"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/06/2023

Jurisprudência 2022 (215)


Divisão de coisa comum;
reconvenção; admissibilidade


1. O sumário de RP 8/11/2022 (5744/20.4T8MTS.P1) é o seguinte:

I - Numa acção de divisão de coisa comum, na qual o réu formula pedido reconvencional para reconhecimento e compensação da sua maior contribuição para a aquisição desse bem, não há uma tramitação idêntica, para a discussão e decisão do objecto de cada um dos pedidos – da acção e da reconvenção – mas elas são complementares e podem ser agregadas, por inexistência de incompatibilidade intrínseca.

II - Não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.

III - Nessa hipótese, os poderes de gestão processual do juiz permitirão definir os termos da tramitação a observar, acolhendo a reconvenção sob a forma de processo comum, definindo o conteúdo dos direitos em litígio e prevenindo a necessidade de instauração de outras acções.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A primeira questão colocada pelo apelante, refere-se à decisão de fixação das quotas dos consortes, que a decisão em crise afirma resultar também do acordo do réu, sendo de metade do direito de propriedade para cada um.

Sendo essa a pretensão da autora, isso equivaleria, nessa parte, a uma confissão do pedido.

Porém, apesar de o réu não ter posto em causa o conteúdo do negócio de que resulta a compropriedade, descrito supra enquanto facto provado, o que se constata é que ele põe em causa que daí resulte necessariamente que a sua quota no direito de propriedade seja equivalente à da autora. Alega que ela deve ser fixada na proporção daquilo que pagou, que refere ter sido o triplo do que pagou a autora.

Assim, em primeiro lugar, não pode dar-se imediatamente por adquirido que as quotas de ambos os consortes sejam iguais.

Por consequência, deve discutir-se sobre se pode ser admitida a pretensão do réu a que a sua quota seja fixada em valor superior. Seguidamente, sendo caso disso e quando for oportuno, deverá decidir-se qual a proporção de cada uma das quotas.

Note-se que, para se discutir a proporção da quota de cada um dos consortes, não carece de ser admitida a reconvenção do réu. Com efeito, dos arts. 925º e 926º, nº 2 do CPC resulta que, desde que impugnadas as quotas indicadas pelo autor, deve o tribunal decidir tal questão, produzidas as provas necessárias.

Assim, de resto tal como entendeu dever fazê-lo o tribunal recorrido, cabe decidir, no âmbito da apreciação do próprio pedido da autora, qual a proporção de cada uma das quotas (sua e do réu).

Sobre esta matéria, o art. 1403º, nº 2 do C. Civil dispõe: “2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”

No caso, tal como resulta da escritura pública de aquisição do imóvel por ambas as partes, a venda foi-lhes feita “em comum e partes iguais”, tendo sido com esse conteúdo que ambos aceitaram o negócio.

É, assim, inequívoco que o direito de propriedade foi adquirido por ambos e em partes iguais, ou seja, adquirindo cada um deles uma quota desse direito quantitativamente igual à do outro.

Esta realidade de forma alguma se altera caso qualquer deles, para satisfação dos custos inerentes à aquisição, tenha aplicado maior ou menor capital próprio nessa função. Isso poderá gerar um direito de crédito de um sobre o outro, mas jamais é apto a alterar a proporção da quota de cada um deles.

Pelo exposto, sem prejuízo de uma fundamentação não inteiramente coincidente, não deixa de confirmar-se a decisão recorrida no respeitante à fixação das quotas de cada um dos sujeitos nesta acção de divisão de coisa comum: são iguais, correspondendo cada uma a metade do direito de propriedade sobre a fracção em causa.

Somos, assim, remetidos para a segunda ordem de questões: sobre se deve aceitar-se nesta causa, por via da admissão do pedido reconvencional deduzido pelo réu, a discussão sobre um eventual crédito do réu sobre a autora, por ter satisfeito em quantidade superior o preço do bem adquirido por ambos, para que uma tal realidade seja levada em conta na divisão a concretizar, designadamente em sede do cálculo das tornas que qualquer deles deva satisfazer ao outro.

Recorde-se que o tribunal rejeitou essa possibilidade por duas razões: não proceder tal pretensão do réu/reconvinte, do mesmo facto de que emerge o pedido da autora; e haver incompatibilidade entre as formas de processo adequadas à apreciação de cada uma das pretensões.

No que respeita ao primeiro obstáculo, só podemos concordar com o apelante.

Com efeito, o facto de que procedem quer a pretensão de divisão (da autora), quer a subsequente pretensão de repartição do produto da divisão em termos não equivalentes (do réu) é o mesmo, embora surja complementado por outros, no caso da pretensão do réu. Esse facto é a compropriedade do imóvel, a que se irá pôr fim. Depois, para se discutir e decidir da pretensão do réu, haverão [sic] se se apurar e apreciar outros factos, designadamente os que alega quanto à diferença assinalável de contribuição para a aquisição do mesmo imóvel. Mas isso não exclui a identidade do facto jurídico de que emerge cada uma das pretensões.

Podemos, pois, considerar preenchido o requisito da al. a) do nº 2 do art. 266º do CPC.

Quanto ao segundo obstáculo, cumpre igualmente discordar da decisão do tribunal a quo, de resto em concordância para com a jurisprudência mais actual, quer do STJ, quer das várias Relações, que o apelante cita com pertinência.

