Processo executivo;
reclamação de créditos; intervenção de terceiros*
I - Se o terceiro proprietário de bens onerados com hipoteca não tiver sido demandado conjuntamente com o executado, pode sê-lo mais tarde, através do incidente da intervenção principal provocada.
II - Mas se a transmissão do direito de propriedade sobre os bens onerados com hipoteca ocorrer depois de penhorados esses bens, mormente em consequência de decisão proferida em ação declarativa registada antes da penhora, neste caso o incidente adequado é o da habilitação do adquirente.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"b) Apreciação das questões objeto do recurso
1 – Recapitulando o já dito, verifica-se que em 2006 a Recorrente [credora reclamante] obteve hipoteca sobre cinco prédios que pertenciam nessa data à executada E..., Ld.ª.
Mais tarde, em 2015, a empresa E..., Ld.ª foi executada na presente execução e foram penhorados esses prédios, em 29 de março de 2017.
A recorrente P..., SA reclamou créditos tendo sido graduada em segundo lugar por virtude da aludida hipoteca sobre três desses prédios.
Sucede que a requerida C... Unipessoal, Ld.ª tinha instaurado uma ação declarativa, com o número 229/13...., através da qual, por sentença de 26 de janeiro de 2017, obteve a transmissão da propriedade de três desses prédios para si, no confronto com a antiga proprietária E..., Ld.ª.
Além disso, a requerida C... Unipessoal, Ld.ª registou essa ação declarativa em 30 de janeiro de 2015, em data anterior à da mencionada penhora, feita em 29 de março de 2017.
A Recorrente pretende que a nova proprietária desses três prédios intervenha na presente ação executiva e, para esse efeito, deduziu incidente de habilitação, pretensão que não foi acolhida pelo tribunal.
Coloca-se a questão de saber, como se disse, se é este o incidente apropriado ou se não será antes o da intervenção principal provocada.
Vejamos então.
O artigo 263.º do Código de Processo Civil dispõe que «No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.»
[A coisa ou direito litigioso adquirem a natureza de «litigiosos» a partir do momento em que são objeto de um pedido formulado numa acção judicial – DD. Um Desafio à Teoria Geral do Processo. Repensando a Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, Ainda um Contributo para o Estudo da Substituição Processual. Coimbra Editora, 2009, pág. 82]
No caso dos autos, ocorreu uma transmissão do direito de propriedade sobre três dos prédios penhorados, sendo a transmitente a executada E..., Ld.ª e a adquirente a empresa C... Unipessoal, Ld.ª, estranha ao presente processo executivo.
Parece, pois, que o disposto no referido n.º 1, do artigo 263.º, do Código de Processo Civil, dá enquadramento a esta hipótese factual, isto é, a «coisa litigiosa», que consiste nos prédios penhorados, foi transmitida, pelo que o adquirente pode e deve ser chamado aos autos «por meio de habilitação» para substituir o transmitente.
O artigo 356.º (Habilitação do adquirente ou cessionário) do Código de Processo Civil regula este tipo de habilitação.
Na decisão sob recurso considerou-se que este incidente não era o adequado porque não alcançava a finalidade para o qual está traçado, que é substituir uma pessoa por outra e neste caso isso não ocorreria porque a executada E..., Ld.ª continuaria no processo como executada apesar do sucesso da habilitação.
Não se afigura procedente este argumento porque o que fica dito não corresponde com exatidão à realidade processual dos autos.
Com efeito, a executada E..., Ld.ª é efetivamente substituída no que diz respeito à execução daqueles três prédios, embora continue na execução porque não é substituída quanto ao crédito exequendo e restantes bens penhorados.
Mas ocorre, na verdade, uma substituição parcial em relação a esses três prédios.
Afigura-se, por conseguinte, que o incidente da habilitação produz o efeito desejado que é fazer intervir o novo proprietário no processo executivo para que possa defender os seus interesses quanto a esses três prédios.
Vejamos agora a hipótese da intervenção provocada.
