"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/04/2023

Jurisprudência 2022 (168)


Declarações de parte;
valor probatório


1. O sumário de RG 13/7/2022 (137/21.2T8VCT.G1) é o seguinte:

I O artº. 421º, nº. 1, do C.P.C., reporta-se ao aproveitamento do meio de prova produzido num processo (caso das declarações de parte, cuja reprodução tem de ser junta ao processo em que se quer invocar), o que não se verifica com a pretendida junção de um documento –sentença e acórdão que sobre o mesmo recaiu- em que foi valorado aquele meio de prova.

II Em sede de meios de prova sujeitos á livre apreciação do julgador essa junção mostra-se inútil porque aquela apreciação não o vincula.

III O facto de não ser admissível a prova do contrato de mútuo – válido – para o qual a lei exija documento autêntico ou particular que não existe, através de testemunhas, presunção judicial, ou declarações de parte, não impede que se prove por essas vias o acordo em si mesmo, sendo causa de pedir a produção das declarações não formalizada (rectius, a nulidade).

IV Situação diferente é verificar se as declarações de parte, meio de prova livre, em conjugação com os restantes meios de prova, sustentam o facto relativo ao empréstimo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] ouviu-se o A. em sede de declarações de parte, a prova testemunhal, e concatenou-se tudo com a prova documental existente no processo.

Ora, ao contrário da posição do Tribunal recorrido, entendemos que as dúvidas que ficam no espírito do julgador não podem ser ultrapassadas e não permitem dar como assente a factualidade controvertida e que é o cerne da questão.

De facto, em primeiro lugar as declarações de parte mais não são do que a reafirmação do alegado e do que é óbvio e que foi admitido pelos R.R., desde logo face à prova documental apresentada. Sabemos pela prova documental que houve movimentação de dinheiro, e os seus contornos. O que importava era contextualizar essa movimentação de modo a que se pudesse explicar porque é que surge o A. a emprestar dinheiro - € 10.000,00 - ao filho da 1ª R., sua mulher à data do suposto empréstimo. E isto não foi esclarecido. A este respeito o A. só mencionou os problemas do 2º R. e que reuniram para ver como se havia de fazer, tendo surgido a alusão do pagamento em numerário (apesar de, na sua versão, com dinheiro seu que levantaria para o efeito).

Resumidamente a versão da R. é: o A. foi quem fez a transferência para a solicitadora, o valor em causa foi-lhe logo entregue em numerário, vindo da R. M. C. que foi quem ajudou o R. A. C.; quando é feita a transferência dos € 5.000,00 para a conta do A. a convicção é que era para pagar aquele valor à R. M. C., muito embora através da conta do A. mas com quem a R. estava casada.

Repete-se que não são os R.R. que têm de convencer o Tribunal da sua versão, já que estes defenderam-se em primeira linha por impugnação.

Mostra-se para nós irrelevante demonstrar que a R. M. C. tinha meios de ajudar o filho, uma vez que o A., através da prova que apresentou e desde logo nas suas declarações de parte, não explicou porque é que teve de ser ele e não a R. M. C. a fazê-lo.

Por isso, mais do que “discutir” o valor probatório das declarações de parte, o que sucede é que estas não foram sequer esclarecedoras.

Sabemos que, conforme se refere-se no Ac. da Rel. de Lisboa de 26/4/2017 (relator Luís Filipe Pires de Sousa, www.dgsi.pt) a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que respeita à função e valoração das declarações de parte que se reconduzem a três teses essenciais:

a) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
b) tese do princípio de prova;
c) tese da autossuficiência das declarações de parte.

Para a primeira tese, que é defendida por Lebre de Freitas (in “A Ação Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, p. 278) “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.” Ou seja, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa, supletiva e subsidiária, permitindo suprir falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.

Segundo a tese do princípio de prova as declarações de parte não são suficientes por si só para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.

