução, em violação do princípio da proporcionalidade, previsto nos artigos 735º, n.º 3 e 751º, ambos do Código de Processo Civil.

IV - O princípio da proporcionalidade, vertido no n.º 3 do artigo 735º do Código de Processo Civil, que fixa o limite da penhora aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas prováveis da execução, aplica-se também aos casos de pluralidade subjetiva passiva, isto é, no caso de serem vários os executados, designadamente no caso de estes serem devedores solidários.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Sustentam os Recorrentes que os factos provados são reveladores do excesso de penhora existente tal como desde o início defendem.

De facto, os Recorrentes deduziram os presentes autos de oposição à execução por entenderem que tinham sido promovidas e realizadas várias e sucessivas penhoras de bens cujo valor excedia a quantia exequenda, mesmo que acrescida de juros e custas prováveis, designadamente: em 11/02/2020, um depósito bancário titulado pela Co-Executada Caixa ..., no Bank ..., no valor de € 6.002.712,04 (seis milhões, dois mil, setecentos e doze euros e quatro cêntimos), o qual só por si já assegura a quantia exequenda, juros e custas prováveis; e no dia 29/01/2020, os seguintes imóveis dos Executado(a)(s): [...]
 
Concluíram pelo excesso de penhora, e que os bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização correspondem ao depósito bancário da Co-Executada, Caixa ....

Posto isto, analisemos então se assiste razão aos Recorrentes quando invocam o excesso de penhora.

Vejamos. [...]

O artigo 784º do Código de Processo Civil estabelece os fundamentos da oposição à penhora:

a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada;
b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.

O incidente de oposição à penhora cinge-se à impugnação do ato de penhora, deve assentar nos fundamentos enunciados no n.º 1 do referido artigo 784º, e é, conforme refere Rui Pinto (Ação executiva, AAFDL Editora, 2018, p. 676) “ação funcionalmente acessória da ação executiva, pela qual o executado se defende de um ato de penhora de um bem seu com fundamento em violação das regras sobre o objeto penhorável”.

Aliás, o incidente de oposição à penhora apenas pode ter por fundamento alguma das questões indicadas nas alíneas do n.º 1 do referido artigo 784.º.

In casu, os Recorrentes invocam como fundamento o excesso de penhora e a violação das regras pelas quais esta se deve pautar.

E o ato de penhora pode ser objetiva ou subjetivamente excessivo; no primeiro caso penhora é excessiva quando atinge bens ou direitos que, embora pertencentes ao executado, não devam responder pela satisfação do crédito exequendo; e é subjetivamente excessiva quando tiver por objeto bens ou direitos que não são do executado.

A alínea a) do n.º 1 do referido artigo 784º abrange os casos em que tenham sido penhorados bens ou direitos cujo valor exceda o da quantia exequenda e demais custas da execução, em violação do princípio da proporcionalidade, previsto nos artigos 735º, n.º 3 e 751º, ambos do Código de Processo Civil.

O n.º 3 do artigo 735º consagra o princípio da proporcionalidade da penhora estabelecendo que a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20 %, 10 % e 5 % do valor da execução, consoante, respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor.

De acordo com este princípio a penhora deve limitar-se aos bens do devedor que sejam necessários e suficientes para garantir a satisfação da dívida exequenda e as custas da execução, não devendo ser penhorados mais bens do que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda.

No processo executivo vigora o princípio segundo o qual não deve ser causado ao executado um dano ou um prejuízo superior ao necessário para a execução da obrigação, de modo que a atuação do credor pode configurar uma situação de abuso de direito quando promove a penhora de bens de valor consideravelmente superior ao montante da dívida, não obstante o devedor possuir no seu património bens de menor valor suficientes para satisfazer a obrigação.

Como esclarece Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2018, p. 526) este princípio tem raiz constitucional no princípio da propriedade privada (cfr. artigo 62º da Constituição da República Portuguesa) e tem diversas manifestações no Código de Processo Civil, não só no referido n.º 3 do artigo 735º, mas também no n.º 3 do artigo 751º do Código de Processo Civil que estabelece uma moratória provisória na penhora de imóveis e estabelecimento comercial.

Assim, não existindo uma verdadeira ordem de prioridade dos bens sobre os quais deve incidir a penhora, o legislador não deixou de consagrar que a penhora deve começar pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e que se mostrem adequados ao montante do crédito exequendo (princípio da adequação – cfr. artigo 751º n.º 1), devendo ainda o agente de execução respeitar as indicações do exequente sobre os bens que pretende ver prioritariamente penhorados, salvo se tal indicação violar norma legal imperativa, ofender o princípio da proporcionalidade ou infringir manifestamente o princípio da adequação previsto no n.º 1.

E o n.º 3 do artigo 751º consagra também uma manifestação do já referido princípio da proporcionalidade ao prever uma “moratória provisória ou gradaus executionis temporal na penhora de imóveis ou de estabelecimento comercial” (v. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, … p. 584): “[A]inda que não se adeque, por excesso, ao montante do crédito exequendo, é admissível a penhora de bens imóveis que não sejam a habitação própria permanente do executado, ou de estabelecimento comercial, desde que a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de seis meses”.

