"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2023

Jurisprudência 2022 (216)


Petição inicial;
causa de pedir; ininteligibilidade*


1. O sumário de RL 10/11/2022 (1247/21.1T8AMT.L1-2) é o seguinte:

I - É inepta a Petição Inicial em que o Autor, com vagas e confusas alegações de facto e de direito, ainda que complementadas pelos documentos juntos, peticiona a condenação da Ré a indemnizá-lo, alegando, em suma, que um determinado banco, que veio entretanto a ser adquirido e a fundir-se com aquela, intentou contra si, em 2005, uma execução, fundada no incumprimento de contrato de mútuo com hipoteca do veículo cuja aquisição foi financiada, vindo a ser aí paga a dívida e a exequente a proceder à penhora do veículo, o que configurou um enriquecimento sem causa, tendo aquele sofrido danos, designadamente o da privação do uso do veículo – cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC.

II - Sendo substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender, com o mínimo de rigor, o que poderá ter sucedido na ação executiva, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir, ficando mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado).

III - Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, ante a natureza subsidiária deste instituto.

IV - Para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Sendo evidente, no presente processo, que a Ré não alcançou qual possa ser a causa de pedir, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, incluindo quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º, n.º 3, do CPC). Tão pouco tendo cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).

A única questão a decidir é a de saber se a Petição Inicial é inepta.

No despacho saneador recorrido, teceram-se, na fundamentação, as seguintes considerações (sublinhado nosso):

“Procurando apreciar a questão suscitada, cumpre salientar que ineptidão é um vício de conteúdo da petição inicial, que impede a função conformadora do objeto do processo.
No caso da causa de pedir, no dizer de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Código de Processo Civil Anotado, Volume, 1.º, 4.º edição, Almedina, pág. 373 e seguintes, a ininteligibilidade verifica-se sempre que o pedido não seja a consequência do instituto jurídico alegado na causa de pedir, isto é, que haja oposição entre o pedido e causa de pedir.

Ora, no caso vertente o excesso de penhora no âmbito de uma execução é manifestamente um caso de responsabilidade civil, a qual poderá ser simultaneamente do exequente (art. 819.º do CPC 2013), do agente de execução, ou até do Estado, por falta de controlo da execução, neste sentido, Ac. TRC de 13.05.2014, relatado por Inês Moura, Ac. RL de 09.07.2015, relatado por Ezaguy Martins, disponíveis em http://www.dgsi.pt.

O tribunal competente será o do lugar onde o processo de execução teve lugar e não o da sede da antiga exequente, carecendo de ser alegados os requisitos da responsabilidade civil previstos no art. 483.º do Cód. Civil.

Ora, caso vertente foram deduzidos pedidos próprios de uma obrigação de indemnização (art. 562.º do Cód. Civil), quando no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, o único pedido admissível é o da restituição do valor do empobrecimento, nos termos dos art. 473.º, n. 2 e art. 479.º, ambos do Cód. Civil, vg. Ac. TRC de 20.10.2015, relatado por Maria João Areias e disponível em http://www.dgsi.pt.

Logo, existe uma incompatibilidade entre a causa de pedir invocada (enriquecimento sem causa), e os pedidos invocados, pelo que se verifica uma ininteligibilidade da causa de pedir e uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, que impede a definição do objeto do processo e o prosseguimento da causa.

Neste conspecto, note-se que apesar de o Autor considerar que a Ré compreendeu a petição inicial, é notório a dificuldade da mesma em compreender o valor do excesso de penhora (não alegado), a sua relação com a medida do empobrecimento, e qual a conduta que lhe é concretamente imputada a si ou aos seus representantes na execução (não alegada), pelo que não poderemos deixar de considerar que o Autor alegou uma causa de pedir incompatível com os pedidos formulados, e que o Réu não a compreendeu adequadamente.

Afigura-se deste modo, que ocorre uma ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade e contradição entre a causa de pedir e o pedido, a qual é geradora de nulidade de todo o processo.

Neste conspecto, afigura-se-nos que o Autor deverá aproveitar o despacho como uma oportunidade, para estruturar novamente a sua causa de pedir, propondo a ação no tribunal competente e concretizando precisamente os fundamentos da causa de pedir, enquadrando os requisitos da responsabilidade civil, as datas e valores das penhoras, onde existiu excesso, alegando o motivo pelo qual o direito não se encontra prescrito (art. 482.º e 498.º, n.º 1 e 4 CPC), entre outros formulando os pedidos agora apresentados, e deduzindo subsidiariamente, o pedido de enriquecimento sem causa, pelo valor do empobrecimento, sob pena de improcedência por se demonstrar que poderia ter obtido a sua pretensão de outro modo, atento a natureza subsidiária do instituto invocado, nos termos do art. 474.º do Cód. Civil.”

