"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/04/2023

Jurisprudência 2022 (156)


Revista
admissibilidade; decisões interlocutórias


1. O sumário de STJ 14/7/2022 (575/05.8TBCSC-W.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Em regra, não é legalmente admissível recurso de revista do acórdão da Relação que, em conferência, julga improcedente uma reclamação contra despacho do relator que não admite recurso de apelação.

II. A norma do art. 629 nº 2 d) CPC deve ser interpretada de forma restritiva no sentido de que só tem aplicação aos recursos de revista que ponham termo ao processo ou apreciem do mérito da causa, nos termos do art. 671 nº 1 CPC

III. O art. 629 nº 2 d) CPC estatui uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal.

IV. Por isso, a norma do art. 629 nº 2 d) CPC não é aplicável a decisões interlocutórias de natureza adjectiva, mas antes a regra do art. 671 nº 2 b) CPC.

V. A norma do art. 671 nº 1 conjugada com o art. 629 nº 2 d) do CPC, não é materialmente inconstitucional, nomeadamente por violação do art. 20 da CRP.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Problematiza-se na reclamação, não a reapreciação do mérito do acórdão a ela subjacente, mas tão somente a admissibilidade do recurso de revista interposto pela Reclamante do acórdão da Relação de 17/2/2022, decidindo em conferência, confirmou o despacho reclamado.

O despacho reclamado rejeitou o recurso de revista por considerar ser legalmente inadmissível, dado que não tem apoio no art. 671 nº 1 CPC (“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”).

Em contrapartida, objecta a Recorrente/Reclamante dizendo a revista deve ser admitida com fundamento no nº 2 a) do art. 671º e 629 nº 2 d) do CPC e não tendo então indicado o acórdão fundamento, veio nas alegações para a conferência referencia o mesmo.

O art. 652 nº 5 do CPC estatui na alínea b), que do acórdão da conferência pode a parte que se considere prejudicada “recorrer nos termos gerais”.

Significa que a admissão da revista terá que ter o apoio dos arts. 629 nº 2 a), b), c), d) e art. 671 CPC.

Retomando o art. 671 nº 1 CPC a solução do anterior art. 721 CPC/1961, antes da reforma de 2007, o que releva para a admissibilidade da revista é o acórdão da Relação e já não o que tenha sido decidido pela 1ª instância.

Ora, o acórdão da Relação de 17/2/2022 não conheceu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo, pelo que não é admissível recurso de revista.

Neste sentido, por ex., Ac STJ de 19/2/2015 (proc. nº 3175/07), disponível em www dgsi.pt ( “Não cabe recurso de revista de um acórdão da Relação que, por sua vez, indeferiu uma reclamação apresentada contra um despacho de não admissão do recurso de apelação (n.º 1 do art. 671.º do NCPC (2013)”; Ac STJ de 19/12/2021 (proc. nº 2290/09), em www dgsi.pt (“Da decisão de não admissão do recurso de apelação proferida no Tribunal de 1.ª instância cabe reclamação para o Tribunal da Relação, ao abrigo do artigo 643.º do CPC, e, depois, da decisão sobre esta reclamação cabe reclamação para a conferência, ao abrigo do artigo 652.º, n.º 3, do CPC. Do Acórdão proferido pela conferência que confirma a decisão de não admissão do recurso de apelação não cabe, porém, nem reclamação nem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, excepto nos casos em que o recurso é sempre admissível”).

Como do despacho do relator, ao abrigo do art. 643 CPC, cabe reclamação para a conferência, do acórdão nela proferido apenas é admissível recurso de revista ao abrigo dos arts. 671 nº 2 e 629 nº 2 CPC (neste sentido, Cons Abrantes Geraldes, Recursos em processo Civil, 6ª ed., pág. 401), estando afastada a hipótese do art. 673 CPC.

Por isso, importa apurar se o recurso de revista é aqui admissível a coberto dos art. 629 nº 2 d) e 671 nº 2 a) CPC, como pretende a Reclamante.

O art. 629 nº 2 d) estatui – “Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

E o art. 671 nº 2 a) CPC preceitua – “Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objecto de revista nos casos em que o recurso é sempre admissível”.

Conforme se expôs na decisão singular, existem duas orientações doutrinárias quanto à interpretação e aplicação da regra do art. 629 nº 2 d) CPC:

a). Uma tese restritiva – em que o recurso de revista a coberto desta norma só tem aplicação aos recursos de revista que ponham termo ao processo ou apreciem o mérito da causa, nos termos do art. 671 nº 1 CPC (nos casos em que o recurso não é legalmente admissível por razões diversas do valor). Nesta perspectiva, não é admissível o recurso de revista (normal) com fundamento na regra do art. 629 nº 2 d) CPC (contradição entre acórdãos da mesma ou de outra Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental) se não estiverem preenchidos os pressupostos de amissibilidade da revista – regra (art. 671 CPC).

Por isso, a norma do art. 629 nº 2 d) CPC não é aplicável a decisões interlocutórias de natureza adjectiva, mas antes a regra do art. 671 nº 2 b) CPC.

