"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/04/2023

Jurisprudência 2022 (159)


Registo predial;
presunção; efeitos


1. O sumário de RG 13/7/2022 (1091/20.3T8VCT.G1) é o seguinte:

- A presunção do art.º 7.º da CRP não abrange os elementos de identificação do prédio constante da descrição predial, ou seja, a sua área e confrontações.

- A aquisição da propriedade por via de uma venda judicial não é uma aquisição originária, mas sim uma aquisição derivada.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se-se o seguinte:

"A A. entende que tem a seu favor a presunção derivada do registo, por força da aplicação do disposto no art. 7º do C. R.P., que nos diz que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o define.

Também os RR. têm a seu favor a presunção derivada do registo, mas posterior ao registo da A. e que resultou da retificação de áreas e composição realizada pelos RR ao prédio descrito sob nº …, efetuada em 2/4/2008.

A Srª Juíza que elaborou a decisão recorrida entendeu que “A alteração efetuada pelos RR. conflitua com o direito registado pela A. e que goza de prioridade registral, motivo pelo qual é necessário proceder à anulação e cancelamento dos averbamentos referidos na Ap. 6 de 2008/10/15 e Ap. 1808 de 2018/11/05 relativas ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...”

Salvo o devido respeito, o princípio da prioridade do registo, consagrada no art. 6º, nº 1 do C. de Registo Predial diz respeito a inscrições de direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio e não sobre prédios distintos, como ocorre no caso em apreço.

De qualquer forma, ainda que se entendesse que tal princípio poderia ter aplicação no nosso ordenamento jurídico quando existe dupla descrição de uma faixa de terreno a favor de dois prédios distintos, tal possibilidade foi afastada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23/02/2016 de que falaremos adiante.

Tal como refere Oliveira Ascensão (in A desconformidade do registo predial com a realidade e o efeito atributivo, Cadernos de Direito Privado n.º 31, 2010, pp. 3 e ss., p. 20, citado no mencionado Acórdão) “Se do registo constam inscrições paralelas incompatíveis, não pode haver com fundamento em nenhuma delas aquisição pelo registo (…) o próprio registo patenteia a desconformidade. Ninguém pode valer-se da confiança numa inscrição incorreta, quando não está em melhores condições do que aquele que tiver a seu favor uma inscrição verdadeira (…) As posições registais anulam-se, pelo que a realidade substantiva retoma o seu predomínio”

Deste modo, a regra da prioridade do registo nunca poderia ser aplicada ao caso em apreço, pelo que a pretensão da A. nunca poderia proceder com tais fundamentos.

Analisemos então as pretensões de A. e RR. à faixa de terreno denominada “Avenida”, correspondente à zona identificada no Doc. nº 6 como C.

No caso, estamos perante uma ação em que se discute a propriedade sobre uma parcela de terreno que fica na confrontação do prédio dos AA. com o dos RR.., ou seja, uma ação de reivindicação.

Na ação de reivindicação compete ao Autor provar que é proprietário do imóvel ou de parte dele e que este está na posse ou detenção do réu e compete a este, se for o caso, provar que é titular de um direito que legitima a recusa de restituição (art. 342º, nº2, do CC). “O ónus da prova respeita aos factos da causa distribuindo-se entre as partes, cabendo ao autor a prova dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa a causa desse direito, sendo que o réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros, competindo-lhe, isso sim, a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor, traduzindo-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantagens de se ter líquido o facto contrário, quando não logrou realizar essa prova, ou sofrer as consequências, se os autos não tiverem prova bastante desse facto» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2020 in www.dgsi.pt ).

Ora, tal como se decidiu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23/02/2016 “Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.

Por outro lado, como vem sendo entendido pela jurisprudência a presunção do art.º 7.º do CRP não abrange os elementos de identificação do prédio constante da descrição predial, ou seja, a sua área e confrontações (v. por todos Acs. do STJ de 11/02/16 e de 12/01/21, ambos in www.dgsi.pt). Assim, da presunção adveniente do registo não se pode retirar o direito de propriedade da Autora (ou dos RR.) sobre a faixa de terreno em causa, mas apenas quanto ao(s) prédio(s) em si mesmo, constante(s) da respetiva descrição predial.