Vejamos.

A nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória nominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição dos réus da instância - cf. artigos 186.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. b), todos do CPC.

Nos termos do art. 186.º, n.ºs 1 e 2, do CPC da petição, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, sendo inepta a petição “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

De forma sintética, e tendo presente o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 3 e 4, do CPC, podemos dizer que o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter e a causa de pedir corresponde ao conjunto de factos jurídicos/factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão, o que significa que o autor deve concretizar os factos em que baseia a sua pretensão, em termos inteligíveis, não sendo suficiente o apelo a conclusões jurídicas, conceitos legais ou a invocação do direito sem indicação da sua origem. De referir que o conceito de causa de pedir acolhido no art. 186.º do CPC se reporta a um conjunto de factos essenciais, nucleares ou principais, não abrangendo os factos que, embora essenciais (em sentido amplo), são complementares ou concretizadores daqueles.

No tocante à falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, lembramos, pela sua notável clareza, as palavras de Alberto dos Reis, no seu “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 371-372 (anotação ao art. 193.º do Código então vigente), obra que, nesta parte, mantém plena atualidade. Explicava este autor que, tal como sucedia quanto à nulidade por “desconhecimento do pedido”, esta outra nulidade “pode cometer-se:

1) Por omissão;
2) Por obscuridade.

Com efeito, podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir.

Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão: é o caso de a petição omissa quanto ao pedido ou à causa de pedir; mas aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucedeu é que a acção naufraga.

(…) Por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descabam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito”.

Efetivamente, nem sempre é fácil distinguir uma petição inepta, por falta de causa de pedir, de uma petição deficiente, por insuficiência na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, somente no primeiro caso sendo aplicável o disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC, com a consequente nulidade de todo o processo. [...]

Também Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 379-380, se referia à posição do réu perante uma petição inepta por “desconhecimento da causa de pedir”, referindo que a jurisprudência das cautelas aconselhava a que não se limitasse a arguir a ineptidão, para não correr o risco de ficar sem defesa se a arguição viesse a ser julgada improcedente; afirmava que o juiz não podia deferir a arguição de ineptidão sem ouvir previamente o autor, porque “pode suceder que o réu tenha dado à petição o seu verdadeiro sentido, e em tal caso não há motivo para o tribunal a considerar inepta. Se, apesar da obscuridade ou ambiguidade do pedido ou da causa de pedir, o réu pôde elaborar a sua contestação, isso quer dizer que lhe foi possível interpretar de certa maneira o pedido ou a causa de pedir; tudo está agora em saber se a interpretação dada pelo réu é exacta ou, noutros termos, se o sentido atribuído ao pedido ou à causa de pedir corresponde fielmente àquilo que o autor quis exprimir.

Em caso afirmativo, o juiz deve indeferir a arguição do réu; em caso negativo, deve deferi-la. Na verdade, se, ouvido o autor, este declarar que a sua petição tem o sentido que o réu lhe atribuiu, a obscuridade ou confusão fica desfeita. O pedido ou a causa de pedir passará a ter, por acordo das partes, a significação e o alcance expresso na contestação. Se, pelo contrário, o réu tiver atribuído à petição sentido diferente do que o autor quis exprimir, a ineptidão torna-se inevitável”.

Portanto, para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Com efeito, constituiria ato inútil, em ostensiva violação do princípio da limitação dos atos (cf. art. 130.º do CPC), a realização pelo Tribunal de atos de instrução para depois proferir uma decisão de mérito, concluindo pela improcedência da ação em virtude da falta de alegação e prova de factos constitutivos do direito do autor (cf. artigos 5.º, n.º 1, 410.º e 411.º do CPC e art. 342.º do CC).

Quanto à contradição entre o pedido e a causa de pedir, continuamos a recordar as palavras de Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 380-381: “a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado duma conclusão; a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão.

A petição inicial, para ser uma peça bem elaborada e construída, deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). O autor, ao preparar e organizar a petição, há-de raciocinar como raciocinará mais tarde o juiz, na sentença, para julgar procedente a acção. O esqueleto da petição terá de ser forçosamente um silogismo, sob pena de não poder desempenhar convenientemente a função que lhe é própria. Não quer isto dizer, é claro, que o silogismo apareça explicitamente enunciado no articulado; o que pretendemos significar é que, se a petição não puder transformar-se, em substância, num silogismo, se não tiver sido concebida e elaborada sobre a base dum silogismo mentalmente formulado, há-de ser fatalmente uma peça infeliz e comprometedora.

