"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/06/2023

Jurisprudência 2022 (208)


Processo executivo;
sucessão no direito; legitimidade activa


1. O sumário de RE 10/11/2022 (1137/18.5T8BJA-A.E1) é o seguinte:

I – Ocorrendo a sucessão na titularidade do direito antes da propositura do processo executivo, e tendo a exequente oportunamente deduzido no requerimento inicial da execução os factos constitutivos da sua própria sucessão na posição do Banco primitivamente credor, os quais demonstrou documentalmente à data da instauração da execução, por via do preceituado no artigo 54.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, a legitimidade da exequente para instaurar a execução de que os presentes embargos constituem apenso, está comprovada, não se justificando recorrer ao incidente de habilitação.

II – Aliás, a sucessão por via da cessão de créditos, está atualmente mais simplificada, uma vez que, com o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que estabelece sobre o regime da cessão de créditos em massa, criou um regime simplificado para a cessão destes créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas.

III – Verificando-se a sucessão subsequente do crédito, a primitiva exequente não deixa de ser parte legítima pela simples celebração do contrato de cessão, mas apenas pela sua substituição na ação executiva em curso. Sendo a substituição que decorre da transmissão ou cessão da coisa litigada uma substituição legal, e própria, o substituto processual pode estar em juízo sem a presença simultânea do titular do direito litigioso, e enquanto o adquirente não intervier na ação (art. 263.º, n.º 1, do CPC).

IV – A existência de um anterior processo executivo, extinto por deserção, não obsta à instauração do presente, ainda que ambos tenham o mesmo objeto, porquanto aquela forma de extinção não afeta a relação jurídica subjacente, nem algo nesse sentido (por exemplo, o pagamento) foi devidamente alegado pelo Embargante.

V – Tendo a Exequente procedido à liquidação da quantia exequenda, cumprindo com o ónus que lhe competia no respetivo requerimento executivo, justificando os valores peticionados, e discriminando os mesmos, a título de capital e juros, e sendo o pagamento um facto extintivo da obrigação, o ónus da sua alegação e prova impende sobre o devedor, in casu, o embargante (cfr. artigo 5.º, n.º 1 do CPC e art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil), que não o cumpriu.

VI – Em face do que dispõe o artigo 752.º, n.º 1, do CPC, em virtude da constituição da hipoteca, e não tendo havido renúncia do exequente à garantia real constituída, o imóvel sobre o qual incide a hipoteca fica especialmente afetado ao cumprimento da obrigação de pagamento do contrato de mútuo que aquela garante. E, sendo do devedor o bem dado em garantia, a opção de a penhora poder recair sobre outros bens não existe, devendo incidir em primeiro lugar sobre o bem hipotecado, só sendo possível penhorar outros bens, subsidiariamente, se vier a verificar-se a insuficiência daquele.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] a sucessão por via da cessão de créditos, conforme a cessionária bem sintetizou como questão prévia ao requerimento apresentado, está atualmente mais simplificada, uma vez que, com o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que estabelece sobre o regime da cessão de créditos em massa, criou-se um regime simplificado para a cessão destes créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas.

De facto, no que à habilitação de cessionário diz respeito, o referido Decreto-Lei estabelece no seu artigo 3.º n.º 1 e 2, que:

“1 - O cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão.
2 - Para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil.”.

O referido diploma legal cria assim um regime simplificado que dispensa o Incidente de Habilitação de Cessionário, a tramitar por apenso, nos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido, bastando a junção aos autos de cópia do contrato que titula a cessão da carteira de créditos, para que se mostre verificada a sua habilitação legal.

Portanto, dúvidas não existem de que tal sucessão havia ocorrido para a exequente e o crédito exequendo se encontrava na sua esfera jurídica, à data em que esta instaurou a execução, sendo consequentemente parte legítima no confronto do título executivo, o contrato de mútuo, com a escritura de cessão do crédito em causa.

Acresce que, por requerimento apresentado em 16.02.2022, veio LX INVESTMENT PARTNERS III S.A.R.L., requerer que fosse habilitada no lugar de HIPOTECA XXXIV LUX, S.A.R.L. para assumir a sua posição processual nos presentes autos, como credora, com as respetivas consequências legais, invocando que, através de escritura pública de cessão de créditos, outorgada a 1 de agosto de 2019, lavrada a fls. 113 a fls. 115 do livro de notas para escrituras diversas n.º 120 – B, do Cartório Notarial de António José Alves Soares, em Lisboa, da qual também é parte integrante o respetivo documento complementar, a exequente cedeu-lhe o crédito em questão, conforme resulta da escritura que juntou como documento n.º 1, e da página do documento complementar onde se encontra mencionada a verba n.º 99, única relevante para os presentes autos.

Após a notificação do Executado, foi proferido o despacho de habilitação a que se alude no relatório supra.

