"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/06/2023

Jurisprudência 2022 (209)


Embargos de executado;
compensação*


1. O sumário de STJ 10/11/2022 (1624/20.5T8LLE-A.E1.S1) é o seguinte:

É possível em embargos de executado deduzir como defesa a compensação do crédito exequendo com um contracrédito, mesmo que este não se encontre documentado em título com força executiva.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II - Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações do recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar se nos embargos de executado pode ser invocada a compensação de um crédito da executada sobre a exequente que não esteja documentado em título com força executiva.

Para o conhecimento desta questão é indiferente a factualidade julgada provada neste processo.


III - O direito aplicável

Perante a pretensão da Executada de, nos embargos à execução, extinguir o crédito exequendo através da sua compensação com um contracrédito de valor superior, cujos factos constitutivos alega nos embargos,  a sentença da 1.ª instância, na sua fundamentação de direito, após referir que não se provou o alegado contracrédito, sem que tenha incluído na lista dos factos não provados aqueles que haviam sido alegados nos embargos e de onde resultava a constituição do contracrédito, acrescentou em obiter dictum que não era possível, em embargos de executado, obter a compensação judicial do crédito exequendose o contracrédito não estivesse dotado de força executiva, como ocorria no caso presente.

Interposto recurso para o Tribunal da Relação, foi proferido acórdão sobre esta questão, que manteve a decisão da 1.ª instância nesta parte, agora com o único fundamento que era inadmissível a defesa por compensação judicial de créditos em embargos de executada, sem que o contracrédito alegado não estivesse documentado de título dotado de força executiva.

É a correção desta posição processual que é colocada em causa no presente recurso de revista e que, por isso, cumpre decidir.

Efetivamente no Código de Processo Civil de 1961 esta questão dividiu as opiniões e a jurisprudência [Esta discussão tem a sua origem no facto de o Código de Processo Civil de 1876, no n.º 8, do seu artigo 912.º, dispor que o executado só poderia embargar a execução ... por compensação líquida, com execução aparelhada, quando admissível nos termos de direito...(sublinhado nosso).].

Na linha do que foi decidido nestes embargos, registava-se uma forte corrente jurisprudencial [Entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.2002, 9.10.2003, 27.11.2003, 21.02.2006, 22.06.2006, 11.07.2006, 14.12.2006, 28.06.2007, 14.03.2013, 12.09.2013, 01.07.2014, 02.06.2015 e 13.07.2017.], com alguns apoios na doutrina [Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, 3.ª ed., Almedina, 1996, pág. 263. No entanto, em sentido contrário, Anselmo de Castro, Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1977, pág. 287-288.], que sustentava, em nome de uma suposta igualdade de tratamento do Exequente e do Executado e da celeridade processual executiva, que a compensação, como forma de extinção do crédito exequendo só podia ser realizada através de embargos de executado, se o contracrédito invocado estivesse documentado em título com força executiva.

Contudo, o Código de Processo Civil de 2013 resolveu legislativamente esta questão (o que não significa que não se continuem a ouvir vozes que não relevam a alteração legislativa ocorrida, quer na doutrina [VIRGÍNIO DA COSTA RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2.ª ed., Almedina, 2016, pág. 236-237, e PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Almedina, 2014, pág. 249-250.], quer na jurisprudência [V.g. Acórdãos da Relação de Évora de 23.11.2017, Proc. 3459/14 (Rel. Isabel Peixoto Imaginário), e de 30.05.2019, Proc. 5432/18 (Rel. Isabel Peixoto Imaginário), da Relação de Lisboa de 29.11.2018, Proc. 24270/16 (Rel. Carlos Marinho), e da Relação de Guimarães de 31.01.2019, Proc. 3003/17 (Rel. Alcides Rodrigues), e de 30.05.2019, Proc. 3584/18 (Rel. Joaquim Boavida).]) ao introduzir expressamente entre as defesas que é possível deduzir a uma execução de sentença “contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos” (alínea h) do artigo 729.º, do Código de Processo Civil), sem que tenha condicionado o contracrédito a compensar à sua documentação em título com força executiva, sendo essa defesa, sem quaisquer condicionantes, por identidade de razão, também possível quando a execução é baseada noutro título (artigo 731.º do Código de Processo Civil) [Neste sentido, LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Gestlegal, 2018, pág. 204, nota 22, LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., Almedina, 2022, pág. 465, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, pág. 88, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, pág. 653, RUI PINTO, A Problemática da Dedução da Compensação no Código de Processo Civil de 2013, acessível em www.acdemia.edu.pt., e  Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, pág. 440, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2019, Proc. 1664/16. (Rel. Bernardo Domingos), de 28.10.2021, Proc. n.º 16/14 (Rel. Maria da Graça Trigo), e de 24.05.2022, Proc. 293/09 (Rel. Oliveira Abreu).].

A necessidade de uma referência expressa à possibilidade de invocar em embargos de executado este meio de defesa extintivo do crédito exequendo deveu-se, à nova qualificação processual que se pretendeu dar à compensação na ação declarativa, no artigo 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Como explicam Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, é que, excedendo a reconvenção a função defensiva dos embargos, a caraterização adjetiva da compensação como reconvenção levaria a negar a sua invocabilidade na dependência da ação executiva, o que seria contrário ao seu regime substantivo [Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, pág. 465.].

E esta nova norma, aditada já na parte terminal do processo legislativo que levou à aprovação de um novo Código, não só teve a virtude de esclarecer que a compensação não deixava de poder ser invocada nos embargos de executado como meio de defesa da pretensão executiva, como, ao fazê-lo, sem quaisquer restrições ou condicionantes, tomou posição na anterior problemática suscitada sobre a necessidade do contracrédito se encontrar suportado por título com força executiva.

Na verdade, não só a exigibilidade judicial do contracrédito, referida no artigo 847.º, n.º 1, a), do Código Civil, não se confunde com o seu reconhecimento judicial, como a sua invocação como meio de defesa apenas tem como finalidade fazer vingar um facto extintivo do crédito exequendo e não executar esse contracrédito, pelo que não valem aqui argumentos de igualdade de armas das partes. E razões de celeridade não se podem sobrepor à admissão de direitos de defesa.

Esta opção encontra-se agora bem expressa na lei, não tendo justificação, no domínio do direito constituído, prolongar a polémica que ocorria no âmbito do Código de Processo Civil de 1961.


*3. [Comentário] O STJ adoptou a única solução que é admissível.

Efectivamente, sobre o devedor não recai nenhum dever material, nem ónus processual de provocar a extinção de um crédito de um seu credor através da compensação com um contracrédito próprio. Portanto, não há nenhum dever de provocar essa extinção fora do processo e também não há nenhum ónus de a provocar, através da dedução do pedido reconvencional (art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC), num processo declarativo. 

Se a omissão da invocação da compensação pelo devedor não é nem um acto ilícito, nem um acto que produza uma preclusão, então nada obsta a que o devedor, quando seja executado, possa invocar um contracrédito para produzir a extinção do crédito exequendo.

MTS