"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/06/2023

Jurisprudência 2022 (211)


Prova processual;
poder inquisitório; requisitos


1. O sumário de RC 9/11/2022 (242/21.5T8CTB-C.C1) é o seguinte:

I – Apesar de o art.º 411.º do CPC não atribuir ao juiz um poder discricionário, mas sim um poder/dever vinculado cujo exercício está condicionado à verificação dos pressupostos legais – onde se inclui a necessidade da diligência para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio –, deverá ser reconhecida ao juiz uma ampla margem de actuação no que toca ao apuramento dos meios probatórios que considera necessários para formar a sua convicção e para alcançar a verdade e a justa composição do litígio.

II – A “necessidade” da diligência – que actua como pressuposto de exercício daquele poder – não pode ser vista, portanto, como uma necessidade absoluta, mas sim como a necessidade (ou conveniência) que resulte do juízo (subjectivo) do julgador, desde que, em termos objectivos, esse juízo não se evidencie como manifestamente errado.

III – Deve, por isso, entender-se que a falta daquele pressuposto (a necessidade da diligência) – com a consequente ilegalidade da decisão que determinou, oficiosamente, a sua realização – apenas ocorre quando, em termos objectivos, seja manifesta a inutilidade, irrelevância ou desnecessidade da diligência em questão.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em causa no presente recurso o despacho que ordenou oficiosamente a realização de um levantamento topográfico (que se entendeu ser necessário para a boa decisão da causa), determinando que o pagamento dos encargos com tal diligência fosse repartido em igual proporção pela Autora, pela Interveniente principal e pelos Réus.

Em discordância com tal decisão, os Réus interpõem o presente recurso com os seguintes fundamentos:

· Sustentam, em primeiro lugar, que não estavam verificados os pressupostos legais para determinar oficiosamente a realização da diligência em questão; [...]

Analisemos então as questões colocadas.

1. Realização da diligência (levantamento topográfico)

Estando em causa uma diligência cuja realização foi determinada oficiosamente pelo tribunal, importa convocar o disposto no art.º 411.º do CPC, já que é essa disposição legal que permite ao juiz ordenar, oficiosamente, a realização de diligências probatórias.

A citada norma – que consagra uma manifestação do princípio do inquisitório no âmbito da instrução da causa – dispõe nos seguintes termos:

“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

Conforme se referiu na decisão da reclamação que incidiu sobre o despacho que não havia admitido o presente recurso, a norma em causa não confere ao juiz um verdadeiro poder discricionário, na medida em que não lhe atribui verdadeiramente o poder de optar, de acordo com o seu prudente arbítrio, pela realização ou não realização das diligências em causa. Com efeito, uma vez verificado o circunstancialismo ali mencionado (ou seja, a necessidade de determinada diligência para o apuramento da verdade e da justa composição do litígio), a norma em questão parece impor ao juiz o dever de ordenar a sua realização sem lhe dar a possibilidade de actuar em sentido diferente; por outro lado, o poder de ordenar a diligência estará sempre condicionado à verificação dos pressupostos legais. A decisão do juiz (no sentido de ordenar ou não a diligência) mover-se-á, portanto, dentro de critérios de legalidade e não propriamente em função do seu prudente arbítrio. O juiz não tem o poder de ordenar, oficiosamente, a realização de diligências inúteis que não sejam necessárias ou relevantes para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigio, tal como não tem a faculdade de optar pela não realização da diligência que se revele necessária para aquele efeito; o poder de ordenar a diligência estará sempre condicionado ao facto de ela ser necessária (posto que tal necessidade é pressuposto de aplicação da norma em questão) e, caso conclua pela sua necessidade, o juiz não tem a faculdade de optar pela não realização da diligência, tendo, pelo contrário, o dever de determinar a sua realização. É, aliás, com esse sentido – ou seja, com o sentido de um poder-dever vinculado (e não discricionário) do juiz – que a referida norma tem vindo a ser interpretada e aplicada na nossa jurisprudência, como se poderá ver, designadamente, pelo Acórdão do STJ de 18/10/2018 (processo n.º 1295/11.0TBMCN.P1.S2), pelos Acórdãos da Relação do Porto de  24/02/2022 (processo n.º 12897/20.3T8PRT-A.P1) e de 23/04/2020 (processo n.º 6775/19.6T8PRT-A.P1)  e pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 12/11/2020 (processo n. 3102/12.7TBBCL-H.G1) [---].

