"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/06/2023

Jurisprudência 2022 (198)


Defesa por excepção; impugnação;
preclusão, caso julgado*


1. O sumário de RC 11/1072022 (1640/19.0T8CVL.C1) é o seguinte:

I - Numa acção de simples apreciação negativa, a falta de invocação pelo demandante, na réplica, de factos extintivos do direito cuja existência é alegada pelo demandado na contestação, determina a preclusão da invocação dessa excepção extintiva.

II - Em consequência, provando o réu, numa acção negatória de servidão, ser titular de um direito de servidão constituído por usucapião, está vedado ao autor propor nova acção visando a extinção dessa servidão com fundamento na respectiva desnecessidade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Previamente a apreciarmos o mérito do recurso interposto, por dever de ofício, há que ter presente o sucedido no processo que antecedeu a propositura da presente ação.

Da sentença junta com a petição inicial e do acórdão junto com a contestação, relativos ao Processo n.º 1354/17.5T8CVL.C1, constata-se que os Autores, anteriormente à propositura da presente ação, instauraram contra os Réus uma outra ação declarativa, sob a forma de processo comum, em que pediram que estes fossem condenados a:

1- Reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio sito ao ..., inscrito na matriz sob o art. ...05 da freguesia ..., concelho ..., com as confrontações e limites que exibe o levantamento topográfico junto a fls. 9 verso;

2- A absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam, frustrem ou diminuam o exercício do direito de propriedade dos autores sobre o seu prédio, incluindo o de se absterem de o atravessar, ou de por ele passarem quer a pé, de tractor, ou de camião, e

3 - Pagar aos autores uma indemnização no valor de € 10.340,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais (sendo € 340,00 de patrimoniais e o restante de não patrimoniais), acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento (…).

Após contestação dos Réus, réplica dos Autores e audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, consequentemente, condenou os réus, AA e mulher BB, a:

a) Reconhecer que os autores, II e mulher JJ, são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada.

b) Absterem-se de praticar actos que impeçam, frustrem ou diminuam o direito de propriedade dos autores sobre o prédio acima mencionado, com excepção da passagem nos termos declarados infra.

c) No demais, julga-se improcedente a presente acção absolvendo os réus do peticionado.
 
II- Julga-se parcialmente procedente o pedido dos réus e, consequentemente declara-se que sobre prédio identificado no art.º 1º da factualidade provada se encontra constituída uma servidão de passagem a pé e veículo automóvel, por usucapião, a favor do prédio dos réus, inscrito na matriz sob o art.º ...11º, identificado art.º 5º da factualidade provada e que tem por objeto o caminho mencionado no art.º 11º da factualidade provada;

III- No demais, julga-se não verificada a litigância de má fé absolvendo os autores da indemnização e multa contra si peticionadas.

Desta sentença foi interposto recurso de apelação pelos Autores, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão de 15.1.2019, decidido o seguinte:

Julga-se parcialmente procedente a acção e condenam-se os RR. a:

a) Reconhecer que os AA. são proprietários do prédio identificado no ponto 1 da factualidade provada.

b) Absterem-se de praticar actos que impeçam, frustrem ou diminuam o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima mencionado, com excepção dos actos compreendidos no exercício e extensão da servidão com o conteúdo constante dos pontos 11 a 13 da factualidade provada.

c) Indemnizar os AA. em € 700,00 – sendo € 200,00 a título de danos patrimoniais e € 500,00 a título de danos não patrimoniais – quantia a que acrescem juros legais desde a presente data.

d) No demais, julga-se improcedente a acção, absolvendo os RR. do peticionado.

