Embargos de obra nova;
requisitos
1. O sumário de RL 14/7/2022 (1178/22.8T8OER.L1-7) é o seguinte:
I- Constituem requisitos do embargo de obra nova a titularidade de um direito de propriedade, ou outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, por parte do requerente, que este tenha sido ofendido no seu direito em consequência de obra realizada pela contraparte que lhe cause ou ameace causar prejuízo e que o embargo seja requerido em trinta dias a contar do seu conhecimento;
II - Invocando a requerente a defesa da sua privacidade e o direito à paisagem de que sempre gozou no prédio de sua propriedade, que considera afetados com reflexos no direito de gozo dessa sua propriedade face à construção em curso realizada pela requerida, sem alegar a concreta violação de regras de construção por parte desta, mormente no que se refere à distância mínima entre os edifícios ou qualquer outra prevista no Código Civil relativamente às construções e edificações ou em legislação especial, não pode a mesma embargar a referida obra;
III- Mesmo entendendo que estão em causa direitos de personalidade da requerente com efeito no valor patrimonial do seu prédio, para que estes merecessem a tutela do direito por via do embargo de obra nova não poderia prescindir-se de um grau de gravidade e desequilíbrio que justificasse o constrangimento do direito da requerida, o que, no caso e em face do alegado, não se afigura ocorrer;
IV- Concluindo-se que ainda que viesse a provar-se a factualidade alegada pela requerente daí não resultaria a procedência da sua pretensão, pode logo concluir-se, após os articulados e sem necessidade de outras diligências e/ou da produção de prova, que à requerente não assiste o direito de embargar a obra da requerida.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"De acordo com as conclusões do recurso, em causa está apreciar se estão verificados os requisitos para ratificação do embargo extrajudicial, devendo prosseguir o processo com convite ao aperfeiçoamento e produção de prova, uma vez que o tribunal não se encontrava munido de todos os elementos necessários para apreciar a providência requerida.
Como é sabido, constituem requisitos essenciais das providências cautelares não especificadas (procedimento cautelar comum) o fundado receio de que outrem, antes de proposta a ação principal ou na pendência dela, cause lesão grave ou de difícil reparação ao direito do requerente, probabilidade séria da existência do direito ameaçado, adequação da providência solicitada para evitar a lesão e não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar (cfr. arts. 362 e 368 do C.P.C.).
O procedimento cautelar em geral tem natureza instrumental, sendo “dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado” (art. 364 do C.P.C.). De resto, os efeitos da providência estão dependentes do resultado obtido na ação definitiva e caducam, por regra, se essa ação não for instaurada, se a mesma vier a ser julgada improcedente ou se o direito tutelado se extinguir (art. 373 do C.P.C.).
Por conseguinte, o procedimento cautelar não se destina a dar realização direta e imediata ao direito do requerente, mas apenas a assegurar/prevenir a eficácia da tutela que deve depois obter-se na ação principal (já proposta ou a propor), sem prejuízo da possibilidade da definitiva composição do litígio nas condições hoje previstas no art. 369 do C.P.C.(---)
Assim, sem prejuízo de algumas medidas que possam decretar-se com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, há que encontrar, em cada caso, qual a solução que melhor se adequa à proteção dos interesses reclamados, no contexto da análise dos requisitos conjuntos de que depende a decretação da providência.
O poder de embargar obra nova (procedimento cautelar especificado com funções preventivas ou conservatórias) não é exclusivo dos tribunais judiciais, podendo ser feito diretamente pelo interessado, ficando, nesse caso, sujeito a ratificação judicial (cfr. arts. 397, nº 2, e 400, do C.P.C.).
Dispõe o art. 397 do C.P.C., que: “1 - Aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente.
2 - O interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar.
3 - O embargo previsto no número anterior fica, porém, sem efeito se, dentro de cinco dias, não for requerida a ratificação judicial.”
Constituem, assim, requisitos do embargo de obra nova a titularidade de um direito de propriedade, ou outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, por parte do requerente, que este tenha sido ofendido no seu direito em consequência de obra realizada pela contraparte que lhe cause ou ameace causar prejuízo e que o embargo seja requerido em trinta dias a contar do seu conhecimento.