Está em causa, portanto, um poder-dever que deve ser exercido de acordo com os pressupostos legais e sempre em função do fim para o qual foi previsto: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

Dizem os Apelantes – apoiados num Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 14/05/2020 – que o uso desses poderes está sujeito aos seguintes requisitos:

i) a admissibilidade do meio de prova;

ii) a sua manifestação em momento processualmente adequado;

iii) a necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio; e

iv) a prova a produzir incidir sobre os factos que é lícito ao juiz conhecer.

Concordamos, no geral, com essa alegação que corresponde, aliás, a uma citação de Nuno de Lemos Jorge no artigo “Os problemas Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, publicado na Revista Julgar, n.º 3, 2007.

No caso que analisamos, o requisito ou pressuposto cuja existência é questionada é o da necessidade da diligência ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, sustentando os Apelantes que a diligência em questão não é necessária para a boa decisão da causa, sendo despropositada, desnecessária e irrelevante e que, como tal, não poderia ter sido ordenada.

Vejamos se assim é.

Antes de mais, importará dizer que a necessidade para o apuramento da verdade e justa composição do litígio a que alude a disposição legal acima citada não é – não tem que ser – uma necessidade absoluta em termos de a diligência em questão se revelar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade (designadamente por não existirem outros meios de prova). Tal necessidade terá que ser vista na perspectiva do julgador e, portanto, aquilo que seja útil e relevante para ajudar à formação da sua convicção relativamente aos factos que tem que apreciar e que possa contribuir para tornar mais firme e segura a convicção que possa formar através de outros meios probatórios será sempre algo necessário para a descoberta da verdade e para a justa composição do litígio. E ninguém melhor que o julgador – a quem cabe proferir decisão – está em condições de saber e avaliar os elementos probatórios que melhor o poderão auxiliar a formar a sua convicção (o mais firme e segura quanto possível) no sentido de alcançar a verdade e a justa composição do litígio.

Por isso se admite – cfr. Nuno de Lemos Jorge [Artigo citado, pág. 74.] - que o tribunal tenha “…uma margem relativamente generosa de actuação, na busca da prova necessária ao alcance do conhecimento (prático) da verdade dos factos submetidos a juízo”; que o juiz possa, por regra “…promover diligências instrutórias tendo por base, apenas, a conveniência das mesmas…” e que, por força do seu poder-dever na investigação dos factos “…o juiz deve diligenciar pela prova em função do seu juízo quanto à respectiva necessidade”.

Ainda sobre essa matéria e a propósito do controlo do uso daqueles poderes (questão que se coloca no presente recurso), diz o citado autor [Artigo citado, pág. 76.]:

A desnecessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio só em casos extremos poderá constituir, autonomamente, um fundamento seguro para o recurso da decisão. Só o tribunal sabe da sua necessidade de esclarecimento. Convém lembrar, aliás, que a providência pode parecer útil e revelar-se, afinal, inútil nos seus resultados. Se o juiz pretende ouvir certa testemunha por acreditar que conhece factos relevantes, pode bem suceder que ela os não conheça. Tal circunstância não implica, porém, que não se haja preenchido o requisito da necessidade da diligência para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, uma vez que, como já referi, essa necessidade é potencial (não se afere pelo resultado), devendo a sua utilidade eventual resultar de outros elementos presentes nos autos. Só em casos-limite teóricos poderemos considerar violado aquele requisito. Assim seria, por hipótese, se o tribunal pretendesse inquirir uma testemunha sem que qualquer elemento do processo, designadamente a prova resultante de outras diligências, permitisse, por forma alguma, supor que tal pessoa conhecesse factos relevantes para o processo, ou determinar a realização de uma perícia quanto a factos que, manifestamente, dela não carecessem”.