A redação deste n.º 3 deve ainda conjugar-se com a norma do n.º 4 que vem esclarecer em que termos é admissível a penhora de imóvel que constitua habitação própria permanente do executado: “a) em execução de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses; b) em execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses”.

“Trata-se de um esforço de equilíbrio entre ter de sacrificar o interesse do exequente na satisfação em tempo razoável do seu direito (valor jurídico da adequação) e o interesse do executado em ver a oneração do seu património ser apenas a correspondente à da sua responsabilidade (valor jurídico da proporcionalidade. O agente de execução terá, porém, de fundamentar a indispensabilidade desta solução” (Rui Pinto, A Ação Executiva… p. 541; v. ainda Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 134, e Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, p. 199 a 201).

Ora, o princípio da proporcionalidade, vertido no n.º 3 do artigo 735º do Código de Processo Civil, que fixa o limite da penhora aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas prováveis da execução, aplica-se também aos casos de pluralidade subjetiva passiva, isto é, no caso de serem vários os executados, designadamente no caso destes serem devedores solidários.

Também nestes casos é necessário ponderar se o valor global dos bens penhorados é suficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda e das demais custas e despesas da execução.

Como refere Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Civil Executivo, 4ª Edição, Almedina, 2020, p. 376) este princípio “aplica-se igualmente aos casos de pluralidade subjetiva passiva, situação em que o que releva, é que o valor global dos bens penhorados seja suficiente para garantir o pagamento da divida exequenda e das despesas da execução”.

Neste sentido também se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/04/2013 (Relator Henrique Antunes, Processo n.º 3234/09.9T2AGD-C.C1, disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/c.c1-2013-93403575“é o princípio da proporcionalidade que justifica que, no processo executivo, não devam ser vendidos mais bens dos que os estritamente necessários para proceder à liquidação das despesas da execução, da dívida do executado e dos credores com garantia real sobre os bens já vendidos (…) Regra geral, o problema da proporcionalidade da penhora coloca-se relativamente a bens pertencentes a um mesmo executado. Mas ele vale – dado o seu fundamento final – para os casos de pluralidade de executados em que tenham sido penhorados a alguns deles bens que sejam suficientes para satisfação do crédito exequendo e das despesas da execução. Nesta hipótese, qualquer executado pode opor-se à penhora dos seus bens com fundamento no excesso da penhora já realizada em bens de outro ou outros executados. Quando isso suceda, pode dar-se o caso de apenas o património de um dos executados ser sacrificado para satisfação do direito do exequente: nesse caso, o problema deve ser resolvido de harmonia com o título que pauta as relações internas entre os executados. Se estes forem, por exemplo, devedores solidários, o executado cujo património tenha sido sacrificado para satisfação da totalidade do crédito, goza de direito de regresso, contra os outros, na parte que a estes compete.”

Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, … p. 99) reconhecem que o n.º 3 do artigo 735º consagra o princípio da proporcionalidade entre a amplitude da quantia exequenda (incluindo as despesas previsíveis da execução) e a penhora, orientação que deve ser seguida também em face da multiplicidade de patrimónios responsáveis pela divida.

Ainda no mesmo sentido afirma Rui Pinto (A Ação Executiva, … p. 536 a 537), que as regras da proporcionalidade funcionam de modo objetivo, em função do valor das dívidas e não em função da configuração subjetiva da causa: “se numa execução forem vários os executados, a regra da suficiência da penhora não funciona de forma individualizada ou pessoal, relativamente apenas aos seus bens. É que “o que releva é que [a totalidade d]os bens penhorados sejam suficientes para o pagamento do crédito exequendo e custas”, independentemente de quem indicou os bens e de quem são esses bens. Deste modo, a indicação e penhora de bens de alguns dos devedores aproveita aos demais”.
É este o entendimento que perfilhamos.

Assim, e não obstante o respeito que nos merece posição contrária, não podemos concordar com o tribunal a quo quando afirma, aderindo à tese sustentada pelos Exequentes, que “[C]omo propugnam os Exequentes, no caso de obrigações solidárias, o limite à penhora contido no artigo 735º, nº 3 do CPC afere-se necessariamente em função de cada um dos devedores solidários individualmente considerados, e não da respetiva globalidade. Por conseguinte, não obstante a quantia exequenda e demais despesas se poder encontrar assegurada pela penhora do depósito bancário da Co-Executada, atualmente substituída pela caução, tal penhora apenas releva para aferir da impossibilidade de penhora de outros bens da Caixa ... SA. (…) Isto posto, entendendo-se que apenas releva para aferir se houve ou não excesso de penhora os bens que foram penhorados aos ora Oponentes, desconsiderando os bens penhorados à Co-Executada (…)”.

