"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/06/2023

"Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!


1. Num acórdão com mais de dez anos e -- importa referi-lo -- ainda anterior ao actual CPC, encontra-se a seguinte afirmação: 

"Ora, "ruínas" é, salvo melhor juízo, uma expressão conclusiva. Havia que alegar o estado concreto da casa para que se pudesse, eventualmente, vir a concluir que ela estava em ruínas. A alegação, com recurso à expressão "ruínas", que se encontra no artigo 4.º da contestação, não nos coloca perante facto algum, pois factos são "as ocorrências concretas da vida real"".

Não há que fazer nenhuma crítica específica à afirmação, porque ela reflectia o espírito do tempo. O que agora importa salientar é que o reforço da distinção entre factos essenciais e factos instrumentais ou probatórios e a introdução dos temas da prova no CPC se destinaram precisamente a alterar o anómalo estado de coisas que aquela afirmação, reflectindo o Zeitgeist, espelhava.

2. Antes do mais, cabe referir que não deixa de soar muito estranho que a expressão "ruinas" possa ser qualificada como uma "expressão conclusiva", um "facto conclusivo" ou um "juízo conclusivo" (todas estas expressões eram utilizadas como sinónimas).

A palavra "ruína" aparece na previsão das regras constantes dos art. 94.º, n.º 4, e 1375.º, n.º 4, CC e a expressão "ruir" na dos art. 492.º, n.º 1, 1225.º, n.º 1, e 1350.º CC (cuja epígrafe é "Ruína de construção").

Sempre se disse que a previsão das regras jurídicas é constituída por factos. A seguir-se a referida orientação (que foi, acima de tudo, uma orientação jurisprudencial), haveria que rectificar a afirmação comum e passar a dizer que as previsões legais podem ser constituídas quer por factos, quer por "factos conclusivos", "juízos conclusivos" ou "expressões conclusivas". 

Não é certamente por acaso que ninguém o disse. Os factos jurídicos são factos com relevância jurídica, mas não são factos desprovidos de qualquer sentido empírico ou valorativo. A linguagem do direito não é "insípida", "inodora" e "incolor".

3. Era por isto que a exclusão do antigo questionário de factos sobre os quais recaía o anátema de serem "factos conclusivos" era inaceitável. Havia uma linguagem legal que era "proibida" nos tribunais (!).

Daí resultava que era precisamente o que, atendendo a uma determinada previsão legal, era essencial saber para o julgamento da causa que não se podia "levar ao questionário". Suponha-se que, por exemplo, era relevante, para a aplicação do disposto no art. 1348.º, n.º 1, CC, determinar se tinha ocorrido um "desmonoramento"; talvez alguém se apressasse a dizer que não se podia quesitar este facto, porque se tratava de um "facto conclusivo". 

Os exemplos poderiam multiplicar-se sem dificuldade. "Enxame de abelhas" (art. 1322.º CC) -- um inaceitável "facto conclusivo", a evitar principalmente quando alguém tivesse sido atacado por um grande e indeterminado número de insectos voadores pertencentes à família da apis mellifera; "emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor" (art. 1346.º CC) -- um infeliz enunciado de "factos conclusivos" no qual apenas se poderia discutir qual dos factos era mais "conclusivo" que o outro.

4. Como é que actualmente se deve analisar a alegação de que um prédio se encontra em "ruína" ou em "perigo de ruir"?

Não naturalmente na perspectiva de que se trata da alegação de um "facto conclusivo" e, portanto, de um facto cuja alegação está proibida. O que é correcto é entender o seguinte:

-- A alegação de que um prédio está uma "ruína" ou se encontra em "perigo de ruir" (ou de "derrocada") é a alegação de um facto (what else?); se este facto integrar a causa de pedir, trata-se de um facto essencial (art. 5.º, n.º 1, CPC); como facto que é, nada impede que integre os temas da prova;

-- Os factos que, em concreto, demonstram que se está perante uma "ruína" ou que há o "perigo de ruir" são factos instrumentais ou probatórios (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC); a falta da sua alegação na petição inicial não gera nenhuma ineptidão desse articulado, tanto mais que esses factos podem ser adquiridos na instrução da causa.

5. Em suma: perante a alegação de que um imóvel se encontra em "ruína" ou em "perigo de ruir" -- alegação de um facto essencial que não pode deixar de ser admitida --, o que falta é, se o facto for controvertido, a inferência desse facto de um facto instrumental ou probatório. É esta prova que cabe à parte que alegou aquele facto essencial e dela depende se o tribunal pode dar como provado o facto de o imóvel estar em "ruína" ou em "perigo de ruir".

MTS