Valor extraprocessual das provas;
poder inquisitório do tribunal*
1. O sumário de RP 25/10/2022 (1950/20.3T8VFR.P1) é, na parte ora relevante, o seguinte:
I – Para que as declarações e depoimentos produzidos num processo possam ser utilizados noutro processo contra a parte desfavorecida com essa prova, nos termos do art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, é necessário que, no primeiro processo, tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória e que a utilização decorra da iniciativa da parte interessada em se aproveitar de tal prova.
II – A utilização dessa prova não pode resultar da iniciativa oficiosa do tribunal.
III – As declarações prestadas, nos Serviços do Ministério Público, sem audiência contraditória, no âmbito de um processo administrativo destinado à eventual instauração de processo de maior acompanhado, não podem, por iniciativa do próprio tribunal, ser utilizadas contra a aqui ré em posterior ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge. [...]
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"5. Vejamos então se há fundamento para alterar o decidido no tocante aos pontos factuais impugnados pela ré/recorrente e aqui, para além da prova que oralmente foi produzida em audiência, há que atentar no auto de declarações do falecido autor, constante de fls. 130/131, prestadas em 1.9.2020 nos Serviços do Min. Público da Procuradoria do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, no âmbito de processo administrativo nº 1171/20.5T9VFR destinado à eventual propositura de ação especial de maior acompanhado, cujo conteúdo a Mm.ª Juíza “a quo” relevou, nas suas palavras, de forma muito significativa.
"5. Vejamos então se há fundamento para alterar o decidido no tocante aos pontos factuais impugnados pela ré/recorrente e aqui, para além da prova que oralmente foi produzida em audiência, há que atentar no auto de declarações do falecido autor, constante de fls. 130/131, prestadas em 1.9.2020 nos Serviços do Min. Público da Procuradoria do Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, no âmbito de processo administrativo nº 1171/20.5T9VFR destinado à eventual propositura de ação especial de maior acompanhado, cujo conteúdo a Mm.ª Juíza “a quo” relevou, nas suas palavras, de forma muito significativa.
No entanto, a nosso ver, não o fez de forma acertada.
Com efeito, há que ter em conta o art. 421º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil onde se estatui o seguinte:
«Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 355º do Cód. Civil; se, porém, o regime de produção de prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos só valem no segundo como princípio de prova.»
Exige-se assim que a parte desfavorecida com o resultado probatório tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória, isto é, que a parte tenha sido convocada para os atos de preparação e produção de prova e admitida a neles intervir, independentemente de ter estado efetivamente presente e ter tido intervenção efetiva (art. 415º). Se esse princípio tiver sido violado ou a parte tiver sido revel, a eficácia extraprocessual da prova está excluída – cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 234.
Tal como se exige também que a utilização da prova produzida no outro processo não decorra de iniciativa oficiosa do tribunal, mas sempre e somente de invocação das partes. Ou seja, a parte que se queira aproveitar dessa prova tem de invocar e alegar, no segundo processo, os meios de prova produzidos no primeiro processo – cfr. Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 637. [Cfr. também Ac. Rel. Guimarães de 4.12.2016, proc. 3459/12.0TJVNF-D.G1, relatora Maria Luísa Ramos, disponível in www.dgsi.pt.]
Ora, no caso dos presentes autos, verifica-se que nenhum destes dois requisitos em que se funda a aplicação do disposto no art. 421º do Cód. de Proc. Civil se mostra verificado.
Em primeiro lugar, na tomada de declarações ao autor em 1.9.2020, em que este foi assistido pela sua mandatária, não esteve presente a ré, nem mandatário por si constituído, tal como não resulta que esta tenha sido convocada para estar presente em tal diligência.
Significa isto que as declarações do autor foram produzidas sem a audiência contraditória da ré.
Em segundo lugar, flui também dos autos que o autor, na sua petição inicial, aludiu apenas à instauração do processo administrativo de maior acompanhado – nº 1171/20.5T9VFR -, o qual viria a ser arquivado por despacho de 8.9.2020.
Em nenhum momento posterior vieram os autores habilitados solicitar que fossem tomadas em conta as declarações prestadas pelo falecido autor, em 1.9.2020, no âmbito do referido processo administrativo de maior acompanhado, e que fosse junta a estes autos de divórcio cópia das mesmas.
Essa cópia surge no processo apenas por iniciativa oficiosa do próprio tribunal, conforme decorre do despacho proferido em 7.10.2021. [É o seguinte o texto deste despacho: “Por ora, solicite ao processo identificado a fls. 11v/12 [é o nº 1171/20.5T9VFR] o envio de cópia das declarações do aí requerido. / Para o caso de tais declarações estarem gravadas, solicite permissão de acesso electrónico ao processo, nomeadamente a tais declarações.”]
Porém, tal como já atrás se referiu, a utilização de depoimentos produzidos num outro processo não pode decorrer dessa iniciativa oficiosa, terá antes que ser resultado de invocação e alegação da própria parte, que, neste caso, não ocorreu.
Por conseguinte, o recurso às declarações prestadas nos Serviços do Ministério Público pelo autor falecido, em 1.9.2020, como meio probatório, encontra-se inviabilizado por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Para além disso, há ainda a referir que nos encontramos, de forma evidente, perante declarações que não foram produzidas no âmbito de um processo jurisdicional, mas sim num processo de natureza administrativa, em que se procura obter tão-só um juízo de viabilidade relativamente à eventual propositura de uma ação especial de maior acompanhado.
Situação que, a nosso ver, por ser implícito que os depoimentos e perícias a considerar para os efeitos do art. 421º do Cód. de Proc. Civil devem ser provenientes de processo jurisdicional, é igualmente obstativa da valoração daquelas declarações nos presentes autos, nem sequer como princípio de prova. [Cfr. Ac. Rel. Porto de 15.3.2012, proc. 6584/09.0TBVNG.P1, relatora Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt., referente a um processo de averiguação oficiosa de paternidade.]".
*3. [Comentário] Não deixa de se acompanhar a decisão constante do acórdão, dado que, efectivamente, a prova não foi realizada perante um juiz e não esteve sujeita ao contraditório da ré no actual processo.
No entanto, nada parece obstar a que, com fundamento no princípio do inquisitório estabelecido no art. 411.º CPC, o juiz de um processo possa utilizar a prova produzida num outro processo. Aliás, atendendo a que o juiz pode ordenar que qualquer pessoa seja notificada para depor como testemunha (art. 526.º, n.º 1, CPC), seria estranho que esse mesmo juiz não se pudesse servir de um depoimento realizado por essa mesma testemunha num outro processo.
MTS
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