Assim sendo, como é, tendo a exequente, Hipoteca XXXIV, oportunamente deduzido no requerimento inicial da execução os factos constitutivos da sua própria sucessão na posição do Banco primitivamente credor, os quais demonstrou documentalmente, à data da instauração da execução, por via da cessão de créditos anteriormente operada a seu favor e oportunamente alegada no requerimento executivo, a Hipoteca XXXIV era o único sujeito legitimado para propor o processo executivo, dúvidas sérias não podendo existir, e muito menos ainda subsistir no embargante, em face dessa prova documental e do preceituado no artigo 54.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, sobre a legitimidade da exequente para instaurar a execução de que os presentes embargos constituem apenso.

Nesse sentido, J. DE CASTRO MENDES e M. TEIXEIRA DE SOUSA [In Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL EDITORA, Lisboa 2022, pág. 613.] esclarecem que «[s]e a sucessão na titularidade do direito se tiver verificado antes da propositura do processo executivo, o exequente deve alegar, no próprio requerimento executivo, os factos constitutivos da sucessão (art. 54.º, n.º 1, 2.ª parte); nesta hipótese, não se justifica recorrer ao incidente de habilitação, porque a sucessão é alegada no próprio momento da instauração do processo executivo», tal-qual ocorreu no caso em presença.

Acresce que, o embargante declara até expressamente aceitar o vertido no ponto 9 da decisão recorrida, onde consta a menção à transmissão do crédito exequendo, efetuada por escritura pública outorgada em 01.08.2019, mediante a qual foi transmitido o crédito que a Hipoteca XXXIV detinha sobre o executado a LX Investment Partners.

Não obstante, defende – conforme aduziu nas conclusões I) a M) –, que como à data em que deduziu os embargos já se teria operado a admissão do adquirente pelo reconhecimento e aceitação processual da habilitação apresentada, tinha que ser esta e não aquela a exequente.

Salvo o devido respeito, não é assim.

Como vimos, a legitimidade do exequente afere-se aquando da instauração da execução e não dos embargos. A essa data, o simples cotejo das datas das cessões, evidencia que a legitimidade para o efeito pertencia a Hipoteca XXXIV, que não deixa de ser parte legítima pela simples celebração do contrato de cessão, mas apenas pela sua substituição na ação executiva em curso, sendo por isso irrelevante, ao contrário do pretende o Recorrente que essa comunicação não tenha sido de imediato efetuada ao processo e aquela sociedade se tenha mantido como exequente.

Efetivamente, e recorrendo ainda à cristalina explicação dos citados Autores a respeito da sucessão subsequente, ou seja, quando a sucessão se verifica durante a pendência do processo executivo, como aconteceu relativamente à que ora se discute, a regra de que deve promover-se a habilitação dos sucessores do adquirente ou cessionário, que vem prevista no artigo 356.º do CPC, comporta duas exceções. Ora, uma dessas exceções refere-se precisamente «à hipótese de a sucessão ocorrer através da cessão da pretensão exequenda a um terceiro. Nessa hipótese, nada impede a aplicação do regime estabelecido no art. 263.º, n.º 1: o cedente do crédito ocupa, depois da notificação da cessão ao executado (art. 583.º, n.º 1, CC) a posição de substituto processual do cessionário».

Descendo ao caso em presença e à objeção colocada pelo Recorrente, a resposta elucidativa que esclarece o infundado da mesma, é-nos dada seguidamente quando aqueles Autores afiançam que «a finalidade da execução não é o cumprimento voluntário da dívida, mas antes a satisfação coactiva do crédito exequendo, pelo que nada obsta a que as medidas executivas possam ser tomadas com a continuação do cedente em juízo, embora na qualidade de substituto processual do cessionário» [Cfr. Autores e obra citada, págs. 613 e 614.], qualidade que a Hipoteca XXXIV teve e manteve nestes autos após a cessão e até à habilitação da LX Investment Partners.

Para melhor compreensão da razão de ser do regime, louvamo-nos ainda na explicação aduzida sobre a figura da substituição no âmbito do processo declarativo, quando esclarecem que «[a] substituição que decorre da transmissão ou cessão da coisa litigada é uma substituição legal, dado que é por força da lei – em concreto, do disposto no art. 263.º, n.º 1 – que o transmitente ou cedente continua a ter legitimidade para a acção, agora como substituto processual do transmissário ou cessionário. (…) A substituição processual também pode ser própria ou imprópria. A substituição própria é aquela em que o substituto processual pode estar em juízo sem a presença simultânea do titular (ou dos titulares) do direito litigioso. A generalidade das situações de substituição processual corresponde a esta caracterização. São exemplos de substituição processual própria a legitimidade do transmitente do direito ou da coisa litigiosa (que age como substituto processual) enquanto o adquirente (que é a parte substituída) não intervier na acção (art. 263.º, n.º 1).» [Cfr. J. DE CASTRO MENDES e M. TEIXEIRA DE SOUSA, in Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL EDITORA, Lisboa 2022, págs. 336, 338 e 339 (o sublinhado é nosso).].

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões expendidas a este respeito da ilegitimidade da exequente, inexistindo fundamento para a peticionada absolvição da instância."

[MTS]