"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/04/2023

Jurisprudência 2022 (161)


Regime dos baldios;
conselho directivo; personalidade judiciária*


1. O sumário de RC 28/6/2022 (612/17.3T8ACB.C1) é o seguinte:

I – A constituição originária da assembleia de compartes de um baldio só pode ser levada a efeito por pessoas que possam ser tidas como compartes e somente tendo essa qualidade podem participar na assembleia de compartes e, nesse âmbito, eleger e serem eleitas para os órgãos de administração do baldio.

II – Tendo participado na eleição, e sido eleitos, para os diversos órgãos daquele, no âmbito de aplicação da Lei n.º 68/93, de 4-9, membros que não constavam do caderno de recenseamento eleitoral da respetiva freguesia, tais pessoas não podem ser consideradas como ali moradoras, pelo que não reuniam as qualidades que a lei exigia para serem consideradas como comparte (ser morador na freguesia em causa e, segundo os usos e costumes, ter direito ao uso e fruição do baldio).

III – Sendo o conselho diretivo eleito pela assembleia de compartes e não tendo a respetiva eleição sido validamente efetuada, por nela terem tomado parte pessoas que não o podiam fazer, com eleição de pessoas que eram inelegíveis, ocorre deliberação inexistente, tudo se passando como se não tivesse sido constituído o conselho diretivo, que se apresenta em juízo, pelo lado ativo, em representação do baldio, determinando a absolvição da contraparte da instância, por falta de personalidade e de capacidade judiciária do autor.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como resulta do relatório que antecede, importa decidir se se verifica ou não, a ora referida excepção, o que equivale a averiguar da regularidade da constituição da Assembleia de Compartes dos ... e das deliberações por ela tomadas e consequências daí decorrentes.

Efectivamente, analisando a decisão recorrida, a procedência da invocada excepção não radica em qualquer vício ou falha procedimental na convocação da assembleia constituinte do baldio, mas, ao invés, na invalidade da constituição da assembleia de compartes, com o fundamento em terem participado na respectiva votação pessoas que não possuíam a qualidade de compartes e, por isso, não podiam votar, do que decorre a inexistência da deliberações tomadas em tal assembleia, nos termos que se passam a transcrever:

“(…) Ainda assim, aqui chegados, da conjugação dos sobreditos elementos, entendo que em causa não está uma mera irregularidade da convocação e do funcionamento da Assembleia de Compartes, mas sim um vício endógeno do procedimento prévio relacionado com o próprio recenseamento dos compartes que, nos termos legais, havia que anteceder os trabalhos dessa Assembleia, ou seja, com a definição do universo de compartes, dos membros da comunidade local que iriam constituir a Assembleia de Compartes e com legitimidade para nela participar.

Tendo as reuniões contado com participantes, dirigentes e votantes que não possuíam a qualidade de compartes, esta expressão de vontade colectiva tem-se por juridicamente inexistente para o universo dos compartes, porquanto não traduz a vontade da comunidade local e, por conseguinte, não veicula uma deliberação vinculante emanada do universo dos compartes.

Considerações que valem tanto para a deliberação de institucionalização da constituição da Assembleia de Compartes dos Baldios de S..., como para a eleição dos órgãos de administração dos baldios.

Como decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 23/09/2010 (processo n.º 37/03.8TBRSD.P, disponível em www.dgsi.pt), citado pela ré na contestação, «(…) tanto a personalidade judiciária, como a capacidade judiciária, requerem a constituição válida da pessoa ou da entidade que, em nome da pessoa, figura como parte na lide e a falta de qualquer destes pressupostos de validade de instância conduz ao mesmo resultado, isto é, à absolvição do réu da instância, nos termos do artigo 288.º, n.º 1, alínea c) do Código do Processo Civil. (…)».

A invalidade da constituição da Assembleia de Compartes dos Baldios de ..., entidade que o Conselho Directivo representa em juízo, torna-a juridicamente inexistente e implica a inexistência jurídica das suas alegadas deliberações.