Em nota de rodapé (32) aposta a esta decisão, o Tribunal da Relação esclareceu o seguinte:

Não se incluindo, como supra se explicou, um qualquer segmento, no trecho decisório, sobre o desfecho do pedido de reconhecimento da servidão (uma vez que os RR. não formularam um qualquer pedido reconvencional); e mantendo-se, claro está (não faz parte do objecto do recurso), a não condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

Na verdade, conforme resulta da fundamentação deste acórdão, entendeu-se que os Réus não haviam formulado qualquer pedido reconvencional no sentido de ser reconhecido um direito de servidão sobre o prédio dos Autores, tendo-se efetuado a seguinte leitura dos articulados das partes:

(...) bem vistas as coisas, a matéria respeitante à servidão de passagem invocada, segundo os AA., às “ocultas” pelos RR., nem será no contexto do litígio dos autos uma verdadeira excepção, uma vez que, na parte respeitante à servidão, o litígio se apresenta como uma acção de simples apreciação negativa, em que os AA., logo da PI, dizem que, embora os RR. queiram e insistam em passar pelo seu prédio, inexiste um qualquer direito de servidão, passando de imediato o ónus da prova da existência de tal direito de servidão aos RR, que, quanto à existência da servidão, passam a ter a posição material de autores, pelo que vir dizer, como os AA/apelantes fazem, que a apreciação e consideração da matéria respeitante à servidão de passagem invocada pelos RR. “consubstancia manifesta violação das regras procedimentais e violação do princípio da igualdade das partes e do princípio do contraditório” é, isso sim, violador do princípio da boa-fé processual, na medida em que na PI, em termos uteis e práticos, interpelam os RR. para demonstrar que têm o direito de servidão de que se arrogam e agora vêm invocar – o que só por sofisma pode ser feito – que correram o risco, por os RR. não terem dito que se defendiam por excepção, de não se aperceber que os RR. invocaram a existência dum direito de servidão. (...)
 
Temos pois que a presente acção – qualificável, na parte mais viva do litígio, como “negatória” de servidão – é uma acção em que compete aos RR./apelados (proprietário do prédio pretensamente dominante) provar o direito de servidão que invocam. (...).

Num pedido de simples apreciação negativa o demandante pede ao tribunal que declare que um determinado direito ou facto jurídico não existe, verificando-se uma situação de inversão das posições das partes, conforme resulta do disposto no art.º 343º, n.º 1, do C. Civil. É ao réu que cabe alegar e demonstrar os factos constitutivos do direito negado, competindo ao autor, na réplica - art.º 584º, n.º 2, do C. P. Civil, impugnar esses factos ou alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, o que equivale à apresentação de defesas por impugnação ou exceção.

Tendo os Réus naquela ação invocado, na contestação apresentada, a constituição de um direito de servição sobre o prédio dos Autores, por usucapião, competia aos Autores, para obstar à prova da existência desse direito, a alegação da sua extinção, por desnecessidade - exceção perentória extintiva.

Os Autores não alegaram esse tipo de defesa na réplica, pelo que a questão da desnecessidade da servidão não foi apreciada naquela ação.

Ora, a força do caso julgado de uma sentença só permite formular contra o direito por ela apreciado e reconhecido, os factos extintivos ou modificativos posteriores ao encerramento da discussão, conforme resulta do disposto no art.º 729º, n.º 2, g), do C. P. Civil.

A segurança jurídica exige que definido judicialmente a existência de um direito, essa existência não possa voltar a ser discutida em nova ação, mediante a alegação de novos factos extintivos do mesmo que, apesar de não terem sido apreciados na primeira ação, já se verificavam no momento em que se encerrou a audiência de discussão e julgamento. Apenas a verificação de factos posteriores a esse momento poderá permitir a reabertura da discussão sobre a existência desse direito.

