"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/06/2023

Jurisprudência 2022 (199)


Rol de testemunhas; falta de indicação;
sanação*


1. O sumário de RC 11/10/2022 (2321/21.0T8VIS-B.C1) é o seguinte:

Em acção de divórcio sem consentimento, na qual o autor não ofereceu rol de testemunhas na petição inicial, terminada a fase dos articulados e não tendo a ré apresentado contestação, era lícito ao juiz convidar o autor a apresentar rol de testemunhas, devendo, no entanto, em obediência ao princípio da igualdade substancial das partes, notificar a ré para, querendo, apresentar também o mencionado rol.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Numa ação de divórcio sem consentimento não contestada, após o juiz ter verificado que não foi apresentada contestação no prazo legal, proferiu despacho a convidar o Autor a apresentar o rol de testemunhas, uma vez que este não constava da petição inicial.

Esse convite foi dirigido, invocando-se o disposto no art.º 590º, n.º 3, do C. P. Civil.

Dispõe este preceito, relativamente ao conteúdo possível de um despacho pré-saneador: o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

A indicação pelas partes dos meios de prova que pretendem que sejam considerados ou produzidos com vista à fixação da matéria de facto provada é um ónus que sobre elas recai, devendo o seu cumprimento, que se encontra na disponibilidade das partes, ser efetuado nos tempos e modos processuais legalmente definidos.

Não sendo obrigatória a apresentação de prova testemunhal, a não inclusão na petição inicial de um rol de testemunhas não constitui uma irregularidade processual, mas sim uma opção do autor, pelo que a invocação do disposto no art.º 590º, n.º 3, do C. P. Civil, para fundamentar o convite formulado, como fez o despacho recorrido, não se mostra adequada.

No entanto, o juiz tem poderes para adaptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa, tendo apenas como limite o respeito pelo modelo do processo equitativo - art.º 547º do C. P. Civil.

Assim, perante uma situação em que, não se encontrando a matéria da ação na disponibilidade das partes e não tendo o Autor apresentado prova testemunhal com a petição inicial e o Réu sequer contestado, não se veem obstáculos a que o juiz, perante um vazio probatório, conceda às partes a oportunidade de, num prazo estabelecido ad hoc, apresentarem prova testemunhal relativa aos factos em discussão na presente ação.

Além disso, em matéria de produção de prova rege o princípio do inquisitório, incumbindo ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer - art.º 411º do C. P. Civil -, pelo que encontra-se abrangido pela generosa amplitude dos poderes do juiz em matéria de prova, face à necessidade de apurar a veracidade de determinados factos e à não indicação de meios de prova pelas partes, a notificação destas para indicarem testemunhas que conheçam a realidade desses factos.

A Ré alega que o despacho recorrido defrauda as suas expetativas, uma vez que, face à petição inicial do A., aos factos por si alegados e ao respetivo requerimento probatório, a Ré definiu a sua estratégia processual de não apresentar contestação, por ter concluído, dessa análise, que seria absolvida da instância, face à falta de prova testemunhal e à impossibilidade de fazer prova dos factos alegados pelo A. na petição inicial através dos documentos por si juntos.

A expetativa invocada não é legítima, uma vez que a Ré, estando representada por advogada, estava consciente que na audiência de julgamento, o juiz sempre poderia determinar a produção de meios de prova, pelo que nunca poderia partir do princípio de que, além dos meios de prova documentais indicados pela Autora, mais nenhuma prova seria produzida. Não sendo a expetativa alegada legítima, a mesma não é idónea a fundamentar a alegação da violação do princípio da proteção da confiança das partes enquanto elemento integrante do modelo do processo equitativo.

Se é legítimo, ao abrigo dos princípios da adequação formal e do inquisitório que o juiz conceda às partes um prazo ad hoc para apresentarem o rol de testemunhas antes de marcar a audiência de julgamento em ação de divórcio sem consentimento não contestada, essa possibilidade deve ser concedida a ambas as partes, sob pena de violação da igualdade de oportunidade das partes, consagrado no art.º 4º do C. P. Civil.

Assim apesar da concessão daquele prazo não ter fundamento válido no dever do juiz conceder oportunidade às partes de corrigirem as irregularidades sanáveis, não deixa de ter fundamento na possibilidade de o juiz adaptar a tramitação processual às especificidades do caso e de oficiosamente determinar a produção de meios de prova relativamente aos factos em discussão, desde que essa oportunidade seja concedida a ambas as partes.

A consequência deste raciocínio não é revogação do despacho recorrido, cujo conteúdo como vimos é admissível, mas sim a extensão do convite à Ré, cumprindo-se o princípio da igualdade de partes."

*3. [Comentário] Não se discorda da solução adoptada no acórdão, embora seja discutível que se trate de um caso de adequação formal. Não há uma adaptação da tramitação processual às especificidades do caso concreto.

A solução encontra maior apoio na aplicação, a fortiori, do disposto no art. 6.º, n.º 2, CPC: se o tribunal pode convidar as partes a sanar a falta de um pressuposto processual, também pode convidar as partes a suprir a violação, por omissão, da lei processual. 

MTS