Prova ilícita;
prova documental; contraditório
1. O sumário de RL 14/7/2022 (10022/17.7T8SNT.L1-7) é o seguinte:
I - Num contexto processual em que uma parte vem, em fase de julgamento, requerer a junção de um documento e a contraparte requer o desentranhamento de tal documento com fundamento em que o documento foi obtido mediante crime violação de correspondência tratando-se, por isso, de prova nula, haverá que aplicar por analogia o regime dos Artigos 446º a 449º do Código de Processo Civil, tendo em vista determinar se o documento é atendível por ser licitamente obtido ou se, pelo contrário, não é atendível por ter sido obtido de forma ilícita.
II - Uma vez que a Ré se limitou a insinuar e não deu corpo à insinuação na medida em que não indicou meios de prova a produzir no intuito de corroborar a alegação (cf. Artigo 449º, nº 1, e Artigo 91º, nº 1, do Código de Processo Civil), não cabia ao tribunal prosseguir com a apreciação de uma questão votada inexoravelmente ao insucesso pela inexistência de qualquer meio de prova a apreciar nesse âmbito (cf. Artigo 130º do Código de Processo Civil).
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Na sessão de julgamento de 24.3.2022, após as declarações de parte da ré, a autora requereu a junção do extrato de remunerações dos vencimentos que a autora pagava à ré dos quais eram feitos os respetivos descontos para a Segurança Social.
Fundamentando tal pedido, alegou que, ao contrário do que foi dito pela Ré, a Autora descontou para a segurança social e tinha uma remuneração paga pela autora.
Dada a palavra ao mandatário da Ré, pelo mesmo foi tido que não prescindia de prazo para tomar posição em relação aos documentos, bem como foi arguida a intempestividade da sua junção. Mais afirmou que, sendo admitida a junção dos documentos, pretendia confrontar as testemunhas com os mesmos.
Nessa sequência, a Mma Juíza admitiu de imediato a junção dos documentos, argumentando que o extrato de remunerações se mostra pertinente perante o teor das declarações de parte da ré. Do mesmo passo, declarou que «será acautelado o prazo para exercício do contraditório quanto a tais documentos».
Em 4.4.2022, a Ré veio formular requerimento em que impugna os documentos em causa e a respetiva força probatória, mais arguindo, no que tange ao extrato remuneratório, que «Tratando-se de uma carta destinada à Ré, que a Autora terá aberto, violando correspondência daquela, sendo nula a prova obtida através da prática de crime, não tendo a Ré, nunca, autorizado que a Autora abrisse as cartas que eram dirigidas à filha, contendo tal correspondência dados pessoais da Ré protegidos por segredo, deverá ordenar-se o seu desentranhamento (…)».
Sobre esse segmento do requerimento, recaiu despacho de indeferimento, radicando o raciocínio neste âmago:
«No caso dos autos, logo em sede de audiência final, a Ré/Reconvinte entendeu pronunciar-se quanto à admissibilidade de junção do documento ora em causa (extratos da Segurança Social) invocando, nessa sede, tão só, a intempestividade da sua junção e logo avançando que pretendia confrontar as testemunhas a ouvir com o teor de tal documento, o que levou a que se desse sem efeito a produção da prova testemunhal agendada para essa data.Assim, a junção de tal documento veio a ser expressamente admitida em sede da tal audiência final.Por outro lado, a Ré/Reconvinte limita-se a afirmar agora que “a Autora terá aberto carta destinada à Ré”; o que corresponde a uma possibilidade e, assim, não corresponde a uma afirmação segura.A isto acresce que o extrato das remunerações comunicadas à Segurança Social pelo empregador não corresponde a “dados pessoais da Ré protegidos por segredo,” perante o próprio empregador, que, no caso, é a Autora; e, por isso, conhece o conteúdo do extrato de remunerações que a própria terá comunicado à Segurança Social.»
É de acompanhar o raciocínio expendido pelo tribunal a quo, sem prejuízo dos aditamentos que seguem.
Em primeiro lugar, a Ré não arguiu que o documento em causa foi obtido através de crime de violação de correspondência (o que só faz nas alegações de recurso), limitando-se a insinuar essa conjetura: “que a Autora terá aberto”. Assim, não cabe ao tribunal assumir asserções que a parte não se atreveu a fazer, sendo ainda certo que não estamos no âmbito de um processo de inquérito criminal em que caiba ao tribunal agir oficiosamente, sendo que o crime de violação de correspondência (Artigo 194º do Código Penal) é semipúblico, dependendo a investigação da formulação de queixa (Artigo 198º do Código Penal).
Mesmo que a Ré tivesse arguido, de forma atendível, a existência de crime de violação de correspondência, caber-lhe-ia indicar meios de prova para sustentar tal asserção. Com efeito, num contexto processual em que uma parte vem, em fase de julgamento, requerer a junção de um documento e a contraparte requere o desentranhamento do documento com fundamento em que o documento foi obtido mediante crime violação de correspondência tratando-se, por isso, de prova nula, haverá que aplicar por analogia o regime dos Artigos 446º a 449º do Código de Processo Civil tendo em vista determinar se o documento é atendível por ser licitamente obtido ou, pelo contrário, se não é atendível por ter sido obtido de forma ilícita.
Não havendo norma específica sobre o modo de arguição da prova ilícita nesta fase, haverá que integrar tal lacuna com aplicação analógica (Artigo 10º, nº1, do Código Civil; cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pp. 73-74, defendendo a aplicação geral do Artigo 10º do Código Civil).
Ora, a Ré limitou-se a insinuar e não deu corpo à insinuação na medida em que não indicou meios de prova a produzir no intuito de corroborar a alegação (cf. Artigo 449º, nº1, e Artigo 91º, nº1, do Código de Processo Civil). Não tendo a ré requerido a produção ad hoc de prova, não cabia ao tribunal prosseguir com a apreciação de uma questão votada inexoravelmente ao insucesso pela inexistência de qualquer meio de prova a apreciar nesse âmbito (cf. Artigo 130º do Código de Processo Civil)."
[MTS]