Este é o efeito preclusivo do caso julgado, em matéria de defesa por alegação de exceção perentória [---]

E numa ação de simples apreciação negativa, em que se verifica uma inversão da posição das partes, quanto ao ónus de alegação e prova, a falta de invocação pelo demandante, na réplica, de determinados factos extintivos do direito cuja existência é alegada pelo demandado na contestação, por identidade de razões, também determina a preclusão da invocação dessa exceção extintiva. Tendo resultado provada a existência do direito em discussão nessa ação, não pode o demandante propor nova ação, visando o reconhecimento da inexistência desse direito, em que a causa de pedir seja constituída por factos extintivos que não aduziu na réplica da primeira ação. Tendo-se concluído pela existência do direito, o que determinou a improcedência do pedido de apreciação negativa, a segurança jurídica impõe que, inexistindo factos supervenientes, essa existência não volte a ser discutida.

É precisamente essa impossibilidade que ocorre com a presente ação, em que se pretende discutir a existência de um direito que já foi reconhecido em ação anterior, com um fundamento que não tendo sido analisado nessa ação, os factos que o integram não são alegados como supervenientes.

Na verdade, na ação anterior entre os mesmos Autores e Réus foi o reconhecimento da existência de um direito de servidão, constituído por usucapião que impediu a procedência de pedido de simples apreciação negativa da existência desse direito.

Nessa ação, não se discutiu, porque tal questão não foi colocada pelos Autores na réplica, a eventual extinção desse direito por desnecessidade do mesmo, pelo que a invocação dessa defesa por exceção, com a prolação da sentença de improcedência do pedido de simples apreciação negativa precludiu,

Assim, não é possível, através da propositura da presente ação, voltar a discutir a existência do direito de servidão, já reconhecida na anterior ação, tendo como fundamento a extinção desse direito, sem que sejam aduzidos factos supervenientes ao encerramento da discussão e julgamento na primeira ação.

Ora, os Autores alegam como causa de pedir da presente ação a possibilidade de acesso ao prédio dos Réus, através de outro prédio destes, que na sua perspetiva formam uma unidade económica, com ligação a dois caminhos públicos.

Não só não se alega que esta situação é superveniente ao termo da audiência de discussão e julgamento da anterior ação, como da análise do anterior processo se constata que essa situação já então se verificava, sem que então tenha sido invocada a extinção do direito de servidão por desnecessidade.

Estamos, pois, perante um caso em que a propositura da presente ação se traduz numa infração ao efeito preclusivo extraprocessual do caso julgado, respeitante às defesas por exceção perentória.

Essa infração é do conhecimento oficioso e impede a apreciação do mérito da presente ação, conduzindo à absolvição da instância dos Réus - art.º 577º, i), e 576.º, n.º 2, do C. P. Civil.

O facto de no despacho saneador proferido na audiência prévia se ter já decidido que não se verificava a exceção do caso julgado formado pela decisão proferida na anterior ação, não impede que agora se considere que a propositura da presente ação infringe o efeito preclusivo daquele caso julgado.

Lendo a fundamentação daquela decisão, constata-se que a mesma, além de ter analisado os reflexos da autoridade do caso julgado na decisão de mérito a proferir, apenas se pronunciou sobre a exceção do caso julgado, na vertente da impossibilidade de repetição de ações, tendo apenas analisado a identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, concluindo que as causas de pedir eram distintas. Tal despacho não se debruçou e, por isso, não decidiu sobre o efeito preclusivo do caso julgado, relativamente à dedução de exceções perentórias, pelo que não é possível afirmar que esse efeito específico do caso julgado já havia sido objeto de decisão anterior transitada em julgado neste processo - caso julgado formal.

Por estas razões, deve, oficiosamente, substituir-se a decisão recorrida, por outra que absolva os Réus da instância, por ofensa do efeito preclusivo do caso julgado, relativamente às defesas por exceção perentória, ficando prejudicado o conhecimento das questões colocadas no recurso interposto pelos Autores."

*3. [Comentário] A RC decidiu bem, embora deva ficar claro que a preclusão reconhecida no acórdão decorre da circunstância de, na anterior acção, não ter sido impugnada pelos autores a servidão de passagem alegada pelos réus.

MTS