Este incidente está pensado e previsto para as situações em que se torna necessário garantir a legitimidade processual, quando a mesma não se encontra assegurada ou quando se pretende garantir a efetivação do direito de regresso (artigo 317.º do CPC).
O n.º 1 do artigo 316.º do Código de Processo Civil dispõem, com efeito, que «Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.»
Não repugna que um terceiro possa ser chamado em processo executivo, através do incidente de intervenção provocada, porquanto o n.º 2 do artigo 54.º do Código de Processo Civil determina que «A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia…».
Por conseguinte, se o terceiro não foi inicialmente demandado pode sê-lo posteriormente, provocando-se a sua intervenção.
Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de janeiro de 2014, no processo n.º 1626/11.2TBFAF-A.G1 (Abrantes Geraldes): « O facto de o credor ter instaurado acção executiva apenas contra o devedor não constitui obstáculo a que seja requerida a intervenção principal provocada do titular do bem hipotecado, se o credor pretender exercitar nessa mesma execução a garantia real do seu crédito» - Sumário, in
www.dgsi.pt.
[No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-06-2014, no processo 41/09.7TBACB-A.C1 (Catarina Gonçalves): «Pretendendo o exequente fazer valer, no processo de execução que instaurou contra o devedor, a garantia real do seu crédito e constatando-se que o bem sobre o qual incide essa garantia havia sido transferido para terceiro em momento anterior à propositura da execução, pode o exequente recorrer ao incidente de intervenção principal provocada para fazer intervir o aludido terceiro (que poderia ter demandado inicialmente) tendo em vista o prosseguimento da execução contra o devedor e contra o titular do bem onerado com a garantia real - Sumário, em www.dgsi.pt
Bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2020, no processo n.º 1778/14.0TBBCL-D.G1 (Maria João Matos): «Tendo o credor instaurado acção executiva apenas contra o devedor, e não simultaneamente contra o terceiro proprietário do bem dado em garantia, pode depois fazer intervir este por meio de incidente de intervenção principal provocada, quando pretenda exercitar nessa mesma execução a garantia real do seu crédito» - Sumário, em www.dgsi.pt]
Porém, o caso dos autos difere deste tipo de situações. No presente caso não existiu preterição de demanda do proprietário do bem dado em garantia, pois esse proprietário era a executada E..., Lda.
Dada a finalidade deste incidente, que é, na generalidade dos casos, a de assegurar a legitimidade decorrente de uma situação de litisconsórcio, parece que este incidente não se adequará ao caso dos autos, porquanto, tendo ocorrido sucessão no direito de propriedade sobre alguns dos bens penhorados, não estamos perante um caso de litisconsórcio, mas de mera sucessão temporal nos direitos, no caso, dos direitos de propriedade em relação a três imóveis penhorados.
Cimo se vem referindo, o que ocorreu foi a transmissão do direito de propriedade do bem hipotecado no decurso do processo executivo.
Para estes casos o incidente adequado é o da habilitação.
Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 21 de março de 2003, no processo identificado com o n.º 02B2897 (EE):
I - O incidente de habilitação de adquirente previsto nos art. 271, al. a) e 376, do CPC, sendo o meio adequado para realizar a substituição de alguma das partes em acção declarativa, à luz do princípio de economia processual pode e deve aplicar-se por analogia no âmbito da acção executiva para, embora em desvio às regras normais da legitimidade neste domínio, de um modo mais fácil e rápido possibilitar a intervenção do adquirente do bem hipotecado.
II - Importará, contudo, salvaguardar o direito de defesa do habilitado, designadamente dando-lhe a possibilidade de, se o desejar, vir opor-se à execução, o que impõe a sua notificação para tal efeito» - Sumário, in
www.dgsi.pt.
Independentemente do tipo de incidente utilizado, cumpre referir que deve proporcionar-se a intervenção da sociedade C..., Lda., face ao disposto nos artigos 3.º, n.º 1. al. a) e 5.º, n.º 1, ambos do Código de Registo Predial, e ao facto de a ação declarativa n.º 229/13.... ter sido registada em data anterior à da penhora efetuada na presente execução.
