"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/04/2023

Jurisprudência 2022 (162)


Competência internacional;
princípio da causalidade; lugar da produção do dano*


I. O sumário de RG 13/7/2022 (3731/21.8T8BRG.G1) é o seguinte:

1 – A competência internacional dos tribunais portugueses é aferida em função do objecto do processo tal como este é definido pelo autor e suscita-se quando apresenta, através de um elemento subjectivo ou objectivo, uma conexão com várias ordens jurídicas.

2 – A competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeira linha, do estabelecido nos regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais que vinculem o Estado português; não sendo a situação regida por uma fonte normativa supranacional, é necessário que se verifique algum dos factores de conexão previstos nos artigos 62º e 63º do CPC ou que as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º do mesmo diploma.

3 – A aplicação do regime previsto no Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12.12.2012, depende de o requerido ter o seu domicílio num Estado-Membro da União Europeia ou que se verifique algum dos elementos de conexão especiais previstos na sua Secção 2 a 7.

4 – Invocando o autor, jogador profissional de futebol, a utilização pela ré, sociedade com sede nos EUA, a utilização abusiva do seu nome e imagem em jogos electrónicos, de vídeo e aplicativos, por esta produzidos e desenvolvidos naquele país, e cuja responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos EUA, Canadá e Japão é assumida por uma terceira empresa, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da prática em território português de algum dos factos que integram a causa de pedir de pedir complexa invocada, alicerçada na responsabilidade civil extracontratual.

5 – Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, designadamente em Portugal, se o autor tiver o seu centro de interesses pessoais e profissionais situado em território português, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.2.2. Aplicabilidade dos factores de conexão do art. 62º do CPC

Não sendo aplicável ao caso dos autos o Regulamento (UE) nº 1215/2012, a questão da competência internacional tem de ser analisada à luz das normas do nosso direito nacional, ou seja, o artigo 62º do CPC, na interpretação quase uniforme que lhe tem sido dada pelas doutrina e jurisprudência nacionais.

O Tribunal a quo, partindo da delimitação do objecto do processo realizada pelo Autor na petição inicial, em especial dos factos aí alegados, analisou cada um dos elementos de conexão previstos no artigo 62º do CPC e concluiu que os mesmos não se verificam.

O Recorrente, diversamente, considera que estão preenchidos, autonomamente, todos os três factores de conexão elencados no artigo 62º do CPC, onde se dispõe:

«Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real».

Esta norma estabelece os factores atributivos de competência internacional aos tribunais portugueses, enunciando três critérios: o citério da coincidência (alínea a)), o da causalidade (alínea b)) e o da necessidade (alínea c)).

Tais elementos de conexão operam autonomamente, funcionando cada um de forma independente relativamente aos outros, bastando que se verifique no caso concreto uma das situações previstas em qualquer uma das alíneas referidas para que se fixe a competência.
*
2.2.2.1. [...]

No caso em apreciação, o Tribunal a quo concluiu pela não verificação do critério da coincidência por considerar que «tendo o facto ilícito imputado à ré ocorrido no estrangeiro – a produção de um videojogo com a imagem do autor, com fins (e resultados) lucrativos –, “segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa” os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a causa».

O Recorrente alega que é «absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção» (conclusão i), uma vez que está em causa «a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente» (conclusão q), «[p]elo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa» (conclusão r).

Como esta acção se destina a efectivar a responsabilidade civil por factos ilícitos, releva, para efeitos de aferir da aplicabilidade do critério da coincidência, a norma do artigo 71º, nº 2, do CPC, onde se dispõe que «o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu». Estabelece a competência do forum commissi delicti para as acções destinadas a fazer valer a responsabilidade extracontratual.

Portanto, de harmonia com aludida disposição, para as acções de responsabilidade baseada em facto ilícito ou no risco, é competente o tribunal do lugar onde ocorreu o facto gerador da responsabilidade.

A expressão “facto” tem um significado preciso, pois refere-se a um dos pressupostos da responsabilidade civil, que é o facto ilícito, enunciados no artigo 483º, nº 1, do Código Civil. Não visa indicar qualquer outro dos pressupostos da responsabilidade, como seja o dano.

Significa isto que o legislador elegeu, de entre os pressupostos da responsabilidade civil, o lugar onde ocorreu o facto ilícito como factor relevante para a determinação da competência territorial nas acções de responsabilidade civil extracontratual. Daí que não seja o lugar da produção do dano o factor relevante para a fixação da competência territorial, mas apenas o da ocorrência do facto ilícito.

