"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/06/2023

Jurisprudência 2022 (205)


Procedimento cautelar;
instrumentalidade


1. O sumário de RE 27/10/2022 (2727/22.7T8FAR-B.E1) é o seguinte:

I – A providência cautelar, requerida como incidente de ação declarativa anteriormente intentada, não configura um meio para acautelar o efeito jurídico dessa ação se visar a obtenção de resultado diverso daquele a que respeita a pretensão nela deduzida, destinando-se a obter a regulação provisória de um direito cuja regulação definitiva não foi peticionada na ação;

II – O procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação declarativa, se as providências requeridas não configuram um meio para acautelar algum efeito jurídico pretendido com a ação, antes consistindo num fim em si mesmas;

III – A falta do vínculo de instrumentalidade relativamente à ação declarativa que constitui o processo principal conduz à manifesta improcedência da pretensão cautelar, o que constitui causa de indeferimento liminar.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O presente procedimento cautelar constitui incidente de ação declarativa intentada anteriormente, movida pela ora requerente contra os ora requeridos, impondo-se averiguar se o procedimento se destina a acautelar o efeito útil dessa ação, aferindo se esta tem por fundamento o direito que a requerente visou acautelar através do procedimento.

Na ação declarativa, a autora pede a condenação dos réus a pagar-lhe determinado montante, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em resultado da violação pelos réus de direitos de personalidade, designadamente do seu direito ao repouso, baseando a pretensão indemnizatória em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.

Através do presente procedimento cautelar, por seu turno, visa a apelante obter a regulação provisória do seu direito ao repouso, requerendo sejam decretadas providências destinadas a fazer cessar a violação de tal direito. Ao requerer se imponha aos requeridos, a título cautelar, que garantam a completa insonorização da fração a partir das 23 horas e que procedam a todas as alterações necessárias a pôr termo ao ruído que constitui fonte de grave perturbação do direito ao repouso da requerente sob pena de multa, além de outras providências não concretamente especificadas visando a mesma finalidade, a apelante pretende evitar a prática de novos factos violadores do seu direito ao repouso, prevenindo a ocorrência de novos danos.

Ora, não poderá considerar-se que tal regulação provisória do direito da requerente ao repouso se destine a acautelar o efeito útil da ação declarativa, dado que nesta não foi peticionada a regulação definitiva desse direito, mas apenas a condenação dos réus ao pagamento de indemnização por danos decorrentes de factos ilícitos violadores daquele direito.

Analisando a pretensão deduzida pela apelante nesta sede cautelar, verifica-se que não respeita à reparação dos danos decorrentes da violação do direito ao repouso ou à eventual garantia da efetividade do direito a tal indemnização, designadamente por via da conservação do património dos devedores, antes visando a cessação da violação ilícita desse direito, o que configura um efeito jurídico diverso do pretendido com a tutela jurisdicional peticionada na ação.

As providências requeridas no presente procedimento, destinando-se a obter a cessação da violação do direito da apelante ao repouso, têm como finalidade a obtenção de resultado diverso daquele a que respeita a pretensão deduzida na ação, visando a regulação provisória de um direito cuja regulação definitiva não foi peticionada no processo principal e não constituindo a antecipação provisória de qualquer efeito jurídico decorrente do pedido nele formulado.

Assim sendo, não poderá considerar-se que as providências requeridas pela apelante configurem um meio para acautelar algum efeito jurídico pretendido com a ação, antes consistindo num fim em si mesmas, o que impõe se conclua, conforme considerou a 1.ª instância, que o presente procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação que constitui o processo principal.

Em anotação ao citado artigo 364.º, António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 422-423) afirmam: “Sem embargo das especificidades resultantes dos casos em que seja decretada a inversão do contencioso (artigo 369.º), é matricial ao procedimento cautelar a relação de dependência e de instrumentalidade relativamente a alguma ação ou execução que vise o reconhecimento ou a satisfação do direito em causa. Não bastará que o procedimento e a ação se baseiem no mesmo direito substantivo abstratamente considerado; a relação de instrumentalidade impõe que o procedimento vise a tutela antecipada ou a conservação do concreto direito cuja efetividade se pretende por via da ação principal. Por isso, o objeto da providência há de ponderar não apenas o direito em causa, mas especialmente a pretensão envolvida na causa principal. Embora não se exija uma perfeita identidade, a providência deve apresentar-se com uma função instrumental relativamente à medida definitiva.” Esclarecem os autores (loc. cit.) que a “falta de um adequado nexo de instrumentalidade levará à improcedência da pretensão cautelar”, acrescentando que se “a ação que for instaurada depois de decretada a providência não respeitar a mesma instrumentalidade, tal poderá determinar a caducidade daquela, atento o disposto no artigo 373.º, n.º 1, alínea a)”.

Assente que o presente procedimento cautelar não é instrumental relativamente à ação declarativa, a falta deste vínculo conduz, pelos motivos expostos, à improcedência da providência.

A decisão recorrida configura despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do CPC, preceito do qual decorre, além do mais, que, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente, sendo certo que, estando em causa um procedimento cautelar, impõe o artigo 226.º, n.º 4, alínea b), a respetiva apresentação a despacho liminar.

Mostrando-se o pedido manifestamente improcedente e determinando o artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que tal vício conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial, mostra-se acertada a decisão recorrida."

[MTS]