Entendemos que, em caso de pluralidade de executados, designadamente quando estamos perante devedores solidários, o que releva é o valor global dos bens penhorados e que o mesmo seja suficiente para garantir o pagamento da divida exequenda e das despesas da execução, independentemente de qual é o património a que pertencem os bens penhorados.

Nestes casos, tal como sucede no caso dos autos, qualquer executado pode opor-se à penhora dos seus bens com fundamento no excesso da penhora já realizada em bens de outro ou outros executados.

Quando assim seja, pode até acontecer que apenas o património de um dos executados seja sacrificado, ou seja quase exclusiva ou maioritariamente sacrificado, para satisfação do direito do exequente; nesse caso posteriormente, será nas relações internas entre os executados, devedores solidários, que a questão deverá ser resolvida em face do título.

A violação do princípio da proporcionalidade justifica, pois, mesmo nestes casos, a oposição do executado (cf. artigo 784º n.º 1, a) do Código de Processo Civil; v. Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., p. 377).

Acrescentamos ainda que tendo por base este princípio da proporcionalidade, também estes considerandos têm aplicação relativamente ao preceituado no artigo 751º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, que constitui uma manifestação daquele princípio. [...]

In casu, e para além dos imóveis penhorados objeto da presente oposição à penhora, foram penhorados outros bens dos Oponentes/Recorrentes, a saber: a contrapartida devida pela amortização da quota detida pelo Executado N. G. na sociedade X Investimentos, Lda. no valor de €5.589,16; saldo de depósito Bancário no Banco ..., no valor de Eur 584,96; o vencimento auferido pela Executada L. M., perfazendo o total dos descontos efetuados até 25/01/2021 Eur 2.536,19.

Resulta ainda da matéria de facto provada que efetivamente o imóvel penhorado, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... da freguesia de ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., referido em 4. a), corresponde à habitação própria e permanente dos Executado/Oponentes, que aí residem com o seu filho menor desde 2019, sendo nesse imóvel que habitam, que pernoitam, que fazem as suas refeições, que recebem os seus familiares e amigos, tendo nele constituído a sua habitação e fundado a casa de morada de família, aí têm as suas moradas fiscais, não tendo outro imóvel onde possam habitar (pontos 10, 11, 12, 13 e 14 doa factos provados).

Se, tal como refere o tribunal a quo na sentença recorrida, a quantia exequenda e demais despesas se encontra assegurada pela caução prestada pela Co-Executada Caixa ... SA, tendo sido, por decisão proferida aos 14/05/2020 (Apenso D) julgada prestada a caução e determinada a suspensão da execução e o levantamento da penhora que incidiu sobre o depósito bancário da titularidade da Caixa ... S.A., tal facto há-de também aproveitar aos Co-Executados aqui Recorrentes; sendo certo que aos Exequentes também sempre assistirá a possibilidade de reforço da caução se tal for necessário, considerando o lapso de tempo a decorrer e que a sentença dada à execução (que haja conhecimento nos autos) ainda não transitou em julgado.

Na verdade, o princípio da proporcionalidade e a tutela do executado, designadamente quando esteja em causa imóvel que corresponda à sua habitação própria e permanente, a que nos referimos têm o seu campo de aplicação quer esteja em causa a execução de uma sentença transitada em julgado, quer de sentença ainda não transitada em julgado.

Se os Exequente instauraram a execução sem o trânsito em julgado da sentença, é uma faculdade que lhes assistia, mas não deixa de ser também uma opção da sua parte; e, se instauraram a execução contra todos os devedores solidários, foi também uma opção sua: podiam os Exequentes ter instaurado a execução apenas contra a Caixa ... ou apenas contra os Oponentes, pois podia exigir de qualquer dos devedores a totalidade da dívida.

O que é certo é que optaram por demandar todos os devedores e é em face dessa opção que as questões suscitadas terão de ser apreciadas e decididas.

O que se traduz em concluir também que, relativamente à penhora dos imóveis dos Executados, Recorrentes, a sua penhora não era admissível à luz do principio da proporcionalidade e das regras previstas nos n.ºs 3 e 4 do referido artigo 751, esta última relativamente ao imóvel que constitui a habitação própria e permanente, uma vez que considerando o património global de todos os devedores, o que implica atender ao património da Co-Executada Caixa ..., sempre seria previsível a possibilidade de penhora de outros bens que permitissem a satisfação integral dos Exequentes no prazo de seis meses, e de 12 meses, respetivamente.

Conforme já referimos, o que releva é que atendendo aos diversos patrimónios executados seja previsível a satisfação integral do credor/exequente, independentemente de quem são os bens, pois o princípio da proporcionalidade e a regra da suficiência da penhora não funciona de forma individualizada ou pessoal, relativamente apenas aos bens de cada executado/devedor solidário.

Impõe-se por isso alterar a decisão recorrida e, julgando-se parcialmente procedente a oposição à penhora, determinar o levantamento, e consequente cancelamento do registo, da penhora sobre os seguintes bens imóveis dos Recorrentes identificados no ponto 3) dos factos provados: [...]."

[MTS]