Uma vez que, no caso, não se provou qualquer fraude, designadamente, não se provou a simulação invocada pelos RR. e existe dupla descrição da faixa de terreno disputada nos autos, temos que nos socorrer das normas de direito substantivo para resolver a questão da propriedade sobre a faixa de terreno em causa, designadamente às normas que regulam a aquisição da propriedade por usucapião.

Cumpre referir que, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, a aquisição da propriedade por via de uma venda judicial não é uma aquisição originária, mas sim uma aquisição derivada, pois o direito de propriedade que o arrematante vai adquirir é aquele que pertencia ao executado e a titularidade dos bens passa diretamente do executado para o adquirente, assumindo o Estado apenas a posição de vendedor (v. Ac. do STJ de 7/7/99 in Col. Jur., ano VII, Tomo II, 1999, pág. 164-168; Ac. R.P. de 7/12/05 in www.dgsi.pt ; Miguel Teixeira de Sousa in Sobre a eficácia extintiva da venda executivapág.. 59Vaz Serra in Realização Coactiva da Prestação (execução e regime civil), pág. 281-282), pelo que os RR. podiam e podem suceder na posse dos seus antecessores.

Dos pontos 20 a 36 e ainda dos pontos 38 a 46, 48 a 50 resulta que os proprietários, quer da “Quinta”, quer do “Pinhal” sempre usaram a mencionada porção de terreno como parte da “Quinta”, sendo a mesma, há mais de 30 anos, utilizada como via principal de acesso à sua habitação, que hoje é propriedade dos RR.. Essa via foi utilizada de forma ininterrupta e exclusiva por todos os sucessivos proprietários da habitação e por todos os que, por qualquer razão, a frequentavam, desde, pelo menos, 1979, sempre de forma pública, pacífica e de boa fé. No entanto, aquando da aquisição do “Pinhal” por parte da A. esta colocou lá uma vedação que os RR. retiraram aquando da aquisição da “Quinta” em 2007, sendo certo que não se provou que os RR. sabiam quem tinha colocado essa vedação. Por outro lado, a providência cautelar de restituição da posse intentada pela A. contra os R. foi julgada improcedente e os RR. nunca tiveram intervenção nesse processo.

Desde 2007 que os RR. exercem posse titulada, registada, de boa fé e sem oposição de outrem, até à propositura da presente ação em 2020, posse essa que já era exercida pelos anteriores proprietários da “Quinta”.

Estes factos são suficientes para que se considere que os RR. adquiriram tal faixa de terreno por usucapião (v. arts. 1251º, 1258º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1287º, 1294º - a), todos do C. Civil). [...]

Acresce que, em 2002 foi efetuado o arresto da “Quinta” (convertido em penhora em 2004) e esse arresto, se analisarmos os documentos do processo onde foi efetuado, abrangia a “Avenida”. Na verdade, essa parcela de terreno era a única entrada utilizada para a “Quinta” e, conforme resulta da matéria de facto provada, “a faixa de terreno em causa nos presentes autos juntamente com a casa dos Réus e o respetivo quintal apresentam-se como um conjunto arquitetónico uno.”

Assim, com o arresto e subsequente penhora ocorreu o desapossamento (1) da Srª C. relativamente, não só à “Quinta”, mas também à “Avenida”, portanto, a Srª C., não detendo em 2003 a posse da “Avenida”, não a podia transmitir para o então proprietário do “Pinhal” e este não a podia transmitir para a A..

Não provou, assim, a A., como lhe competia, a aquisição da propriedade da “Avenida”.

Tal prova foi feita, no entanto, pelos RR. que lograram provar a aquisição originária da propriedade sobre a dita parcela de terreno, por usucapião, como acima se referiu."

[MTS]