Conclui-se, por conseguinte, que tendo a transmissão do direito de propriedade dos bens onerados com hipoteca ocorrido depois de penhorados esses bens, mormente em consequência de ação declarativa registada antes da penhora, neste caso o incidente adequado é o da habilitação do adquirente.
2 – Considerando que o incidente da habilitação foi julgado improcedente e se acabou de concluir que é este o incidente adequado, cumpre revogar a decisão recorrida e conhecer do mérito do incidente.
O artigo 263.º do Código de Processo Civil dispõe que «No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.»
Nos termos da al. b), do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Civil, «Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.»
Não foi deduzida contestação.
Mostra-se provado que ocorreu uma transmissão do direito de propriedade sobre três dos prédios penhorados, sendo a transmitente a executada E..., Ld.ª e a aquirente a empresa C..., Lda., estranha ao presente processo executivo.
Cumpre declarar habilitada a empresa C..., Lda., nos termos requeridos.
*3. [Comentário] a) Importa começar por ter presente os seguintes dados:
-- Em 2006, P constitui uma hipoteca sobre três prédios de E;
-- Em 2017, os prédios foram penhorados numa execução movida em 2015 por B et al. contra E;
-- Depois disso, P reclamou na execução o seu crédito;
-- C reivindicou de E, em acção registada antes da penhora, a propriedade dos imóveis e obteve ganho de causa;
-- P deduziu a habilitação de C no processo executivo;
-- A 1.ª instância entendeu que a habilitação não era o meio apropriado para fazer intervir C no processo executivo; a RC revogou esta decisão.
b) Salvo o devido respeito, a RC não decidiu bem.
Importa começar por referir o disposto no art. 54.º, n.º 2, CPC: se a garantia real incidir sobre bens de um terceiro (ou seja, sobre bens que não pertencem ao executado), a execução deve ser instaurada contra o terceiro ou, em alternativa, contra o terceiro e o devedor.
Voltando ao caso concreto, suponha-se que a propriedade de C sobre os bens hipotecados já estava decidida antes da instauração da execução. Aplicando o disposto no art. 54.º, n.º 2, CPC, a execução poderia ter sido proposta contra C ou contra C e E; se a execução tivesse sido instaurada apenas contra E, poderia obter-se (como, aliás, o acórdão reconhece) a intervenção principal de C.
No caso em análise, a propriedade de C só ficou definida depois da penhora realizada na execução movida contra E, embora como consequência de uma acção instaurada e registada antes da penhora. Pergunta-se: como, através da iniciativa de um credor reclamante, pode vir C a intervir na ação?
Supõe-se que a solução mais intuitiva é admitir que a intervenção de C na acção deve ser feita através do meio que seria utilizado se C, se fosse proprietário no momento da propositura do processo executivo, não tivesse sido demandado em conjunto com o devedor E. Ora, esse meio não pode ser a habilitação (que, naturalmente, não teria qualquer sentido), mas antes a intervenção principal provocada regulada no art. 316.º, n.º 2 (para a intervenção provocada pelo exequente) ou 3, al. a), CPC (para a intervenção provocada pelo réu).
Basta então aplicar esta solução ao caso sub iudice: dado que P, para poder reclamar o seu crédito, necessita da presença de C na execução, o meio para a obter seria a intervenção principal de C (art. 316.º, n.º 2, CPC).
c) A solução que se julga adequada tem as seguintes vantagens:
-- Não aplica o disposto no art. 263.º CPC a uma situação que nada tem de transmissão ou de cessão do direito litigioso;
-- Não atribui relevância à circunstância de a "transmissão" dos prédios para C ter ocorrido depois da penhora; dado que qualquer "transmissão" do bem penhorado é irrelevante na execução por força do disposto no art. 819.º CC, esse momento é necessariamente irrelevante; também por esta razão, falha a aplicação do estabelecido no art. 263.º CPC;
-- Não origina a presença de uma parte habilitada (C) que não só não substitui nenhuma parte presente na acção, como até permanece em litisconsórcio com a parte que supostamente substitui (E).
MTS