Dispõe o nº 3 do art. 266º do CPC: “Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.” E dispõe o nº 2 do art. 37º: “Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio."

Do regime assim fixado resulta que a reconvenção deve ser admitida ainda que ao pedido do réu corresponda forma de processo diferente, desde que não haja uma manifesta incompatibilidade da tramitação desse pedido e a do autor, e nisso se identifique um interesse relevante ou uma necessidade para a obtenção de uma justa composição do litígio.

No caso, a tramitação da pretensão da autora é meramente a da divisão do imóvel comum, que tenderá a implicar a adjudicação deste a um deles e a composição do quinhão do outro em dinheiro, ou a venda do imóvel, com repartição do capital que isso gerar. A do réu, a montante dessa, é a de que lhe seja reconhecido que contribuiu em medida muito superior para a aquisição do bem a dividir (alega ter pago 475.231,52€, numa proporção de três vezes mais do que pagou a autora – cfr. art. 46º da contestação), devendo ser-lhe reconhecido, a esse título, um crédito sobre a autora, o qual haverá de ser levado em conta nesse momento da adjudicação do imóvel ou da repartição do produto da venda, para que desse acréscimo seja compensado.

Assim, para acomodar ambas as pretensões, e considerando o que até agora já se processou (decisão de indivisibilidade e fixação das quotas) o processo poderá tramitar de seguida sob os termos do processo comum numa fase anterior à da conferência de interessados, para se definir o direito do reconvinte, sendo caso disso; sucessivamente, o processo haverá de tramitar com os termos próprios da acção de divisão de coisa comum, nos termos do disposto no art. 929º do CPC, sem prejuízo de, em momento próprio, em sede de pagamento de tornas ou divisão dos proventos da venda, se levar em conta o que houver de ser decidido quanto ao conteúdo dos direitos de cada um dos consortes.

Ou, segundo o que for entendido pela Sra. Juiz, no exercício dos seus poderes de gestão processual, a opção poderá ser a da realização da conferência de interessados de imediato e, na falta de acordo, fazer tramitar os ulteriores termos da causa como processo comum, para definição dos direitos de cada um dos consortes, mais tarde se procedendo à adjudicação do imóvel à determinação de tornas ou à venda e distribuição do respectivo produto segundo o que for definido quanto àqueles direitos.

De resto, isso mesmo se decidiu no Ac. desta secção do TRP, no acórdão de 27/4/2021 (Proc. nº 5962/20.9T8VNG.P1, em dgsi.pt), subscrito por dois dos juízes desembargadores do presente colectivo: “(…) entendemos poder em ordem a salvaguardar o processado, em obediência a uma visão dúctil do processo civil, que procura, até ao limite, salvaguardar a possibilidade de as partes terem acesso à justiça sem terem que intentar, por questões de índole essencialmente formal, ações sucessivas, dever fazer improceder a exceção dilatória alegada pelo réu.

Donde, os autos devem prosseguir segundo os termos do processo declarativo comum para apuramento dos contributos de cada um dos comproprietários, salvaguardando-se, em sede de gestão processual, a admissibilidade do pedido reconvencional deduzido. Deste modo, pode promover-se uma audiência prévia, para os efeitos do art. 929º, nº 2 do CPC, e, na falta de acordo sobre a adjudicação, proceder à instrução e julgamento em sede de processo comum das questões controvertidas relativas às quotas detidas por cada uma das partes litigantes, analisando as causas de pedir atinentes a estes pedidos de cada um dos comproprietários, e após decisão final sobre esta matéria, fixados os quinhões, promover-se eventualmente a respetiva venda.

Miguel Teixeira de Sousa abordou igualmente esta polémica no seu blog defendendo uma solução que vai ao encontro daquela por nós sufragada (leia-se https://blogippc.blogspot.com/2019/05/jurisprudencia-2019-18.html ).

Por esta via, agora devidamente detalhada, afigura-se-nos possível, ainda que com o ónus da acrescida complexidade processual, compaginar numa só ação a apreciação dos pedidos vertidos no petitório e na contestação, sem que ocorra a prática de atos processuais inconciliáveis, “manifestamente incompatíveis”, logrando-se, então, cumprir princípios processuais fundamentais do nosso Código (vide epígrafe do Título I) no que concerne à garantia de acesso aos tribunais e ao dever, que impende sobre os tribunais, de gestão processual (artigos 2º e 6º do CPC)

Por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse, na medida do possível, em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.”

Vê-se, assim, que não há uma tramitação idêntica, para a discussão e decisão do objecto de cada um dos pedidos – da acção, sob forma de processo especial, e da reconvenção, sob a forma de processo comum – mas que que são complementares e podem ser agregadas, por inexistência de incompatibilidade entre elas. Não há qualquer acto a praticar na tramitação de um dos pedidos que impeça ou torne inviável a realização do objecto da outra pretensão.

Por outro lado, é claro o interesse nessa solução: previne a necessidade de que as partes desenvolvam novo litígio, noutro processo, para o exercício de direitos que aqui podem ser exercidos e decididos de imediato.

Conclui-se, pois, inexistir qualquer obstáculo, existindo pelo contrário conveniência e utilidade, na admissão do pedido reconvencional deduzido pelo réu."

[MTS]