Analisada a petição inicial, constata-se, por um lado, que a Ré tem a sua sede na Califórnia, Estados Unidos da América, e que nenhum acto é imputado pelo Autor à Ré como tendo sido praticado por esta em território português.

O facto ilícito que na petição inicial se imputa à Ré é a violação do direito de imagem do Autor, consubstanciada na produção, divulgação e exploração com fins lucrativos de jogos («jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e. JOGO, JOGO MANAGER, JOGO ULTIMATE TEAM – FUT e JOGO MOBILE» - v. art. 11º da p.i.) por aquela, utilizando abusivamente (8) a imagem do Recorrente. Segundo resulta do alegado na petição inicial, tais jogos são produzidos e comercializados pela Ré nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, enquanto na Europa são vendidos pela ..., que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.

Significa isto que o facto ilícito imputado à Ré, traduzido na utilização sem autorização da imagem do Autor, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais, ocorreu seguramente no estrangeiro com a produção dos jogos, sendo certo que em lado algum da petição inicial consta alegado que os jogos JOGO foram criados e produzidos em território nacional, mas apenas que são vendidos “em todo o mundo”, incluindo Portugal. Aliás, a própria comercialização dos jogos na Europa, incluindo Portugal, segundo o alegado na petição inicial não é efectuada pela Ré, mas sim por uma outra empresa que «assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão».

Por isso, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, os tribunais portugueses não são competentes para a causa, como bem concluiu o Tribunal recorrido.
*

2.2.2.2. De harmonia com a alínea b) do artigo 62º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando o facto que constitui a causa de pedir ou um dos factos que a integra tiver sido praticado em território português.

A referência, constante desta alínea, a “alguns dos factos” visa abranger os casos de causa de pedir complexa, ou seja, a constituída por uma pluralidade de actos ou factos jurídicos, em que basta um deles ter sido praticado em território português para determinar a competência dos tribunais portugueses. Todavia, a causa de pedir deve ser entendida, para efeitos deste preceito, como não integrando os factos complementares, mas apenas os essenciais (art. 5º, nº 1, do CPC). Como bem salienta Miguel Teixeira de Sousa (9), «[a] competência internacional pressupõe uma conexão relevante com a ordem jurídica cujos tribunais são internacionalmente competentes, pois que, de outro modo, constrói-se uma competência exorbitante desses tribunais».

Exemplo paradigmático de causa de pedir complexa é o da acção de responsabilidade civil extracontratual. Os pressupostos, cumulativos, da obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos são o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No nosso entender, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a competência exorbitante constrói-se se considerarmos que qualquer aspecto parcelar do dano, de carácter remoto ou indirecto, desde que verificado no território português, é suficiente para determinar a competência dos tribunais portugueses. Sem prejuízo das situações de pluralidade de danos, o factor que deve relevar é o lugar da ocorrência do dano directo, ou seja, onde ocorreram os efeitos directos do facto que gerou a situação de responsabilidade.

O Tribunal recorrido deu como não verificado o aludido critério por considerar que «o local de venda dos produtos da ré (art. 62.º, al. b) do CPC) não é, em si mesmo, um elemento de conexão relevante, dado que não se trata de um facto essencial constitutivo da causa de pedir», e que «o autor não alega qualquer dano ocorrido em Portugal (art. 62.º, al. b) do CPC)».

O Recorrente insurge-se contra aquele entendimento, alegando que «é (…) absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção» (conclusão i). Por um lado, sustenta que os «danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais características do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal» (conclusão g); por outro, que «a obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem» (conclusões j) e k)).

Já nos pronunciamos em 2.2.2.1. sobre a circunstância de o facto ilícito que serve de causa de pedir nesta acção não ter sido praticado em território nacional, pelo que resta apenas apreciar se os danos, enquanto factos que integram a causa de pedir complexa desta acção, se verificam no território português.

Começando a nossa análise pelos danos não patrimoniais, verifica-se que o Autor alegou no artigo 177º da petição inicial que «sentiu-se, naturalmente, perturbado, desgostoso, triste e revoltado, ao ver a sua imagem e nome utilizados de forma abusiva e ilícita pela Ré».