Em consequência dessa inexistência jurídica, a entidade que o autor representa em juízo (a Assembleia de Compartes dos Baldios de ...), não é susceptível de ser parte processual, carecendo assim de personalidade judiciária – artigo 11.º, n.º 1 do Código do Processo Civil.

E o próprio autor «CONSELHO DIRECTIVO DOS BALDIOS DE ...» é órgão que, por não ter sido validamente criado, carece de existência jurídica, não tendo capacidade para estar em juízo, nem lhe assistindo quaisquer poderes de representação, designadamente dos compartes ou da mencionada Assembleia de Compartes dos Baldios de ....

Termos em que, com os fundamentos expostos, julgo procedente a invocada excepção dilatória insuprível de falta de personalidade judiciária da Assembleia de Compartes dos Baldios de ..., entidade que o Conselho Directivo, aqui autor, representa em juízo e, igualmente, a excepção dilatória insuprível de falta de capacidade judiciária do autor, por não ser órgão validamente constituído, não tendo capacidade para estar em juízo e, nessa conformidade, absolvo a ré da presente instância.”.

Desde já adiantando a solução, nada se nos afigura que aponte no sentido da procedência da pretensão do recorrente, sendo, por isso, de manter a decisão recorrida.

Atento o lapso temporal da ocorrência dos factos em apreço, é aplicável à situação sub judice o disposto na Lei 68/93, de 4 de Setembro, designada por “Lei dos Baldios”, (diploma a que pertencerão todos os artigos a seguir citados, sem denominação de origem).

De acordo com o seu artigo 1.º, n.º 1, designam-se por baldios “os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”, entendendo-se esta (cf. seu n.º 2) como “o universo dos compartes”, acrescentando-se no seu n.º 3, que “São compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio”.

Como refere Jaime Gralheiro in Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, a pág.s 10 e 11, com a expressão “comunidade local”, “pretendeu-se dar conteúdo ao conjunto de pessoas que, historicamente, andavam no uso e posse dos baldios e os consideravam como seus, por os terem recebido daqueles que antes deles foram naquele local e que lhes deram semelhante utilização, sendo sua obrigação transmitir tal direito de “todos” aqueles que depois deles viessem.

Esse conjunto (fluído) de pessoas constituíam os “povos” ou “lugares” que, de acordo com a tradição, tinham adstritos à sua economia rural os terrenos incultos, donde retiravam as pastagens, os estrumes, lenhas e outras utilidades”.

Por outro lado, como vimos, a definição de comparte acima referida, exige que se trate de moradores no local, que segundo os usos e costumes têm direito ao uso e fruição do baldio, ainda que “exerçam a actividade “não agrícola noutro local”, assim ficando abrangidos no universo dos compartes as pessoas residentes no local, ainda que exerçam actividade noutro local – cf. autor e ob. cit., a pág. 12.

Do que resulta, acrescenta, que “a qualidade de “comparte” não se herda, nem se transmite por qualquer forma de direito”, radicando a qualidade de comparte em condições ligadas à pessoa, por ser morador ou por exercer no local uma actividade ligada à terra.

Qualidade de compartes que exigia, cf. seu artigo 33.º o recenseamento prévio dos compartes, o qual, em caso de inexistência, devia ser suprido por iniciativa da assembleia de compartes ou por um grupo de 10 membros da comunidade local usualmente reconhecidos como compartes (cf. seu n.º 3) e no caso de total inércia dos interessados, nos termos do seu n.º 6, supre a falta de recenseamento dos compartes o recurso ao recenseamento eleitoral da freguesia em questão, mediante aprovação pela assembleia de compartes em reunião convocada com base nele, mediante convocação efectuada pelo conselho diretivo ou inexistindo este, pela comissão ad hoc a que se refere o seu n.º 7.

Por outro lado, como decorre do artigo 11.º, n.º 1, os baldios são administrados pelos respetivos compartes, se esse for o uso e costume ou assim não sendo, através de órgãos democraticamente eleitos.