Por sua vez, a referência à suspensão enquanto objetivo da providência aponta no sentido de limitar o embargo às obras ou trabalhos que não se mostrem ainda concluídos nos seus aspetos fundamentais, sob pena de se perder a sua função preventiva (---)
Cumpre também realçar que se mostra indiferente à apreciação dos requisitos do embargo de obra nova o cumprimento de exigências administrativas, a autorização da obra por qualquer autoridade pública, na medida em que intervenção de uma tal entidade se destina a assegurar o respeito por normas de interesse público e não a dirimir conflitos de outra natureza entre particulares (---)
Por fim, vem sendo entendido que o embargo de obra nova tem como objetivo a defesa do património, podendo “ser requerido quando tenha sido afectado o direito de propriedade, outro direito real ou pessoal de gozo ou a posse formal, já não quando os actos, mesmo que ilícitos, apenas afectem o interessado na esfera dos seus direitos de personalidade.”(Ainda A. Abrantes Geraldes, [“Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª ed.], pág. 250)
Revertendo para o caso em análise, temos que a requerente assenta a sua pretensão na circunstância do empreendimento “Dafundo 24” em construção no prédio da requerida, que confronta a sul com o imóvel de sua propriedade, ter prevista a instalação, na respetiva cobertura, de deck e piscinas à mesma cota, o que permite a instalação de mesas, cadeiras, chapéus-de-sol, etc., que ficarão a uma altura que ocultará completamente a vista da requerente sobre a Av. Marginal e o rio Tejo e afetará a sua privacidade uma vez que as pessoas que ali se encontrem estarão acima da cota do jardim da requerente, desvalorizando tal situação o seu imóvel. Situação que, continua, não ocorreria se o deck estivesse abaixo da cota do rebordo da piscina, como inicialmente estaria projetado.
A requerida deduziu oposição sustentando, no que aqui releva, que a obra se encontra devidamente licenciada, mormente no que toca à elevação do deck existente na cobertura, e que dessa obra não resulta ofensa de direitos de gozo do imóvel da requerente, nem prejuízo ou ameaça de prejuízo para a esta, mostrando-se observado o disposto no art. 1360 do C.C.. Refere que a requerente não fica, com a obra em apreço, privada das vistas que detinha, sendo que o alegado nesta matéria não merece, em qualquer caso, tutela jurídica.
Após os articulados foi julgada improcedente a providência requerida, sem produção de prova, entendendo-se, no essencial, que a requerente não invoca factos de que decorra a violação do seu direito de propriedade, à luz do disposto no art. 1360 do C.C., e que a alegada perda de “vista ininterrupta sobre o Tejo” não constitui violação de qualquer direito real de gozo.
Dispõe o art. 1305 do C.C. que “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.”
Tais restrições serão de direito público e de direito privado, sendo estas últimas as resultantes das relações de vizinhança, previstas e reguladas genericamente nos arts. 1344 e ss. do C.C., no capítulo respeitante à propriedade dos imóveis (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., págs. 94/95.), em concreto, e no que aqui interessa, nos arts. 1360 e ss. do referido Código.
A requerente sustenta a defesa da sua pretensão na violação de determinados direitos com reflexo na desvalorização do imóvel de que é proprietária no Dafundo com o que pretende deitar mão do embargo de obra nova.
Cumpre, pois, averiguar se alegou factos que, a provarem-se, constituam ofensa desse direito de propriedade, ou ameaça de ofensa, através da obra da requerida, a justificar o decretamento da providência.
Estando em causa construções e edificações, constatamos que a requerente não invocou a específica violação do seu direito de propriedade à luz dos mencionados arts. 1360 a 1365 do C.C. ou de quaisquer outros normativos previstos em legislação especial. E, muito embora defenda no recurso que deveria ter sido convidada ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, não adianta que concreta norma terá sido violada pela requerida, refugiando-se na defesa genérica da sua privacidade e no direito à paisagem de que sempre gozou que considera afetados, com efeito no direito de gozo da sua propriedade.
Assim, da sua alegação recursiva conjugada com o requerimento inicial resulta que a requerente não considera incumpridas pela requerida quaisquer concretas regras, como as definidas no Código Civil relativamente às construções e edificações (arts. 1360 a 1365 do C.C.), aceitando, nomeadamente, como se refere no despacho recorrido, que o seu prédio dista do novo empreendimento da requerida mais de metro e meio, o que desde logo exclui a aplicação do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 1360 do C.C..
