"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/06/2023

Jurisprudência 2022 (196)


Advogado;
sigilo profissional; levantamento


1. O sumário de 27/10/2022 (2318/19.0T8PTM.E) é o seguinte:

A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da concreta factualidade que se pretende apurar com recurso aos documentos bancários abrangidos pelo segredo profissional, bem como a relevância de tal consulta pela autoridade tributária, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios que permitam alcançar tal desiderato.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A Direção de Finanças de Faro – Autoridade Tributária e Aduaneira intentou ação especial de suprimento, ao abrigo do disposto no artigo 1000.º do Código de Processo Civil e invocando o estatuído no artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, requerendo autorização judicial para aceder às contas bancárias do requerido, relativamente aos anos de 2016 e 2017, de modo a fiscalizar o cumprimento de obrigações tributárias, sustentando que o requerido é advogado e deduziu oposição à consulta de tais elementos com fundamento no dever de sigilo profissional, defendendo a requerente o levantamento de tal segredo profissional e a concessão da pretendida autorização.

Sob a epígrafe Suprimento de consentimento no caso de recusa, dispõe o artigo 1000.º do CPC o seguinte: 1 - Se for pedido o suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite, com o fundamento de recusa, é citado o recusante para contestar. 2 - Deduzindo o citado contestação, é designado dia para a audiência final, depois de concluídas as diligências que haja necessidade de realizar previamente. 3 - Na audiência são ouvidos os interessados e, produzidas as provas que forem admitidas, resolve-se, sendo a resolução transcrita na ata da audiência. 4 - Não havendo contestação, o juiz resolve, depois de obter as informações e esclarecimentos necessários.

Conforme explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, pág. 454), «este processo tem como pressuposto a existência de norma de direito substantivo que permita o suprimento judicial em face da respetiva recusa», sendo que, no caso presente, a requerente invoca o estatuído no artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária.

O artigo 63.º da LGT, com a epígrafe Inspeção, dispõe, no n.º 1, o seguinte: Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamentea) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua atividade ou com a dos demais obrigados fiscais; b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos suscetíveis de esclarecer a sua situação tributária; c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução; d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas; e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais; f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da ação inspetiva. Estabelece o n.º 2 a seguinte ressalva: O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável. [...] Dispõe o n.º 6 o seguinte: Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária.

No caso presente, sendo o requerido advogado e tendo negado a autorização solicitada pela autoridade tributária para acesso a determinados documentos bancários, invocando o dever de sigilo profissional, mostra-se preenchida a previsão do n.º 6 do preceito, nos termos do qual a realização da diligência depende de autorização judicial, com base em pedido fundamentado da administração tributária. [...]

A 1.ª instância considerou legítima a recusa e determinou a remessa dos autos a esta Relação, com invocação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. [...]

O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13-02-2008 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63 (31-03-2008) –, fixou a seguinte jurisprudência: 1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

Extrai-se da análise deste regime, e conforme decorre do citado AUJ, que compete ao tribunal perante o qual a escusa, com fundamento na violação do sigilo profissional, for invocada, apreciar a legitimidade da recusa, averiguando da existência de sigilo. De seguida, caso conclua pela inexistência de sigilo e, assim, pela ilegitimidade da escusa, compete-lhe ordenar a prestação do depoimento; se, pelo contrário, considerar legítima a escusa, por se encontrar matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional.

À luz deste regime, com as adaptações decorrentes de a questão do levantamento do segredo profissional integrar o próprio objeto da ação, nos termos supra expostos, verifica-se que, tendo o tribunal de 1.ª instância considerado legítima a recusa, caberá a esta Relação decidir sobre a quebra do segredo, ouvindo previamente o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

A solicitação desta Relação, o Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de não se dever proceder ao levantamento de sigilo profissional, nos termos e quanto aos factos pedidos, no âmbito do Processo n.º 2318/19.0T8PTM, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos legais para a quebra do mesmo. [...]

Sendo o requerido advogado, cumpre averiguar se os elementos que a autoridade tributária pretende consultar estão ou não sujeitos ao invocado segredo profissional.

Pretende a Direção de Finanças de Faro – Autoridade Tributária e Aduaneira autorização para aceder e consultar as contas bancárias do requerido, relativamente aos anos de 2016 e 2017, com o objetivo de verificar o cumprimento de obrigações tributárias, por entender existirem inícios de terem sido prestados serviços não faturados.

Face à pretensão deduzida, dúvidas não há de que está em causa a consulta de documentos bancários conexos com o exercício pelo requerido da advocacia. [...]