Constituindo órgãos de representação, disposição, gestão e fiscalização, a assembleia de compartes, um conselho directivo e uma comissão de fiscalização, cf. n.º 2 deste preceito.

A assembleia de compartes é constituída por todos os compartes – cf. artigo 14.º.

E tem, entre outras, funções eleitorais, cabendo-lhe eleger a mesa, eleger e destituir, os membros do conselho directivo e os membros da comissão de fiscalização, cf. artigos 15.º, n.º 1, al.s a) e b) e 24.º, n. 1.

Ora, de todos estes preceitos, se tem de extrair a conclusão de que a assembleia de compartes só pode ser constituída pelas pessoas que podem ter a qualidade de compartes, estes, tal como definidos no artigo 1.º, n.º 3.

Por outro lado, cf. artigo 15.º, n.º 1, só podem tomar parte nos actos eleitorais e ser eleitos para os órgãos ali referidos, as pessoas que possam ser consideradas como compartes.

Ou seja, só podem eleger e ser eleitos para os órgãos de representação, gestão, disposição e de fiscalização do baldio, quem puder fazer parte da assembleia de compartes, estando vedada tal participação a quem não for comparte.

No caso em apreço, como resulta dos itens 7.º, 9.º e 10.º, dos factos provados, tomaram parte na eleição e foram eleitos, para os órgãos ali mencionados, membros que não constavam do caderno de recenseamento eleitoral da freguesia de ..., pelo que, nos termos expostos não se podem considerar como ali moradores e assim, não reúnem as qualidades que a lei exigia para serem considerados como comparte: ser morador na freguesia em causa e, segundo os usos e costumes, tinham direito ao uso e fruição do baldio.

É certo que, como refere o apelante, actualmente, nos termos do artigo 7.º, da Lei n.º 75/2017, de 17 de Agosto, a assembleia de compartes pode atribuir a qualidade de comparte a cidadão não residente.

Mas, aqui a questão é outra.

Trata-se de aferir da regularidade da constituição originária/constituinte da própria assembleia de compartes, a qual só podia ser constituída por pessoas que, originariamente, reuniam condições para ser tidas como compartes e só tendo essa qualidade podiam participar na assembleia de compartes e nesse âmbito, eleger e serem eleitos para os órgãos que administram o baldio.

Algumas dessas pessoas até podiam ter ligações à localidade, mas como acima referido, a qualidade de comparte não se herda. Ou se possui ou não se possui, em face do que a lei exigia, à época, para se ser comparte, para como tal poder ser considerado.

Em suma, participaram na assembleia de compartes constituinte, pessoas que nela não poderiam ter participado, elegendo e sendo eleitas para os órgãos de administração e representação do baldio, sem ter a qualidade de comparte, o que lhes estava legalmente vedado fazer.

Importa, assim, analisar as consequências daí resultantes.

Nos termos acima transcritos, na decisão recorrida, considerou-se que tal acto acarreta a invalidade da constituição da assembleia de compartes e consequente inexistência jurídica das respectivas deliberações, o que tem como efeito que o autor não pode estar em juízo, na qualidade a que se arroga.

Por sua vez, o recorrente alega que se trata de vícios procedimentais, que acarretam a mera anulabilidade da constituição da assembleia de compartes e deliberações tomadas, por reporte ao disposto no artigo 177.º do Código Civil, citando, em abono da sua tese, decisões proferidas pelo STJ e da Relação de Guimarães, já tendo decorrido o prazo legal para a respectiva arguição.

No Acórdão do STJ, de 09 de Março de 2004, Processo n.º 04B583, disponível no respectivo sítio do itij, efectivamente, considerou-se que a irregularidade da convocatória da assembleia de compartes e da própria assembleia, por motivos procedimentais (no caso em apreço tratava-se da falta de recenseamento dos compartes, que foi suprida pelo recenseamento eleitoral, tendo decorrido a assembleia de compartes e nela tendo sido tomadas deliberações) constitui uma simples anulabilidade, devendo, em tal caso, aplicar-se o disposto no artigo 177.º do Código Civil.

