Reconvenção;
conexão objectiva; admissibilidade
1. O sumário de RG 10/11/2022 (129/21.1T8PBT-A.G1) é o seguinte:
I – Peticionando ao tribunal que declare que as obras executadas pelo réu ocupam uma faixa de terreno público e a condenação deste a deixar o caminho publico livre e desimpedido como se encontrava até à data em que começou a construir a referida obra, visam os AA defender os interesses inerentes ao domínio público de todas as pessoas da comunidade, em que eles se inserem, por estarem, putativamente, impedidas de gozar, na íntegra, das utilidades facultadas pelo dito caminho público.
II – Perante a estrutura que a lei confere à acção popular (Lei n.º 83/95, de 31.08) e configuração oferecida pelos AA. à sua pretensão, carece de fundamento a alegação da falta dos requisitos legais da ação popular.
III – Os limites objectivos, previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 266º do CPC, traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor; na situação da alínea a) o pedido do réu há-de ter por fundamento o acto ou facto base da acção ou da defesa.
IV – Na acção popular civil em que o autor pede a declaração de que que as obra executadas pelo réu ocupam uma faixa de terreno público e a condenação deste a deixar o caminho público livre e desimpedido como se encontrava até à data em que começou a construir a referida obra, não é admissível a dedução de pedido reconvencional em que o réu pretende que o autor o indemnize, por danos patrimoniais e não patrimoniais, que lhe foram causados em função do comportamento do autor, espoletados com a propositura dessa mesma acção e de uma outra acção judicial.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"2. Da (ina)admissibilidade do pedido reconvencional formulado sob a al. e).
Na sequência da prolação do despacho saneador, o Mm.º Juiz “a quo” admitiu a reconvenção deduzida pelo R. quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) a d) do petitório, mas não quanto ao pedido reconvencional (indemnizatório) deduzido sob a al. e).
Através deste pedido reconvencional pretende o Réu/reconvinte a condenação dos AA./reconvindos a [e)] “[p]agarem indemnização que se relega para execução de Sentença”.
O apelante discorda do assim decidido na parte em que foi rejeitada essa pretensão reconvencional, aduzindo para o efeito ter alegado «nos artigos 158 a 171 da reconvenção, (…), que sofre e vai sofrer danos patrimoniais e morais que relega para execução de sentença, pois a presente ação, não mais é do que a continuação da perseguição obsessora dos recorridos com a defesa dos seus interesses pessoais”, sendo “lícito e expectável que o recorrente, em matéria de defesa do seu direito de propriedade privada, formule pedido de sentido contrário ao dos recorridos e cumulado com pedido de indemnização pelos danos patrimoniais e morais sofridos e que vai continuar a sofrer com a presente ação”.
Vejamos se lhe assiste razão. [...]
Interessam-nos os requisitos de ordem material, os quais constam do n.º 2 do art. 266.º do CPC.
Prevê o citado normativo que “a reconvenção é admissível nos seguintes casos:
“a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.
Manifestamente não estando em causa a aplicação das hipóteses estabelecidas nas als. b) a d), importa dilucidar a questão à luz do previsto na al. a) do citado normativo.
Como se decidiu no Ac. da RC de 10/12/2013 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt., “[v]erificados os pressupostos de admissibilidade estabelecidos na lei processual civil, a circunstância de estarmos perante uma acção popular cível não obstará a que o demandado deduza pedido reconvencional”; e que “[p]esem embora as especificidades da acção popular cível – que, por definição, envolve um alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa (art.º 3º da Lei n.º 83/95) e cujo objecto transcende (ou deverá transcender) o interesse pessoal dos autores –, será lícito ao demandado, designadamente, em matéria de defesa do direito de propriedade privada, formular pedido de sentido contrário ao dos AA. e eventualmente cumulado com pedido de indemnização”.