Finalmente, a tese da autossuficiência das declarações de parte considera que as mesmas podem permitir a prova de um facto de forma autónoma, ou seja, desacompanhadas de qualquer outro meio probatório.

No caso dos autos a factualidade controvertida é suscetível de obtenção de meios de prova que não se limitem às declarações de parte, tratando-se de um alegado acordo que, apesar de não documentado, poderia ser testemunhado por alguém, e tem algum apoio em sede de prova documental.

Relativamente a prova testemunhal, efetivamente não há prova direta, sendo de desvalorizar, a nosso ver, os depoimentos apresentados já que estes apenas tiveram conhecimento daquilo que lhes foi transmitido e apresentado pelo próprio A.; acresce que a referida conversa quanto às queixas de ingratidão do 2º R. para com o A., que este teve com as testemunhas, mostra-se algo forçada num contexto em que haveriam certamente questões mais importantes a perturbar o A..

Relativamente à prova documental ela não pode ser vista como um princípio de prova do alegado pelo A. e reforçada pelas suas declarações, na medida em que ela também “encaixa” na versão apresentada pelos R.R.: o A. fez a transferência, materializando a entrega do dinheiro/pagamento à solicitadora, mas não o fez a título de empréstimo; o depósito dos € 5.000,00 (feito numa altura de reconciliação do casal, e em que na versão do A. também teria havido uma devolução por parte da 1ª R. ao A. de € 300.000,00 que lhe teria retirado – o que só mostra as divergências entre o casal quanto a dinheiro) em conta do A. não significa necessariamente que se destinavam a devolver a quantia (parcialmente) ao A.; e se assim fosse, porquê metade? Ainda que se conceda credibilidade ao depoimento da testemunha V. R. no sentido de confirmar a versão do A. de que a R. M. C. lhe pediu o IBAN para dar ao A. C., isso não encerra a explicação do facto. Acresce que na versão apresentada pelo A. em sede de declarações o 2º R. terá dito que, quanto ao valor em falta, que o pagasse a 1ª R. ao A. uma vez que também tinha dado um carro ao outro filho; isto, a nosso ver, só adensa as dúvidas. Acresce ainda que quando o A. pede a devolução do valor aqui também peticionado já o divórcio estaria acertado.

Em suma, as relações entre A. e 1ª R. a nível pessoal e patrimonial envolvem outras situações para que se possa retirar, dos elementos que temos, a prova da versão relativa à existência do empréstimo feito pelo A. a favor do 2º R., filho da 1ª R., com obrigação deste devolver o valor em causa ao A.. As relações entre os três estão encadeadas, não podemos ver isoladamente a relação entre A. e 2º R.. O A. tinha que demonstrar que o valor que foi para pagar a dívida exequenda era para lhe ser devolvido na totalidade, para o que não chega o facto de ter saído da sua conta e ter entrado cerca de metade na sua conta, nos dois casos em momento de vida conjugal com a R..

Nada tendo sido esclarecida a situação, as declarações de parte não tiveram caráter complementar ou coadjuvador da restante prova em ordem a demonstrar a realidade em causa, tão pouco se destinaram a clarificar uma prova que fosse duvidosa dessa mesma realidade.

E assim sendo cremos que se verifica uma falta de sustentação da alínea f) dos factos provados no que concerne ao empréstimo, o que nos cabe verificar, e concluir antes pela sua inserção nos factos não provados, mantendo-se o que se mostra incontroverso e nem sequer foi aqui questionado - com vista ao pagamento da referida dívida, o Autor efetuou transferência bancária para a conta que o Réu A. C. lhe indicou (PT .................05) da quantia de € 10.063,61. Além disso, nomeadamente a concessão de um empréstimo, não foi matéria “confessada” pelos R.R. na sua contestação. Porquê ou a que título se verificaram os movimentos, é isso que fica não provado: a transferência mencionada em f) foi feita a título de empréstimo ao 2º R. A. C. – isto mesmo passa a constar da alínea a) dos factos não provados, seguindo-se a restante factualidade não provada."

[MTS]