"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/04/2023

Jurisprudência 2022 (165)

 
Embargos de terceiro;
prazo de dedução; prazo de complacência*

1. O sumário de RP 27/6/2022 (1588/19.8T8OVR-B.P1) é o seguinte:

I – Os embargos de terceiro constituem o meio processual idóneo para a efectivação de qualquer direito do embargante incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo que ter, necessariamente, por fundamento a posse, mas a existência de qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada;

II – Por isso o que releva é o direito que o embargante invoca como sendo incompatível com o acto de cariz executório judicialmente ordenado e, por conseguinte, susceptível de lhe ser oposto e prevalecer sobre o direito acautelado através do acto de apreensão/restituição de bens;

III - A data que importa para aferir da eventual caducidade dos embargos é aquela em que se concretizou (com a investidura dos exequentes na posse do imóvel, a mudança da fechadura da porta de entrada da casa e a saída da embargante, que deixou de a habitar) o acto alegadamente ofensivo daquele direito e do qual a embargante teve imediato conhecimento;

IV - O prazo para a instauração de embargos de terceiro é um prazo de caducidade, a que se aplicam as normas do artigo 138.º do CPC, mas não as do artigo 139.º do mesmo compêndio normativo, mormente o seu n.º 5 que estabelece um prazo de complacência para a prática de actos em processo já a correr termos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"É muito simples a questão de direito a decidir nesta instância, que consiste em determinar o termo inicial do prazo, a partir de quando se conta o prazo de trinta dias para deduzir embargos de terceiro.

Importa frisar este ponto: não está aqui em causa saber se a diligência levada a cabo pela Sra. Agente de Execução ofende algum direito da embargante com ela incompatível, mas se está precludido o direito de oposição à diligência por intempestividade dos embargos.

Do n.º 2 do artigo 344.º do CPC decorre que aquele prazo se inicia no dia seguinte àquele em que foi efectuada a diligência ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa (mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos ou adjudicados).

Ultrapassada a fase introdutória dos embargos e recebidos estes, é sobre o embargado que recai o ónus de alegar e demonstrar a sua extemporaneidade, provando que o embargante teve conhecimento da diligência ofensiva há mais de 30 dias [---].

Os recorrentes sustentam que a embargante teve conhecimento do acto ofensivo do seu direito no dia 18 de Dezembro de 2019, pelo que, quando foram deduzidos os embargos, em 29.06.2020, há muito que estava precludido o direito de se lhe opor (conclusões 4.ª e 5.ª).

 Ressalvado o devido respeito, é manifesto que não têm razão neste ponto.

Sendo o embargante um terceiro, é natural que não coincidam o momento do conhecimento do acto ofensivo e o momento da sua prática. Por isso a lei prevê as duas hipóteses para o termo inicial do prazo.

Ora, no dia 18.12.2019, a Sra. Agente de Execução limitou-se a deslocar-se ao prédio e a comunicar à embargante AA (que o habitava) que teria de o entregar livre de pessoas e bens e que a diligência para a sua “tomada de posse” estava designada para o dia 16.01.2020, o que é dizer que o acto ofensivo do invocado direito da embargante não foi praticado naquela primeira data, pelo que não se iniciou aí a contagem do prazo de 30 dias.

Mas também se nos afigura errada a decisão recorrida que considerou como termo inicial o dia 22.06.2020, data em que terminou a remoção dos bens que a embargante tinha no prédio a restituir.

Ali se argumenta que o ato processual a praticar pela Sra. Agente de Execução consistia na restituição do imóvel devoluto, não só de pessoas, mas também de bens e daí a ter-se considerado a data de 22.06.2020.

Porém, com todo o respeito devido, o argumento não é válido.

A restituição do prédio livre de pessoas e bens é o pedido formulado pelos exequentes na acção executiva que instauraram contra DD e em relação à qual a recorrida AA é terceira (só nesse pressuposto poderia deduzir embargos de terceiro).

Os embargos de terceiro constituem o meio processual idóneo para a efectivação de qualquer direito do embargante incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo que ter, necessariamente, por fundamento a posse, mas a existência de qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada.

Por isso está bem de ver que o que releva é o direito que o embargante invoca como sendo incompatível com o acto de cariz executório judicialmente ordenado e, por conseguinte, susceptível de lhe ser oposto e prevalecer sobre o direito acautelado através do acto de apreensão/restituição de bens (inviabilizando-o na sua totalidade ou circunscrevendo-o a certo âmbito ou extensão).

Ora, o direito de que a embargante se arroga titular é um direito sobre o imóvel [que diz ser um direito a usufruí-lo e que lhe adviria do facto de ter prometido comprar aos embargados uma terça parte (1/3) e ter ficado estipulado no contrato-promessa que ela teria «todos os direitos e obrigações como se tivesse escriturado e registado 1/3 (um terço) em seu nome»], cuja entrega coerciva foi pedida pelos exequentes/embargados e não sobre os móveis que lá tinha.

A data que importa para aferir da eventual caducidade dos embargos é, decididamente, o dia 27.02.2020, pois foi nesta data que se concretizou (com a investidura dos exequentes na posse do imóvel, a mudança da fechadura da porta de entrada da casa e a saída da embargante, que deixou de a habitar) o acto alegadamente ofensivo daquele direito e do qual a embargante teve imediato conhecimento [---].

Tendo-se iniciado no dia 28.02.2020 a contagem do prazo de 30 dias, o seu termo final (levando em consideração o período em que os prazos de caducidade, por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, estiveram suspensos – entre 07.03.2020 e 02.06.2020) ocorreu em 24.06.2020 [Importa lembrar que, em 2020, o mês de Fevereiro foi de 29 dias.].

Importa fazer notar que o prazo para a dedução de embargos de terceiro é um prazo de caducidade, a que se aplicam as normas do artigo 138.º do CPC (suspendendo-se nas férias judiciais e, se terminar em dia em que os tribunais estejam encerrados, o seu termo transfere-se para o primeiro dia útil seguinte), mas não as do artigo 139.º do mesmo Código, mormente o seu n.º 5 que estabelece um prazo de complacência para a prática de actos em processo já a correr termos, pois não se trata de um prazo processual. Foi, porventura, por não ter tido em consideração essa qualificação que a embargante deduziu os embargos no terceiro dia útil seguinte (29.06.2020), quando já se tinha esgotado o prazo de 30 dias.

Impõe-se, pois, concluir pela procedência da excepção de caducidade, pelo que não pode manter-se o despacho recorrido."

*3. [Comentário] Com a devida consideração, não se pode acompanhar a orientação segundo a qual ao prazo de dedução dos embargos de terceiro não se pode aplicar o prazo de complacência estabelecido no art. 139.º, n.º 5, CPC.

Se, como se afirma no próprio acórdão, ao prazo de dedução dos embargos se aplica o disposto no art. 138.º, n.º 4, CPC -- e, portanto, o regime da suspensão do prazo e da realização do acto no primeiro dia útil seguinte --, nada mais natural do que a esse prazo se aplique também o estabelecido no art. 139.º CPC.

O que verdadeiramente parece muito problemático é que no acórdão se diga que se aplica ao prazo para a dedução dos embargos de terceiro o regime do art. 138.º CPC e depois se conclua que esse prazo não é um prazo processual, quando do estabelecido n.º 4 deste preceito se pode concluir precisamente o contrário.

MTS