Tese que foi seguida no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 22 de Fevereiro de 2018, Processo n.º 663/13.7TBAMR.G1, disponível no mesmo sítio do anterior, em que, igualmente, se tratava de irregularidade da convocatória para a assembleia de compartes e da própria assembleia (igualmente, por não ter sido organizado o recenseamento provisório dos compartes e assembleia que congregasse os compartes dos três lugares e não uma individualizada para cada um deles).

Mas, no caso em apreço, não se trata de questões procedimentais relativas à convocatória da assembleia de compartes nem da realização da própria assembleia.

Aqui trata-se de “vício/doença congénita” que tem que ver com o facto de terem participado na assembleia de compartes e terem sido eleitas para os órgãos representativos do baldio, pessoas que não o podiam ter feito, por não serem compartes e só estes poderiam participar na dita assembleia e serem eleitos para os órgãos de gestão e administração do baldio.

Na prática, estamos em presença de uma situação equiparada a deliberação de uma sociedade comercial tomada por não sócios, caso em que se trata de deliberação social juridicamente inexistente – cf. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 5.ª Edição, pág.s 443/4.

Nos termos do artigo 21.º, n.º 1, al. h), compete ao conselho directivo do baldio, recorrer a juízo e constituir mandatário para tal.

Como vimos o conselho directivo é eleito pela assembleia de compartes (artigo 15.º, n.º 1, al. b).

Ora, não tendo sido a eleição para tal órgão validamente efectuada, porque nela tomaram parte pessoas que não o podiam fazer e para dele fazer parte, foram eleitas pessoas que eram inelegíveis, estamos em presença de uma deliberação inexistente, tudo se passando como se não tivesse sido constituído o conselho directivo que ora se apresenta em juízo em representação do baldio (cf. item 10.º).

Como se refere no Acórdão do STJ, de 23 de Setembro de 2010, Processo n.º 37/03.8TBRSD.P1, disponível no mesmo sítio dos anteriores (citado na decisão recorrida) “… tanto a personalidade judiciária como a capacidade judiciária requerem a constituição válida da pessoa ou da entidade que em nome da pessoa, figura como parte na lide e a falta de qualquer destes pressupostos de validade de instância conduz ao mesmo resultado, isto é, à absolvição do Réu da instância, nos termos do artº 288.º, n.º 1, al. c), do CPC.

No caso do Conselho Directivo, é necessário que tal órgão exista juridicamente, isto é, tenha sido validamente criado, nos termos legais”.

No caso em apreço, como resulta do anteriormente exposto, tanto a constituição da assembleia de compartes como as deliberações nela tomadas, são juridicamente inexistentes, acarretando a absolvição da instância da ré, tal como considerado na decisão recorrida, que assim se mantém.


3. [Comentário] A RC decidiu bem, pelo que se deixa apenas um comentário complementar.

O art. 21.º, al. h), L Lei n.º 68/93, de 4/9, estabelecia o seguinte: "Compete ao conselho directivo [...] Recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio e submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes". O art. 29.º, n.º 1, al. h), L 75/2017, de 17/8 (actualmente vigente), dispõe que "Compete ao conselho diretivo [...] Em caso de urgência, recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios e submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes".

As disposições são curiosas sob o ponto de vista processual: primeiro é proposta a acção; depois é requerida a ratificação dessa propositura pela assembleia de compartes.

E o que sucede se a assembleia não ratificar a propositura da acção? O caso não encontra uma solução específica no CPC. O disposto no art. 29.º CPC respeita à hipótese em que é o representante da parte que necessita de uma autorização; nos casos acima referidos, essa autorização deve ser concedida à própria parte. Por esta circunstância, a maior proximidade é, ainda assim, com o disposto no art. 19.º, n.º 2, CPC, quando se trate de actos de maior acompanhado sujeitos a autorização. A solução é entender que a falta de ratificação pela assembleia de compartes da propositura da acção pelo conselho directivo constitui uma excepção dilatória inominada (art. 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. e), CPC).

MTS