Porém, o referido art. 1360 do C.C. contém em si, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Ob. cit., pág. 212.), a dupla finalidade de pretender evitar que o prédio vizinho seja, com facilidade, objeto da indiscrição de estranhos e devassado com o arremesso de objetos.
Ou seja, é a distância de, pelo menos, metro e meio entre os prédios vizinhos, prevista no indicado preceito, que protege, em termos de razoabilidade e em face da lei, a privacidade exigível, impondo-se, por isso, tal restrição à propriedade individual. Donde, observada essa distância relativa, não pode exigir-se um maior afastamento com o argumento de que, ainda assim, a privacidade não fica salvaguardada numa determinada situação.
Do mesmo passo, nenhuma restrição, para além das de interesse público e de ordenamento do território e do urbanismo (como as previstas no RGEU, no RJEU ou no PDM aplicável), se impõe no Código Civil quanto à dimensão vertical dos edifícios (altura da edificação) e/ou sobre a forma ou configuração da respetiva cobertura.
Ao mesmo tempo, é intuitivo que o direito da requerente a gozar e fruir do seu imóvel não pode deixar de conciliar-se com idêntico direito de propriedade da requerida relativamente ao prédio vizinho, devendo esta, por sua vez, respeitar na nova construção as regras estabelecidas no Código Civil sobre as construções e edificações e todas as demais previstas em legislação especial.
E da concertação desses direitos de propriedade em concreto – posto que nenhuma norma construtiva surge como tendo sido violada pela requerida – não decorre, a nosso ver, que a requerente disponha da prerrogativa de gozar em exclusivo do espaço circundante ao seu prédio, de modo que nenhum outro edifício ou construção atinja altura equivalente e/ou disponha de cobertura, nomeadamente afetada ao lazer, do qual se aviste o jardim existente no seu próprio imóvel. Note-se que, de forma equivalente, e face ao alegado, também o terraço de cobertura do prédio da requerida será avistável a partir do imóvel da requerente, com os inerentes incómodos daí decorrentes.
Do mesmo modo, não dispõe a requerente de um direito irrestrito a disfrutar da vista sobre a Av. Marginal e o rio Tejo, ainda que tal vista seja afetada, no todo ou em parte, pela construção do empreendimento da requerida. Conforme se sintetizou no Ac. RE de 22.9.2016 (Proc. 160/16.9T8LAG.E1, em www.dgsi.pt.), com apoio da diversa jurisprudência citada para a qual remetemos e nos escusamos aqui de reproduzir: “Não existe direito subjectivo à paisagem.”
Por outras palavras, face ao alegado e à argumentação recursiva, o direito de propriedade da requerente não se mostra afetado à luz de quaisquer concretas normas relativas à construção de edifícios que hajam sido violadas pela requerida.
Do que se trata é da alegada violação de direitos de personalidade, da reserva da privacidade e do direito à paisagem, em suma, do bem-estar da requerente ou de quem habite o prédio de sua pertença, ainda que com possíveis reflexos no valor do imóvel.
Sucede que tais direitos não fazem parte do estatuto real do direito de propriedade, nem se integram na liberdade de usar, fruir ou dispor que caracterizam o mesmo, como claramente se concluiu, com relação ao direito à paisagem, no Ac. STJ 6.9.2011 (Proc. 111/09.7TBMRA.E1.S1, em www.dgsi.pt.). Como ali se refere: “(…) O direito à paisagem, considerado como mero componente do direito ao ambiente, não faz parte do estatuto real do direito de propriedade (não se integra na liberdade de usar, fruir ou dispor que caracteriza este direito), sendo um direito que pertence a todos os cidadãos, independentemente de serem ou não proprietários de determinado terreno, pelo que consiste num direito de personalidade e não num direito real.(…).” [...]
Em suma, cremos que os factos alegados e imputados à requerida com a construção do empreendimento em apreço, relativos à violação da privacidade da requerente e afetação das vistas desta sobre a Av. Marginal e o rio Tejo, não violam o direito de propriedade desta nem lhe conferem o direito a embargar a obra."
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