"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/04/2023

Jurisprudência 2022 (171)


Petição da herança; 
cumulação de pedidos


I. O sumário de RL 15/9/2022 (1021/19.5T8CSC.L1-8) é o seguinte:

1. O art. 2088º do Código Civil confere ao cabeça de casal, no âmbito dos seus poderes de gestão e de administração, e relativamente a bens que integrem a massa hereditária que lhe cumpra administrar (arts. 2079º e 2087º do Código Civil), o direito de exigir dos herdeiros e de terceiros a entrega material de bens que estejam na sua posse desde que a entrega se revele necessária ao exercício de gestão, recaindo sobre os possuidores, quando pretendam obstar ao procedimento de tal pretensão, o ónus de alegarem e demonstrarem factos concretos suscetíveis de evidenciarem que tal pedido configura abuso de direito (arts. 334º e 342º, nº 1, do Código Civil).

2. A par do pedido de entrega do bem, e verificado prejuízo para a herança, pode o cabeça de casal, enquanto administrador da herança, exigir dos possuidores o pagamento de indemnização destinada a reparar prejuízos decorrentes da turbação da posse, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 1284º do Código Civil.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Do recurso subordinado apresentado pela autora

A autora veio manifestar a sua discordância quanto à decisão proferida em 1ª instância na parte em que absolveu os réus dos pedidos formulados sob as alíneas e), e f), da petição inicial, designadamente, no pedido de condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia mensal de € 1.000,00, por cada mês que decorra desde a citação dos Réus até à efetiva entrega da fração autónoma à Autora, bem como no pagamento de juros de mora vincendos à taxa legal de 4%/ano (ou outra que entretanto vigorar) desde a data do vencimento até integral pagamento da quantia global que vier a ser apurada.

Como fundamento do assim peticionado, diz, a autora, na petição inicial, que lhe assiste o direito a reclamar compensação pelo uso e pela ocupação que os Réus fazem, em exclusivo, da fração autónoma que integra o acervo hereditário do falecido, e que por isso, nos termos previstos no art. 1284º, do Código Civil, pode exigir-lhes uma indemnização pelos prejuízos sofridos decorrentes da ocupação até se concretizar a restituição, correspondente à quantia mensal equivalente à renda que a fração poderia gerar desde a data da citação até à sua entrega efetiva.

Os pedidos assim formulados foram julgados improcedentes, por não provados, com os seguintes fundamentos:

“A Autora veio requerer que sejam os réus condenados a pagar a quantia mensal de € 1.000,00 (mil euros), por cada mês que decorrer desde a citação até à efetiva entrega da fração autónoma à Autora, porquanto este imóvel tem o valor locativo de renda mensal não inferior a 1.000,00 euros, valor que resultou assente.

Não se pode dissociar deste pedido, todavia, que o mesmo tem por fundamento o dever de administração dos bens da herança que cabe à cabeça de casal aqui A., no caso dos autos, o dever de gerir e administrar a fracção autónoma onde residem os Réus.

Não tendo a lei definido o conteúdo concreto dessa administração, é claro que o percebimento de frutos e os rendimentos dos bens da herança cabe no âmbito da administração do acervo hereditário, o que, necessariamente, terá que ser apreciado em sede de processo especial de prestação de contas – vide, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-07-2002, processo n.º 0021756, disponível em www.dgsi.pt.

Ou seja, os actos da administração do acervo hereditário, onde se inclui o pedido de condenação dos Réus supra referido, levados a cabo pela cabeça de casal, só pode ser apreciado em sede do processo especial de prestação de contas, do que resulta a sua improcedência nestes autos de processo comum.

Ademais, é igualmente de levar em consideração que a Ré é também herdeira da herança que cabe à A. administrar, e pese embora não detenha título que legitime a ocupação que faz da fracção em causa, devendo restituir o bem à herança, não podemos descurar que apesar de ser titular duma quota ideal do acervo hereditário a Ré pode vir a adquirir a fracção aquando da partilha dos bens, e nesse caso será considerada sucessora única do referido imóvel, desde a data da abertura da herança, sendo-lhe por isso inexigível, neste quadro, o pagamento de uma “renda” pelo uso do bem.

Improcede, assim, este pedido da A..”.

Neste tocante, não podemos sufragar a decisão recorrida.

Na sequência do que anteriormente se deixou referido, a presente ação apresenta-se como uma ação possessória – ação de restituição de posse de bem à herança -, pelo que, tendo sido pedida a restituição do bem, é-lhe aplicável o regime jurídico decorrente dos art. 1284º, nº 1, do Código Civil, de acordo com o qual, “O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho”.

Ponderado o quadro factual apurado, é inequívoco que até à citação dos réus para os termos da presente ação, a posse dum e doutro relativamente ao imóvel, onde habitam, foi tolerada pelos herdeiros, nomeadamente por parte da Autora, na qualidade de cabeça de casal, posto que inexiste evidência de ter sido deduzida oposição a tal posse.

Tal tolerância cessou, porém, no momento em através da presente ação lhes foi pedida a restituição do bem à herança a fim de o mesmo ser gerido pela cabeça de casal. Logo, a partir da citação, os Réus tomaram conhecimento de que a posse de ambos passou a contar com a oposição da cabeça de casal – administradora da herança - e que, por isso, a manter-se, como sucedeu, passou a ser ilícita, na medida em que não provaram a existência de título que justificasse a posse.

O uso do prédio, pelos réus, nas descritas circunstâncias passou então a acarretar um prejuízo na esfera da herança, porque dele desbulhada, e por isso privada de obter frutos/rendimentos, equivalentes à renda mensal que o mesmo podia gerar no mercado de arrendamento habitacional, tendo resultado precisamente como demonstrado que caso não estivesse a ser ocupada pelos Réus, a referida fração autónoma poderia ser dada de arrendamento, por renda mensal de valor não inferior a €1.000,00.

Tais prejuízos manter-se-ão na esfera da herança até ao momento em que o bem lhe seja entregue ou até à sua partilha.

E esta é a ação adequada para a autora, na qualidade de cabeça-de-casal, pedir indemnização a ambos os réus (já que o réu – que não tem a qualidade de herdeiro do sobredito falecido - também ocupa a casa sem qualquer título que legitime a ocupação), sem prejuízo, obviamente, do dever que sobre si recairá de prestar contas aos herdeiros, nos termos previstos no art. 2093º, nº 1, do Código Civil, ou de lhe ser exigido por qualquer dos herdeiros que as preste, caso não o faça, como está obrigada (por via do recurso ao procedimento previsto pelos arts. 941º, a 947º, do Código de Processo Civil), sendo que a prestação de contas pressupõe o recebimento de receitas por parte da herança e a contabilização de despesas, em ordem a ser determinada a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Deste modo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1284º, 562º, 563º, e 564º, do Código Civil, impõe-se revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu os réus daqueles pedidos, e determinar a condenação destes no pagamento, à Autora, enquanto cabeça de casal, da quantia mensal de € 1.000,00, desde a citação até à restituição do imóvel ou à sua partilha, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal (cf. arts. 804º, 805º, nº 1, e 806º, nºs 1, e 2, do Código Civil), mas apenas desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento."

[MTS]