Esta orientação tem sido sustentada pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa (cf anotação ao Ac STJ de 2 de Junho de 2015, Blog do IPPC (IPPC), ao esclarecer que “o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível”. Justifica o ilustre Professor que “há uma (boa) razão de ordem sistemática para se entender que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais (sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação)”, desde logo, porque “se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista “ordinária” nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC”.  Por isso, defende que “a única forma de atribuir algum sentido útil à contradição de julgados das Relações que consta, em sede de revista excecional, do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC é pressupor que a revista “ordinária” não é admissível sempre que se verifique essa mesma contradição”, na medida em que só “nesta base é possível compatibilizar a vigência do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC com a do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC”.

Acrescenta que o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC “estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal”, porque  dada a “exclusão da revista por um critério legal independente da relação do valor da causa com a alçada do tribunal, há que instituir um regime que permita que o STJ possa pronunciar-se (e, nomeadamente, uniformizar jurisprudência) sobre matérias relativas aos procedimentos cautelares e aos processos de jurisdição voluntária”, sendo que é “precisamente essa a função do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC”.

No plano jurisprudencial, seguindo esta interpretação, por exemplo, Ac STJ de 17/11/2015 (proc. nº 3709/12) Ac STJ de 26/11/2019 (proc nº 1320/17), Ac STJ de 14/7/2021 (proc nº 2498/03) Ac STJ de 17/11/2021 (proc nº 5585/19) todos disponíveis em www dgsi.pt.

b) Uma tese ampla - Para esta orientação é admissível a aplicação conjunta do art. 629 nº 2 d) e do art. 671 nº 2 b) CPC, justificada com o elemento literal e a remissão genérica do art. 671 nº 2 a), sendo que só por esta via se garante a intervenção do Supremo para resolver contradições jurisprudências das Relações em questões de direito adjectivo, pois de outra forma ficaria esvaziado o art. 674 nº 1 b) CPC.

Defende esta posição o Cons. Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª ed., pág. 62 e segs.), concluindo do seguinte modo:

Em suma: sem embargo da recorribilidade de qualquer acórdão da Relação, nos casos previstos no art. 629 nº 2 a) e c) independentemente da verificação dos requisitos gerais, a interposição de recursos de revista de acórdãos da Relação sobre decisões interlocutórias de natureza processual, pode ser sustentada:

a) Na verificação de uma contradição com acórdão da Relação, em casos em que, em regra o recurso de revista não seja admissível por razões legais ( art. 629 nº 2 d);

b) Na verificação de uma contradição com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 671 nº 2 b)”.

No plano jurisprudencial, por exemplo, Ac STJ de 12/9/1029 (proc nº 587/17) em www dgsi.pt.

Neste contexto, enquanto na tese restrita o recurso de revista de acórdãos da Relação que incidam sobre decisões interlocutórias de natureza processual com fundamento em contradição jurisprudencial apenas se aplica o regime específico do art. 671 nº 2 b), para a tese ampla esta situação também está abrangida pelo art. 629 nº 2 d) CPC.

Tal como se justificou na decisão reclamada, deve acolher-se a tese restrita, considerando o argumento sistemático e as razões subjacentes às limitações quanto ao terceiro grau de jurisdição, sendo que a norma do art. 629 nº 2 d) não pode ser interpretada atomisticamente, mas sistematicamente, ou seja, em conjugação com a ratio das normas que definem os pressupostos do recurso de revista geral e do recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. arts 671 e 672 do CPC).

A ratio legis do art. 671 nº 1 CPC radica na limitação do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, reservando a sua jurisdição para uma fase do processo em que o objecto tenha sido definitivamente decidido, ou seja, quando se está perante uma decisão final, de natureza material ou processual dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

Como elucida Lopes do Rego (“O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 764), as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”.

Tanto o Tribunal Constitucional, como o Supremo Tribunal de Justiça têm jurisprudência consolidada no sentido de que “a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de actos jurisdicionais”, pelo que “o legislador dispõe de ampla margem de conformação do regime de recursos” (cf., por todos, Acórdão TC nº 361/2018).

Por outro lado, também o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 701/2005  decidiu que “nenhuma norma ou princípio constitucional impõe a obrigatoriedade de recurso para o Supremo, para uniformização de jurisprudência, de todos os acórdãos proferidos pelas Relações; concretamente, nenhuma norma ou princípio constitucional impõe a obrigatoriedade de recurso para o Supremo, para uniformização de jurisprudência, de acórdão da Relação do qual não seja possível recorrer por motivo respeitante à alçada da Relação”.

E ainda o Acórdão nº 159/2019 do Tribunal Constitucional que decidiu “não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), conjugada com o n.º 1 do artigo 671.º, ambos do Código de Processo Civil, conducente ao sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, não é admissível quando não se verifiquem os requisitos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC

Daqui resulta que o art. 671 nº 1, conjugado com o art. 629 nº 2 d) do CPC, na dimensão interpretativa aqui adoptada, não é materialmente inconstitucional, nomeadamente por violação do art. 20 da CRP."

[MTS]