Pois bem. É da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada.

Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir.”

Há agora que transpor estas considerações para o caso dos autos, atentando na Petição Inicial, tendo presente que na sua interpretação, como das demais decisões judiciais, são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, as regras da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos artigos 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado. De referir ainda a relevância de que se revestem os documentos juntos pelas partes, não apenas no plano probatório, mas também para clarificar o sentido das alegações feitas nos articulados, podendo servir para colmatar algumas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, conforme vem sendo pacificamente aceite pela jurisprudência – neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 07-11-2019, proferido na Revista n.º 6414/16.7T8VIS.C1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, mormente a seguinte passagem do respetivo sumário: “I - A remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos que sustentam o pedido.”

O Autor, de forma pouco clara, mas ainda assim inteligível, peticiona a condenação da Ré no pagamento de pagamento de indemnização por alegados danos patrimoniais e morais, incluindo o atinente à “privação do uso do veículo” de que é proprietário. Mas, desde já adiantamos, que não logramos descortinar qual possa ser a respetiva causa de pedir (nem identificamos causas de pedir subsidiárias), ou seja, quais os factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão. Aliás, mesmo as razões de direito invocadas como fundamento da ação estão expostas de forma confusa, com a citação de alguns artigos do Código Civil que dizem respeito a diferentes institutos, desde o enriquecimento sem causa (a que é dado maior destaque), ao cumprimento de obrigações e à restituição do respetivo título, e ainda à responsabilidade civil extracontratual.

Parece, é certo, que o Autor se pretende prevalecer daquele instituto, que se encontra consagrado nos artigos 473.º a 482.º do CC. [...] 

Mais lembramos que a natureza subsidiária da obrigação de restituir se encontra expressamente prevista na lei, dispondo o art. 474.º do CC, que “(N)ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.” [...]

Atentando no que é alegado na Petição Inicial, não vislumbramos, nem, aliás, a Ré o descortinou, que possa ter existido uma qualquer situação propiciadora do enriquecimento desta, pois que não foi alegado que, na pendência da aludida ação executiva movida pelo Interbanco, S.A., a Ré chegou a assumir a posição de exequente e tivesse recebido qualquer quantia ou que a então exequente tivesse recebido algo mais para além da quantia exequenda. Note-se, que a Ré, na sua Contestação, na parte em que invoca a exceção de ilegitimidade, até alega que o contrato de financiamento foi cedido à Fénix Cartera SARL por contrato celebrado a 22-12-2007, nada tendo sido alegado, por qualquer uma das partes, que permita configurar um enriquecimento injustificado da Ré, designadamente que esta beneficiou de um aumento do ativo patrimonial, de uma diminuição do passivo, do uso ou consumo de coisa alheia ou do exercício de direito alheio, suscetíveis de avaliação pecuniária, de poupança de despesas …

O Autor, porventura para minimizar o risco de ser condenado como litigante de má fé, limitou-se a fazer algumas afirmações vagas e abstratas, alegando, no que ora importa, que o veículo automóvel hipotecado foi indicado à penhora, pela Exequente e que, na sequência das diligências de penhora efetuadas no âmbito daquele processo executivo - sem que tenha alegado que diligências foram essas -, a dívida exequenda ficou satisfeita; mas que, não obstante isso, a Ré “procedeu, ainda, à penhora do veículo que constituía o objeto do contrato de financiamento”.

Ora, esta afirmação é desprovida de sentido e conteúdo útil, não só porque nada foi alegado que permita considerar que a Ré fosse então exequente, mas também porque do próprio requerimento executivo junto pelo Autor resulta ter sido logo nomeado à penhora, como não podia deixar de ser (cf. art. 835.º, n.º 1, do anterior CPC), o veículo hipotecado, pelo que, das duas uma: ou o veículo foi penhorado e vendido e com o produto da venda foi paga (ainda que apenas uma parte) da quantia exequenda - o que não parece ser o caso, já que, se bem se percebe, o Autor continua a considerar-se proprietário do veículo (de cujo uso ficou alegadamente privado); ou o veículo não chegou sequer a ser penhorado.

