"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/06/2023

Jurisprudência 2022 (195)


Julgados de paz;
decisões; recurso


1. O sumário de RC 11/10/2022 (68/21.6T8LMG.C1) é o seguinte:

I - A norma do art.º 62.º da Lei n.º 78/2001, de 13/07 (Lei dos Julgados de Paz, na sua versão atual), dispondo que as decisões proferidas por julgado de paz nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso para o tribunal de comarca, constitui lei especial, com regulamentação completa neste âmbito, que prevalece sobre as normas recursivas do NCPCiv. (lei geral), quanto a critérios de admissibilidade de recurso em função do valor e graus de recurso.

II - Não é admissível recurso para a Relação da decisão do tribunal de comarca que julgue recurso interposto de decisão proferida por julgado de paz.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não tem razão – salvo o devido respeito – a parte Recorrente/Reclamante.

A qual, desde logo, continua a afirmar a argumentação anteriormente expendida em tomada de posição prévia, matéria que foi objeto da decisão singular sob reclamação, cujos fundamentos aqui se confirmam.

Assim, fica prejudicada a argumentação agora reafirmada em contrário, nesta parte, pelo Recorrente – designadamente, as consequências que pretende retirar, em matéria de recurso, do caráter subsidiário do CPCiv., tal como a pretensa violação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou da Constituição da República Portuguesa, mormente quanto à garantia do invocado duplo grau de jurisdição –, antes se dando por reproduzidas as razões constantes da fundamentação da decisão aqui reclamada, onde são explicitados – apesar da incompreensão do Reclamante – os motivos da decisão.

Ainda assim, é de vincar que o direito ao recurso não pode ser entendido como irrestrito ou ilimitado – também não o é no âmbito do CPCiv., havendo decisões irrecorríveis, designadamente em função do valor e da sucumbência (Quadro em que, como é sabido, «o legislador visou compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciada por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos tribunais superiores. Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição é susceptível de conferir mais segurança às decisões judiciais, não deve servir para confrontar tribunais superiores de forma massificada» – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 35. E prossegue este Autor (citando Lopes do Rego): «as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”» (op. loc. cits.) –, o mesmo se podendo dizer da garantia do duplo grau de recurso (Ainda segundo Abrantes Geraldes (op. cit., p. 277), «O triplo grau de jurisdição em matéria cível não constitui uma garantia constitucional generalizada», não existindo «obstáculos absolutos à previsão de determinados condicionalismos» àquele triplo grau de jurisdição (ou dupla via de recurso, mediante duas instâncias recursivas), contanto que as soluções legais não sejam «irrazoáveis» ou «desproporcionadas». E acrescenta que a «questão foi já colocada por diversas vezes ao Trib. Constitucional», em diversas matérias, o qual «vem uniformemente entendendo que as normas que, em concreto, limitam o recurso para o Supremo não estão feridas de inconstitucionalidade», o mesmo podendo dizer-se «das regras que restringem o recurso de decisões intercalares e da assunção, como regra geral, da inadmissibilidade de recurso em situações de dupla conforme» (cfr. ps. 277-278). Razões que valem, mutatis mutandis, para o duplo grau de recurso pretendido pelo aqui Recorrente, em causas iniciadas nos Julgados de Paz.).

De salientar também que, nos termos da Lei n.º 78/2001, de 13/07 (sobre a «Organização, competência e funcionamento» dos Julgados de Paz), na sua versão atual, valem neste plano os seguintes «Princípios gerais» (art.º 2.º):

«1- A atuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes.

2 - Os procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.»

Isto é, estes meios de resolução de conflitos, com competência limitada a «questões cujo valor não exceda (euro) 15 000» (art.º 8.º daquela Lei n.º 78/2001), são vocacionados para a solução consensual dos litígios, de forma participada, com procedimentos marcados, em qualquer caso, pela simplicidade, informalidade, oralidade e insuperável economia processual.

Daí que bem se compreenda que, em matéria de recursos – regulada no art.º 62.º do mesmo diploma legal (norma especial) –, apenas se preveja/admita um grau de recurso:

«1 - As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.

2 - O recurso tem efeito meramente devolutivo.»

Assim, longe de haver lacuna ou insuficiência de regulamentação na matéria de recursos em discussão, existe previsão legal específica (fechada) nessa matéria, pelo que não faz sentido invocar o CPCiv., como lei subsidiária, para defender os pretendidos dois graus de recurso (também para a Relação).

Isto é, o legislador, na dita norma especial, previu e regulou de forma completa esta matéria de impugnação recursiva, apenas permitindo o recurso para os tribunais de comarca. Assim, havendo regulamentação completa/esgotante neste âmbito, não faz sentido – salvo o devido respeito – convocar, subsidiariamente, a disciplina recursória do CPCiv., que se direciona a outro tipo de litígios e de decisões (as decisões judiciais), de pleno, aqui, no campo jurisdicional, no âmbito, pois, de processos que não se deixam limitar pelas aludidas ideias dominantes de simplicidade, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.

Bem se compreende, pois, que haja maiores garantias recursivas na esfera das ações judiciais – dito campo jurisdicional – do que no quadro dos «procedimentos nos julgados de paz», mostrando-se «razoável» e «proporcional» que, para litígios com maior simplicidade e menor valor económico, onde prevalecem aqueloutros princípios da informalidade, oralidade e absoluta economia processual, apenas se permita um grau de recurso.

Também por isso, não faria sentido defender possibilidades mais amplas de recurso nos procedimentos nos julgados de paz do que nas ações judiciais, como parece advogar o Recorrente/Reclamante, ao invocar que seria sempre de se admitir recurso para a Relação «de decisões, independentemente do seu valor, que não confirmassem, sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (no caso o Julgado de Paz)» (cfr. conclusão 11.ª).

Ora, nem nas ações judiciais é admissível, por regra, recurso para a Relação independentemente do valor (cfr. art.º 629.º do NCPCiv.), sendo irrazoável, como é de perspetivar, pretender-se uma maior cobertura recursiva, em termos de valor/graus de recurso, do que na órbita dos processos jurisdicionais.

E nem se entenderia, por outro lado, que nos procedimentos decididos nos julgados de paz pudesse haver recurso para a Relação independentemente do critério da sucumbência, que aquele art.º 62.º (lei especial) dispensa, mas que é decisivo para as ações judiciais cíveis, como resulta do disposto no art.º 629.º, n.º 1, do NCPCiv. (norma geral).

Termos em que, inexistindo, no âmbito sob enfoque, qualquer incompletude, irrazoabilidade ou desproporcionalidade na solução plasmada na norma especial do citado art.º 62.º, é de concluir que não resultam postos em causa, mediante a interpretação aqui adotada, quaisquer princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou ditames da nossa Constituição.

Em suma, improcedendo as conclusões do Reclamante, é de sufragar o entendimento plasmado na decisão singular proferida pelo relator (Neste mesmo sentido se pronunciou o recente Ac. TRC de 12/07/2022, Proc. 890/21.3T8LMG-A.C1 (Rel. Alberto Ruço), em www.dgsi.pt, em que foram adjuntos os aqui relator e 1.º adjunto, em cujo sumário pode ler-se: «Tendo sido instaurada a ação em julgado de paz e tendo sido interposto recurso para o tribunal de comarca, a lei não permite um segundo recurso, agora da decisão proferida pelo tribunal de comarca para o tribunal da Relação.».).

[MTS]