"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/06/2023

Jurisprudência 2022 (214)


Impugnação pauliana;
registo; oponibilidade*


1. O sumário de RG 10/11/2022 (2356/17.7T8VNF-A.G1) é o seguinte:

A eventual transmissão do prédio em momento posterior ao registo da ação de impugnação pauliana é inoponível em relação ao ora exequente, em virtude de ter sido assumidamente realizada após o registo da ação de impugnação pauliana que havia sido interposta pelo exequente relativamente ao mesmo prédio.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tal como decorre do preceituado no artigo 342.º, n.º 1, do CPC, os embargos de terceiro constituem um meio processual de oposição contra a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, que se traduza na ofensa da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa.

Mais resulta do confronto entre o preceituado nos artigos 344.º a 348.º e o artigo 350.º, todos do CPC, que os embargos de terceiro podem revestir uma função repressiva ou uma vertente preventiva, pressupondo aqueles a efetiva realização da penhora ou da diligência pretensamente ofensiva do direito do embargante.

Por outro lado, conforme prevê o artigo 601.º do Código Civil (CC), pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios, consistindo a impugnação pauliana num meio conservatório da garantia patrimonial do credor, tal como previsto nos artigos 610.º a 618.º do CC.

Deste modo, a impugnação pauliana consiste na «faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos actos válidos, ou mesmo nulos, celebrados pelos devedores em seu prejuízo» (Cf., Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 857).

Atendendo aos requisitos gerais da impugnação pauliana, tal como previstos nos artigos 610.º e 612.º do CC, «são susceptíveis de impugnação os atos jurídicos - nos quais se incluem os negócios jurídicos unilaterais (como, p. ex. a promessa pública) e os contratos - que envolvam uma diminuição da garantia patrimonial do crédito, que não é senão o património do devedor, entendido como a universalidade de bens susceptíveis de penhora que o constituem (arts. 736.º a 739.º do CPC), sem prejuízo do regime da separação de patrimónios (art. 601.º). (…)

A diminuição da garantia patrimonial do crédito pode verificar-se tanto pela diminuição do ativo, como pelo aumento do passivo (p. ex., com a constituição de obrigações ou de garantias), desde que, em qualquer dos casos e a este respeito, se encontre preenchido o requisito qualitativo previsto na al. b)» (Cf., Gonçalo dos Reis Martins, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 627-628) (do artigo 610.º do CC).

Nos termos do artigo 616.º, n.º 1 do CC, julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

No caso em análise verifica-se que a sentença exequenda condenou a 3.ª ré (JP. -Unipessoal, Limitada) a ver o prédio (que entretanto foi penhorado nos autos principais) restituído à situação anterior à escritura de Compra e Venda de 2007-01-22, fls. 86, Livro 51-A, do Cartório Notarial R. T., deste concelho, entre o 1.º réu e 3.ª ré, bem como condenou e todos os réus, o ora embargante inclusivamente, a verem anulados quaisquer registos e atos dos prédios identificados nesta petição.

Por força do dispositivo da sentença proferida no âmbito do processo n.º 2834/07.6TJVNF, que constitui o título executivo na execução embargada - designadamente na parte em que condenou a 3.ª ré a ver o bem mencionado no articulado 36.º da petição restituído à situação anterior à escritura de Compra e Venda de 2007.01.22, fls. 86, Livro 51-A, do Cartório Notarial R. T., deste concelho, entre o 1.º réu e 3.ª ré; e os réus a verem anulados quaisquer registos e atos dos prédios identificados na correspondente petição -, resulta manifesto que a mesma teve um efeito restitutório do bem ao património do devedor (ali 1.º réu), impondo-se, nessa medida, por força dos efeitos da autoridade do caso julgado a todos os réus, entre os quais o ora embargante, o direito da ora embargada/exequente à restituição do concreto bem imóvel objeto dos presentes embargos ao património do devedor (ora 1.º executado) para aí o poder executar, tal como concretizou através da execução a que os presentes embargos se reportam.

Acresce que a aquisição do prédio que vem invocada pelo ora embargante reporta-se a uma transmissão posterior ao registo da ação de impugnação pauliana instaurada pelo ora exequente/embargado, como tal na pendência daquela ação e num momento em que a respetiva aquisição estava inscrita pela AP. 17 de 2007/01/24 a favor da JP. - Unipessoal, Limitada, por compra a J. F., tal como resulta dos autos.

Ora, tratando-se de transmissão posterior à transmissão inicial, relativamente à qual procedeu a impugnação pauliana que lhe foi deduzida, e verificando-se os requisitos da impugnabilidade relativamente à primeira transmissão, conforme decisão devidamente transitada em julgado, a publicidade do registo permite presumir o conhecimento e, ipso facto, colocar o adquirente de má fé (Cf., Gonçalo dos Reis Martins - Obra citada -, p. 795.).

Daí que se venha entendendo que, se a ação pauliana inicial for registada, sendo esse registo anterior ao da aquisição do subadquirente, o credor que obteve ganho na impugnação pode executar o bem alienado, quaisquer que tenham sido as transmissões que entretanto tenham tido lugar, sem necessidade de prova de má fé (Neste sentido, cf. Gonçalo dos Reis Martins - Obra citada -, p. 795, citando, a propósito, Cura Mariano.).

Deste modo, a eventual transmissão do prédio em momento posterior ao registo da ação de impugnação pauliana é inoponível em relação ao ora exequente, em virtude de ter sido assumidamente realizada após o registo da ação de impugnação pauliana que havia sido interposta pelo exequente relativamente ao mesmo prédio.

Como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de 30-04-2015 (Relatora Helena Melo, p. 11/10.8TCGMR-A.G1, acessível em www.dgsi.pt.): «(…)2. . Como consequência da procedência da impugnação pauliana a venda ou sucessivas vendas são ineficazes relativamente ao credor impugnante que a pode penhorar, ainda que ela se encontre inscrita em nome de outro titular, como se a venda ou vendas não se tivessem efectuadas. 3. . Pelo que, vendido o imóvel objecto de acção de impugnação pauliana numa execução, o registo da acção não é cancelado por decorrência da aplicação do disposto no artº 824º do CC. 4. . Sendo o registo da acção de impugnação anterior ao registo da venda em acção executiva a favor do apelante, tal venda não lhe pode ser oposta. (…)».

Ora, à luz das considerações jurídicas supra expendidas e em face do quadro fáctico apurado nos autos, cumpre concluir, tal como na 1.ª instância, pela improcedência dos embargos de terceiro, nos exatos termos que constam do dispositivo da decisão recorrida, ainda que por fundamentos não integralmente coincidentes." 


*3. [Comentário] A RG decidiu com razoabilidade, mas contra legem.

O caso só se pode considerar bem decidido se se "esquecer" o disposto no muito infeliz art. 5.º, n.º 4, CRegP, dado que, como a terceira embargante adquiriu o imóvel através de uma venda executiva, não é possível afirmar que a agora exequente e a agora embargante adquiriram o imóvel de um transmitente comum. Dito de outra forma: segundo a concepção restrita de terceiros constante daquele artigo, a exequente não poderia invocar o seu registo contra a agora embargante. 

Conforme já houve oportunidade de referir (clicar aqui), é bem possível que, em contraste com o disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, se esteja a formar -- ou mesmo que já se tenha formado -- um costume jurisprudencial contra legem. Se assim é (ou vier a ser), é algo que não pode deixar de se aplaudir.

MTS