Seja como for, a penhora nunca podia logicamente, nos termos da lei, ter sido efetuada pela parte, mas apenas pelo Agente de Execução (cf. art. 808.º do anterior CPC), havendo que interpretar o alegado na Petição Inicial (complementada pelos documentos juntos) como querendo significar que a penhora do veículo foi requerida pela então Exequente (que, repete-se, nada indica que seria a ora Ré), mas, na realidade, não chegou a ser efetuada (pelo menos o Autor não alega que o foi e dos documentos que junta nada indica, antes pelo contrário, que tenha sido penhorado o veículo hipotecado).

Assim, a alegação de que a ação executiva serviu para enriquecer a Ré a expensas do Autor constitui uma afirmação puramente conclusiva e genérica, estando a Petição Inicial desprovida de substrato fáctico que nos remeta para a figura do enriquecimento sem causa.

Tão pouco se poderá entender que a pretensão do Autor, a ser indemnizado, esteja fundada em factos subsumíveis à responsabilidade civil, mormente por factos ilícitos. [...]

Atentando na Petição Inicial, é verdade que o Autor invocou danos, mas é também evidente que deixou de alegar os factos essenciais atinentes aos demais pressupostos da responsabilidade civil, designadamente o facto ilícito que a Ré possa ter praticado (por ação ou omissão). De referir que, no desenvolvimento hipotético do que o Autor parece afirmar, tal matéria poderia, quando muito, reportar-se a uma penhora indevida, realizada após integral pagamento da quantia exequenda, o que, conforme bem assinala o Tribunal recorrido, seria passível de configurar um caso de responsabilidade civil, designadamente do exequente, do agente de execução ou até do Estado.

Mas, ante o cariz subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa - que o Autor considera ser aplicável à situação que, de forma tão lacunar e confusa, descreve -, seria substancialmente incompatível alegar, do mesmo passo (e não como causa de pedir subsidiária), para fundar a obrigação pecuniária a que se julga com direito, por um lado, a falta de causa de um suposto enriquecimento da Ré e, por outro lado, uma atuação desta que a teria feito incorrer em responsabilidade civil.

Em conclusão, sendo inócuos e substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender minimamente o que poderá ter sucedido na ação executiva indicada, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir. Pelo menos não logramos discernir qual possa ser, ficando-nos mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado). Por outras palavras, o Autor não alegou, de forma inteligível, os factos essenciais integrantes da causa de pedir, isto é, os factos substantivamente relevantes constitutivos do direito que se arroga, não tendo carreado para os autos matéria fáctica passível de ser subsumida na previsão das normas que enformam o instituto do enriquecimento sem causa ou do regime da responsabilidade civil.

Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, o que o Autor/Apelante continua sem perceber, face às afirmações confusas feitas na sua alegação recursória (designadamente quando afirma que “pretende a restituição/indemnização fundada no instituto do enriquecimento sem causa” e que o “pedido indemnizatório foi equitativo e baseou-se na medida do empobrecimento do Autor alegada na PI”).

E não se diga que a Ré percebeu qual é a causa de pedir, sendo caso para aplicar o disposto no art. 186.º, n.º 3, do CPC. Pelo contrário, é evidente que a Ré não o alcançou, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, designadamente quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, pelo que, na esteira das considerações supra, para as quais remetemos, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.

Finalmente, esclareça-se que nenhuma razão assiste ao Apelante quando aventa a possibilidade de um convite ao aperfeiçoamento da Petição Inicial. Com efeito, resulta claro da lei que não tem cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta, conforme vem sendo afirmado pacificamente pela doutrina e na jurisprudência. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 18-10-2016, no processo n.º 203848/14.2YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário, pelo seu interesse, se passa a citar: “Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al. b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.” Portanto, apesar do carácter vinculado do despacho atinente ao aperfeiçoamento fáctico dos articulados, o mesmo não tem lugar quando o vício da petição inicial seja insanável, sob pena de violação do princípio dispositivo consagrado designadamente nos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem a questão da ineptidão da petição inicial.

Segundo se consegue intuir, parece que teria havido um excesso de penhora no anterior processo executivo, dado que, apesar de ter sido penhorado (e vendido?) o veículo hipotecado, a quantia exequenda teria sido satisfeita por quantias e valores depositados num Banco. 

É claro que, mesmo que venha a ser ultrapassada num outro processo a ineptidão da petição inicial, ainda haverá que tirar as consequências da não invocação do excesso de penhora no processo executivo. Quanto a este aspecto, há que partir do pressuposto de que os meios de defesa do executado não correspondem a meras faculdades que essa parte pode utilizar se quiser (e em alternativa à utilização de meios extraprocessuais), mas antes a verdadeiros ónus causadores de preclusões.

Parafraseando um título célebre, tornado, entretanto, um lugar-comum, há que levar a sério o processo executivo.

MTS