Consta da petição inicial que, na sequência de notificação pessoal para autorização de acesso aos documentos bancários de todas as contas por si detidas, referentes aos movimentos realizados nos exercícios de 2016 e 2017, o requerido negou tal autorização, por comunicação escrita constante do doc. 1 junto com o aludido articulado, com o teor seguinte:

«(…) não autorizo o levantamento do sigilo bancário referente à conta clientes com o n.º (…) do Banco (…), uma vez que a mesma está abrangida pelo sigilo profissional, decorrente das normas deontológicas que regulam a minha atividade enquanto advogado e à conduta de sigilo que as minhas relações profissionais com os clientes obrigam.

Referente à conta que está registada para efeitos de contabilidade organizada n.º (…) do Banco (…), já concedi em momento anterior do presente processo todos os extractos bancários correspondentes aos períodos anuais de 2016 e 2017 sob os quais incide a presente inspeção”.

Estando em causa o acesso a elementos bancários conexos com o exercício pelo requerido da advocacia, com a finalidade de verificar o cumprimento de obrigações tributárias, aferindo da prestação de serviços remunerados não faturados, verifica-se que os documentos que a autoridade tributária pretende consultar se encontram abrangidos pelo segredo profissional.

Neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29-09-2010 (relator: Casimiro Gonçalves), proferido no processo n.º 668/10 (disponível em www.dgsi.pt), no qual se consignou, além do mais, que «(…) as informações bancárias do advogado estarão igualmente abrangidas pelo segredo profissional, pois que, ainda que de forma indirecta, se poderão relacionar com informações bancárias dos clientes e movimentos financeiros em relação aos quais o advogado está obrigado a guardar sigilo». No mesmo sentido, cf. o acórdão da Relação de Guimarães de 26-11-2020 (relator: Afonso Cabral de Andrade), proferido no processo n.º 4033/19.5T8BRG.G1 (disponível em www.dgsi.pt), em que se entendeu que «o acesso à conta bancária de Advogado por parte da AT está protegido pelo segredo profissional consagrado no artigo 92.º do EOA».

Tendo-se concluído que os documentos bancários que a autoridade tributária pretende consultar se encontram abrangidos pelo segredo profissional, impõe-se apreciar se deve ser determinado o levantamento do sigilo.

Decorre do citado artigo 135.º do CPP, cujo regime se mostra aplicável com as necessárias adaptações, que é de admitir o levantamento do segredo profissional sempre que tal se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. [...]

Na situação em apreciação, impõe-se ponderar se o segredo profissional deve ceder perante o interesse público no combate à evasão fiscal, averiguando se existem elementos que justifiquem o acesso da autoridade tributária a documentos bancários sujeitos a sigilo para apuramento da situação tributária do advogado requerido, bem como se tal se mostra imprescindível a tal desiderato.

A apreciação pelo tribunal superior do critério da prevalência do interesse preponderante pressupõe a indicação da concreta factualidade que se pretende apurar com recurso aos documentos bancários abrangidos pelo segredo profissional, bem como a relevância de tal consulta pela autoridade tributária, designadamente decorrente da eventual inexistência de outros meios que permitam alcançar tal desiderato.

Neste sentido, cfr. o acórdão desta Relação de 9-11-2017 (relatora: Isabel Imaginário), proferido no processo n.º 842/11.1TBVNO-B.E1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se entendeu o seguinte: “o dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida”.

No caso presente, a 1.ª instância não realizou quaisquer diligências, nem consignou elementos factuais considerados verificados, o que não permite aferir da relevância da diligência que a autoridade tributária pretende efetuar, nem da imprescindibilidade desta.

Efetivamente, face à omissão da indicação da factualidade considerada verificada, não poderá esta Relação formular qualquer juízo relativamente à existência de elementos que justifiquem o acesso da autoridade tributária a documentos bancários sujeitos a sigilo, nem à inexistência de outras diligências que permitam alcançar idêntico objetivo sem colocar em causa o dever de sigilo profissional, o que impede se considere imprescindível a consulta a todas a contas bancárias na titularidade do requerido.

Assim sendo, não poderá esta Relação considerar verificados os critérios dos quais faz a lei depender o levantamento do sigilo profissional, o qual se não poderá decretar.

No caso presente, mostrando-se inviável, pelos motivos expostos, o preenchimento dos requisitos de que depende o levantamento do sigilo profissional, cumpre indeferir o incidente, o que não impede a eventual dedução de novo incidente devidamente fundamentado, se assim vier a ser entendido."

[MTS]