No caso dos autos, o tribunal justificou a necessidade da diligência que ordenou (um levantamento topográfico) nos seguintes termos:

“…em face da matéria de facto articulada e atendendo aos pedidos formulados pela Autora, que, no essencial, se prendem com o reconhecimento de servidão de passagem a pé, de animais, de meios de transporte rurais e/ou de veículos motorizados constituída a favor do prédio rústico com o artigo matricial ... da secção ... melhor id. em 1.º da petição inicial (aperfeiçoada) e a onerar os prédios rústicos com os artigos matriciais ... e ..., ambos da secção ... melhor descritos em 9.º, al. a) da petição inicial (aperfeiçoada), com a configuração e dimensões do caminho descrito em 15.º a 21.º da petição inicial (aperfeiçoada).; bem como, de outra banda, atento o pedido reconvencional principal deduzido pelos RR., baseado no direito de preferência e invocado encrave do prédio com o artigo matricial ......; e ainda o pedido reconvencional subsidiário, baseado no reconhecimento da extinção da servidão incidente sob o artigo matricial ...... e o novo acesso exclusivo através do artigo matricial ......, ambos melhor descritos em 9.º, al. a) da petição inicial (aperfeiçoada), imprescindível para a boa decisão da causa a realização de um levantamento topográfico, com recurso a coordenadas GPS, tendo por objecto os três referidos prédios rústicos, e ainda os demais alegados na petição inicial como fazendo parte da aludida servidão (v. artigos 3.º e 9.º), tendente à determinação das respectivas áreas e ao apuramento da realidade física existente no local objecto do litígio, a levar a efeito por perito singular a designar pelo tribunal, por forma a permitir, além do mais, perceber as confrontações de cada um dos mencionados prédios rústicos e o(s) caminho(s) existente(s) para aceder ao citado prédio rústico com o artigo matricial ... da secção ..., devendo ficar retratadas simultaneamente em tal levantamento topográfico as versões sufragadas pela Autora e pelos Réus e ainda pela Chamada a tal propósito”. [...]

Parece-nos [...] – tendo em conta as considerações supra efectuadas – ser difícil afirmar que a diligência em causa é desnecessária para a descoberta da verdade e para a justa composição do litígio.

Está em causa nos autos o reconhecimento de uma servidão de passagem com determinadas características (localização, configuração, largura e comprimento) constituída sobre dois prédios dos Réus a favor de um prédio da Autora, sendo que os Réus, apesar de reconhecerem a existência dessa servidão, não aceitam que ela tenha as características que são alegadas pela Autora, pedindo, além do mais, a extinção por desnecessidade da servidão constituída sobre um dos seus prédios.

Foram também incluídas nos temas da prova as seguintes questões: determinar quais os caminhos e condições de acesso ao prédio rústico da Autora; do anterior caminho, do novo percurso e alteração do caminho com a configuração e dimensões mencionados nos artigos 12.º, 52.º a 63.º da contestação-reconvenção (aperfeiçoada) e em que circunstâncias; das condições de utilização do novo caminho, respectivos encargos para os prédios sob os artigos matriciais ...... e ...... e do respectivo proveito / utilidade para o prédio sob o artigo matricial .......

Em face do objecto do litigio e da prova assim definidos, é evidente a importância de conhecer e perceber a realidade física global que existe no local, ou seja, a configuração dos prédios envolvidos, no seu conjunto, os caminhos ou acessos ali existentes (especificamente aqueles que corresponderiam à servidão alegada pela Autora e os que corresponderiam à servidão na perspectiva dos Réus) e as exactas características (configuração, largura, comprimento) de cada um deles e foi isso que se pretendeu com o levantamento topográfico ordenado no despacho recorrido.

Dizem, no entanto, os Apelantes que existe nos autos vasta prova documental (fotografias aéreas, desenhos e gráficos com medições, delimitações, localizações e confrontações, extractos das secções cadastrais com identificação das respectivas áreas) que é suficiente para o apuramento desses factos, sendo, por isso, desnecessária a referida diligência.