Alegando o Autor que no período em que foram usados o seu nome e imagem (v. arts. 24º e 144º da p.i., em que reporta o início da utilização da imagem a 18.09.2014, data em que alega ter sido lançado o jogo “JOGO 2015”) residiu quase exclusivamente em Portugal (segundo se depreende do alegado no art. 8º (10) da p.i., durante todo o período de tempo objecto da acção, o Autor apenas durante a época desportiva 2015/2016 exerceu a sua profissão fora de Portugal, no clube de futebol “…”, situação que está devidamente delimitada na p.i.), terá de se considerar que tais danos se produziram predominante em território português, pois foi aqui que se sentiu perturbado, desgostoso, triste e revoltado com a actuação da Ré.

Se mais não houvesse, apenas esta circunstância já seria suficiente para determinar a competência internacional dos tribunais portugueses, pois uma parte relevante dos danos – os não patrimoniais – verificaram-se em território nacional.

Mais complexa é a apreciação quanto ao lugar onde se produziram os danos patrimoniais, na medida em que o Recorrente argumenta que «o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem» e na petição inicial limitou-se a invocar uma dimensão circunscrita de tais danos, traduzida no «valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado», sem alegar propriamente a produção de outras consequências patrimoniais na sua esfera jurídica, emergentes da alegada utilização abusiva por parte da Ré.

Segundo o alegado na petição inicial, a comercialização dos jogos, nos quais se utilizava e utiliza o nome e imagem do Autor, é feita a nível global, “por todo o mundo”, e também em Portugal, articulando-se múltiplos factos a esse respeito.

Portanto, de harmonia com o alegado pelo Autor, o impacto da ofensa ao direito de personalidade ao nome e imagem é produzido em diversos países, nomeadamente em Portugal, e prolonga-se no tempo, desde a produção e o lançamento de cada uma das edições dos jogos até à sua disponibilização ao público em geral, mantendo-se por tempo indeterminado. Significa isto que o dano, na dimensão invocada pelo Autor, se manifesta em diversos países, tendo conexão com vários ordenamentos.

Como a imagem de uma pessoa que tem o seu centro de vida pessoal e profissional em Portugal foi – e está a ser - utilizada a nível global, a demonstrar-se a utilização abusiva e a afectação da imagem nos termos alegados, a repercussão patrimonial é sofrida também em território nacional (v. o alegado, por exemplo, no art. 103º da p.i.). A não ser assim, cairíamos no absurdo de concluir que a utilização não autorizada da imagem de uma pessoa, no caso de ser feita por todo o mundo, não produzia dano em qualquer país, seja naquele onde tem centrada a sua vida ou num outro país terceiro, deixando sem protecção tal direito fundamental, como se fosse admissível considerar, em abstracto, que o objecto do direito que é utilizado por muitos e em variados lugares é insusceptível de lesar o respectivo titular. Aliás, não há qualquer fundamento para considerar que o dano invocado nos autos se produziu única e exclusivamente nos Estados Unidos da América, como parece defender a Recorrida; isso não corresponde ao quadro factual alegado e é por este que, prima facie, se afere a competência do tribunal para a causa.

Ora, nessas situações em que o impacto da violação dos direitos de personalidade decorre da utilização de meios de exposição globais e se produz em diversos ordenamentos jurídicos, sendo difícil de avaliar separadamente, país a país, os danos causados em cada um deles, é curial considerar que se verifica predominantemente no Estado onde o lesado tem o seu domicílio e a sede da sua vida pessoal e profissional organizada. Isto porque a imagem de um jogador profissional de futebol está intimamente ligada ao clube e país onde exerce essa profissão e, em consequência, reside. É seguramente nesse local que melhor podem ser apurados os efeitos da ofensa dos direitos de personalidade, o que constitui um factor relevante para a boa administração da justiça em qualquer ordenamento.

Porém, independentemente de tal consideração, de harmonia com o critério da coincidência consagrado na alínea b) do artigo 62º do CPC, que é a norma directamente aplicável, basta que parte dos danos se verifiquem em território português para que os nossos tribunais sejam internacionalmente competentes para conhecer da respectiva acção. Significa isto que, no caso dos autos, nem sequer carece de ser apurado onde predominantemente se verificam os danos, pois é inequívoco que alguns deles se verificam no lugar onde o Autor reside e se situa o seu centro de interesses, designadamente o exercício da sua profissão de futebolista, pois é a imagem dele enquanto desportista que se mostra utilizada nos jogos da Ré.

Em todo o caso, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que são internacionalmente competentes para conhecer do mérito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados pela ofensa.