No caso sub judice, com vista a estribar o seu pedido reconvencional indemnizatório alegou o réu/reconvinte que, em virtude da instauração deste processo e de um outro procedimento cautelar anteriormente apresentado, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende que sejam liquidados no incidente subsequente à prolação de sentença.
Concretizando: alegou (---), em resumo, que a obra deveria ter sido terminada pelo empreiteiro em maio de 2020, porém, por causa do processo de embargos nº 19/20.5 intentado pelos ora AA contra o ora Réu, a obra foi completamente parada durante meses, tendo sido prorrogada a licença para maio de 2021, com consequente aumento de custos de materiais e de mão de obra.
Os AA embargaram a obra e o R. teve que pedir nova prorrogação de prazo, tendo pago de taxas a quantia de 133,32€.
Com a paragem da obra o réu teve custos acrescidos com materiais e mão-de-obra, no valor de 15.000,00€.
Os AA têm desencadeado uma autêntica perseguição ao réu, desde que souberam que ia reconstruir o seu prédio, desde o embargo até à maléfica intenção da demolição da parede poente, e, em consequência daquele comportamento, o Réu anda angustiado, sofre incómodos e stress que agravam o seu já débil estado de saúde.
Não satisfeitos, os AA recorreram à presente ação popular, um tipo de processo com o qual nenhuma outra pessoa da freguesia se identifica, com o objetivo de alcançarem os seus interesses meramente individuais, alegando factos falsos.
Em consequência do comportamento dos AA tem passado e passa noites sem dormir, angustiado por excessivo stress, com recurso sistemático a medicamentos e consultas médicas, situação que se agravou com o recebimento da p.i. na presente ação, onde, com o maior desplante, os AA pedem para o Réu demolir a parede poente.
Em consequência do comportamento ilícito dos AA, o Réu, que reside em França, fez várias viagens ao país e certamente vai fazer muitas mais para comparecer nas diligências designadas pelo Tribunal.
São danos morais e patrimoniais que devem ser pagos pelos AA., mas que neste momento ainda não podem ser integralmente computados, dado o processo se encontrar no início.
Como se disse, os limites objectivos, previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 266º do CPC, traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor; na situação da alínea a) – aplicável ao caso vertente –, o pedido do réu há-de ter por fundamento o acto ou facto base da acção ou da defesa (Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 1982, p. 379 e ss. e Comentário (…), p. 98 e ss.), embora desse acto ou facto jurídico se pretenda, nesse caso, obter um efeito diferente.
Diz-se estar em causa um conceito mínimo de causa de pedir, ao permitir que o réu reconvenha com um pedido que “emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa” (Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 50 e 401.).
Pois bem, perante o descrito enquadramento jurídico, tendo presente a materialidade fáctica alegada e o peticionado pelos AA. e pelo Réu, afigura-se-nos ser inteiramente de manter o despacho recorrido que não admitiu o aludido pedido reconvencional (indemnizatório) formulado sob a al. e).
Como bem se explicitou na decisão impugnada, o facto concreto em que os AA. assentam a acção é, grosso modo, a ocupação, por banda do R., de uma faixa de terreno que faz parte integrante do domínio público da freguesia, enquanto o facto em que o R. assenta o referido pedido reconvencional é, não só o presente processo instaurado contra si pelos AA., mas também outros litígios judiciais em que as mesmas partes intervieram (como seja o procedimento cautelar de embargo de obra nova n.º 19/20), processos esses que, segundo aquele, estiveram na origem dos danos patrimoniais e não patrimoniais que diz ter sofrido.
Como é bom de ver, o referido pedido reconvencional não se funda, sequer parcialmente, na mesma causa de pedir que o pedido dos AA. – primeira hipótese da alínea a) do art. 266º, n.º 2, do CPC.
A segunda hipótese, como observa Lebre de Freitas (Cfr. Introdução Ao Processo Civil. Conceito e Princípios Gerais À Luz Do Novo Código, 4ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017, p. 217 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pp. 531/532), refere-se ao pedido reconvencional que se funda nos mesmos factos em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial.