Sucede que aquilo que é suficiente para os Apelantes pode não o ser para o julgador e, conforme se disse supra, ninguém melhor do que ele (julgador) saberá aquilo de que necessita para fundar a sua convicção e quais os elementos probatórios que melhor o poderão auxiliar. Por isso se diz (como dissemos supra) que, apesar de não estar em causa um poder discricionário, o tribunal deve gozar de uma margem generosa de actuação no que toca à determinação dos meios probatórios que são necessários para formar a sua convicção relativamente aos factos que lhe cabe conhecer e que, em consequência, o exercício daquele poder apenas deixe de ser admitido quando, em termos objectivos, a diligência seja manifestamente desnecessária.  

Ora, não é isso que aqui acontece.

Ainda que os elementos probatórios que já constam dos autos (a que se reportam os Apelantes) sejam suficientes para o apuramento daqueles factos – o que é, no mínimo, discutível –, a verdade é que o levantamento topográfico ordenado permitirá sempre ter uma melhor percepção e compreensão da realidade física existente, no seu todo, e da posição de cada uma das partes em relação à servidão, além de permitir, com maior facilidade, com maior credibilidade e maior rigor, o exacto apuramento das características da servidão (designadamente, em termos de largura e comprimento) e, portanto, sempre acrescentaria algum apoio e rigor técnico às conclusões que pudessem ser extraídas dos demais documentos juntos aos autos, contribuindo, dessa forma, para reforçar e dar maior segurança ao juízo a formular pelo julgador no processo de formação da sua convicção tendo em vista a procura da verdade e a justa composição do litígio. Nessa medida, a diligência em questão não surge como manifestamente desnecessária, compreendendo-se, por isso, à luz das considerações efectuadas, dentro da “necessidade” que actua como pressuposto do exercício do poder consagrado no citado art.º 411.º e que, como se disse, não tem que ser uma necessidade absoluta, mas sim a necessidade (ou conveniência) que resulte do juízo (subjectivo) do julgador, desde que, em termos objectivos, esse juízo não se evidencie como manifestamente errado por ser evidente a desnecessidade da diligência.  

E não se diga – como dizem os Apelantes – que a diligência em questão é desnecessária porque a inspecção judicial ao local (que oportunamente requereram) permitirá ao Tribunal verificar e apurar todas as questões que constituem o objecto da diligência (apuramento da realidade física existente no local do litígio e extensão, área ou largura dos prédios e dos acessos/passagens existentes). Na verdade, no âmbito dessa diligência, o tribunal não poderá ter a visão/percepção global de toda a realidade (física) que lhe é facultada por um levantamento topográfico, nem fará sentido afirmar que o tribunal possa/deva, no âmbito dessa inspecção, proceder à medição (eventualmente, a fita métrica) de prédios e caminhos/acessos – eventualmente de grande extensão (note-se que a Autora alega que a servidão tem perto de 200m e os Réus falam numa servidão que teria inicialmente cerca de 600m/625m e que, após a alteração do traçado que efectuaram, teria sido reduzida em cerca de 275m) – e que tal medição possa substituir aquela que, com maior rigor técnico, é feita por um perito habilitado para o efeito.

Argumentam também os Apelantes que a diligência em questão não poderia ter sido ordenada por ser manifestamente desproporcionada, tendo em conta que, só a título de pagamento inicial de encargos, ela comporta, desde logo, uma despesa total de cerca de € 1.500,00, quando é certo que o objecto dos autos é uma mera servidão de passagem rural, sem grande expressão económica.

Relativamente a essa alegação, caberá dizer que a proporcionalidade entre o custo da diligência (o valor dos respectivos encargos) e o valor ou utilidade económica do pedido não foi legalmente consagrada como critério de exercício do poder/dever atribuído ao juiz de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências necessárias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio (cfr. citado art.º 411.º). E ainda que em funções de outros princípios – que não valerá a pena aprofundar –, o exercício daquele poder/dever se devesse considerado limitado pela existência daquela desproporcionalidade, sempre teria que estar em causa uma desproporcionalidade evidente e manifesta, o que não acontece na situação dos autos.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que o uso/exercício – por parte do Tribunal recorrido – do poder/dever previsto no citado art.º 411.º (por via do despacho que determinou, oficiosamente, a realização do referido levantamento topográfico) se contém dentro dos respectivos pressupostos legais, pelo que, no que toca a esta questão, improcede o recurso e confirma-se a decisão."

[MTS]