Como se assinala no acórdão do STJ de 24.05.2022 – processo 3853/20.2T8BRG.G1.S1 (João Cura Mariano), proferido numa acção em tudo idêntica a esta, «revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça. (…)

Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (…), o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.

Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor (…) se encontrava.

Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (…), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça».

Pelo mesmo diapasão alinha o acórdão do STJ de 07.06.2022 – proc. 4157/20.6T8STB.E1.S1 (Manuel Aguiar Pereira), também proferido numa acção semelhante à destes autos, assim sumariado:

«1. São internacionalmente competentes para conhecer de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da violação de direitos de personalidade através de difusão global e não autorizada do nome, imagem e características pessoais e profissionais do autor em videojogos e jogos para computador, os Tribunais do país onde teve lugar essa difusão e o lesado se encontrava domiciliado e/ou tinha o seu centro de interesses pessoais e profissionais, de forma predominante no período em que decorreram os danos alegados.

2. Os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º alínea b) do Código de Processo Civil, para o julgamento de uma acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos alegando o autor que a violação do seu direito aconteceu em Portugal, por ali terem sido, como em todo o mundo, distribuídos e estarem disponíveis aos consumidores interessados os jogos produzidos pela ré em que era abusivamente utilizado o seu nome e imagem.

3. Nessas circunstâncias, apesar de parte dos factos ofensivos do alegado direito do autor terem sido praticados no estrangeiro, surpreende-se entre a causa baseada na acção violadora do direito alheio promovida pela ré e o Estado Português um elemento de conexão suficientemente forte e que permite que, no eventual confronto com outros ordenamentos jurídicos e jurisdições nacionais, sejam os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da alegada violação do direito de personalidade dos autor».

Também nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2022 – proc. 24974/19.9T8LSB.L1.S1 (Fernando Baptista) e de 23.06.2022 – proc. 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1 (Maria da Graça Trigo) foi seguida a referida orientação."


*III. [Comentário] a) Já houve a oportunidade de mostrar discordância perante a corrente jurisprudencial em que se integra o acórdão da RG (Futebolistas, videojogos e competência internacional).

b) No acórdão afirma-se o seguinte:

"Como a imagem de uma pessoa que tem o seu centro de vida pessoal e profissional em Portugal foi – e está a ser - utilizada a nível global, a demonstrar-se a utilização abusiva e a afectação da imagem nos termos alegados, a repercussão patrimonial é sofrida também em território nacional [...]. A não ser assim, cairíamos no absurdo de concluir que a utilização não autorizada da imagem de uma pessoa, no caso de ser feita por todo o mundo, não produzia dano em qualquer país, seja naquele onde tem centrada a sua vida ou num outro país terceiro, deixando sem protecção tal direito fundamental, como se fosse admissível considerar, em abstracto, que o objecto do direito que é utilizado por muitos e em variados lugares é insusceptível de lesar o respectivo titular. Aliás, não há qualquer fundamento para considerar que o dano invocado nos autos se produziu única e exclusivamente nos Estados Unidos da América, como parece defender a Recorrida; isso não corresponde ao quadro factual alegado e é por este que, prima facie, se afere a competência do tribunal para a causa."

Salvo o devido respeito, o problema não é o de saber onde os danos foram sofridos, mas onde os danos foram produzidos. Repare-se que é precisamente isso que é relevante na competência interna: suponha-se, por exemplo, que, num acidente de viação ocorrido no Porto, morre uma pessoa domiciliada em Lisboa; os familiares do falecido sofreram o dano em Lisboa, mas a acção tem de ser proposta nos tribunais do Porto (art. 71.º, n.º 2, CPC).

Quer dizer: o "lugar onde o facto ocorreu" referido neste preceito é o lugar onde o dano foi produzido, não onde foi sofrido. Se assim não fosse, haveria que concluir que, se os familiares do falecido residissem no estrangeiro, os tribunais portugueses não poderiam ser competentes segundo o critério da coincidência (art. 62.º, al. a). CPC). É por isso que não se pode acompanhar o que é afirmado no acórdão:

"Daí que não seja o lugar da produção do dano o factor relevante para a fixação da competência territorial, mas apenas o da ocorrência do facto ilícito.

c) Conforme se explicou no anterior post, a regra de que o lugar do facto ilícito é o lugar da produção desse facto pode não ser seguida no âmbito do Processo Civil Europeu. No entanto, isso sucede, como então se referiu, num ambiente legislativo e factual que nada tem em comum com aquele que se verifica na presente acção.

MTS