Como tem sido entendido, não basta que o réu alegue qualquer acto ou facto jurídico para que logo dele possa extrair-se um outro efeito jurídico que se pretenda fazer valer através do pedido reconvencional; necessário se torna que o facto invocado, a verificar-se, produza efeito útil defensivo, ou seja, tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.
Nesse sentido, a hipótese prevista na segunda parte da al. a) do n.º 2 do art. 266º do CPC tem o sentido de a reconvenção só ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor e com base nesse acto ou facto – ou parte dele – que serve de fundamento à sua defesa, deduza o pedido reconvencional (---).
Isto é, o facto jurídico que serve de fundamento à defesa e ao pedido reconvencional terá de se enquadrar na noção de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal.
No caso sub judice, o réu-reconvinte não deduziu qualquer excepção peremptória e, por impugnação, negou directamente ter invadido qualquer parcela de terreno integrada no domínio público.
Fundou o pedido reconvencional em discussão no facto de os AA./recorridos terem proposto a acção popular contra ele, bem como numa outra que nenhuma conexão tem com a que se discute nestes autos, com as consequências daí derivadas que alegou.
Ou seja, está em causa o exercício do direito de acção em termos que Réu reputa como abusivo (“uma autêntica perseguição”).
Assim sendo, também não se verifica aquela segunda hipótese (Cfr., em sentido similar, julgando não ser admissível, em reconvenção, pedir indemnização pelos danos causados ao réu pela propositura da ação, os Acs. do STJ de 18/12/2003 (relator Afonso de Melo) e de 9/09/2010 (relator Barreto Nunes) e o Ac. da RL de 2/06/2016 (relatora Maria José Mouro), in www.dgsi.pt.; Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. III, Excepções da Instância, 2007, Quid Juris, p. 843. Como decidiu o Ac. da RP de 20/12/2004 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt., “invocando os AA. como causa de pedir, o facto dos RR. terem violado o estatuto da propriedade horizontal do prédio onde todos vivem, ligando a realização de obras não autorizadas pelo condomínio, e outras condutas dos RR., à violação de direitos de personalidade, não pode ser admitida reconvenção se os RR. alegam, como causa de pedir, "perseguição" dos AA., pelo facto destes, insistentemente, os demandarem, pedindo uma indemnização por pretensos danos causados por essa litigiosidade que reputam infundada e persecutória, (…)”, pois que “a causa de pedir no caso em apreço não tem qualquer afinidade com a causa de pedir e os pedidos da acção”.).
Como vimos, malgrado a admissibilidade do pedido reconvencional se justificar por razões de economia processual, a verdade é que este princípio não permite que toda e qualquer pretensão autónoma possa ser apresentada pelo réu contra o autor, com prejuízo do andamento regular do processo.
Ora, no caso, o recorrente fundou o aludido pedido reconvencional em factos que não só não se relacionam com a causa principal, como igualmente carecem de virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o(s) pedido(s) formulado(s) pelos autores.
O que significa que tal pedido reconvencional não se funda no facto jurídico que serve de fundamento à ação ou no que serviu de base à alegação da defesa.
Nesta conformidade, a decisão impugnada que rejeitou o pedido reconvencional (indemnizatório) deduzido sob a al. e) está em conformidade com as normas legais e tem de ser confirmada."
*3. [Comentário] A RG decidiu bem.
Em tese (e, naturalmente, sem nenhum pré-juízo), o que se poderia discutir seria se a conduta do autor popular poderia eventualmente constituir uma situação de litigância de má fé por utilização reprovável dos meios processuais (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC),
MTS
Em tese (e, naturalmente, sem nenhum pré-juízo), o que se poderia discutir seria se a conduta do autor popular poderia eventualmente constituir uma situação de litigância de má fé por utilização reprovável dos meios processuais (art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC),
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